Shikashi!! escrita por Uma Qualquer


Capítulo 20
Pedindo por milagres


Notas iniciais do capítulo

Olhe pros lados ao atravessar a rua.



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A Yukari foi a primeira a desfazer o silêncio. Enquanto eu e a Gumi nos olhávamos ainda impactadas, a senpai murmurou alguma coisa no ouvido dela, me cumprimentou num leve aceno e se afastou.

— Eu ia te contar, Miku-chan.

A voz da Gumi finalmente me tirou da minha paralisia. Me abaixei e comecei a recolher a sacola do chão, sem saber bem o que falar.

— É verdade Miku – Gumi insistiu se aproximando. Instintivamente dei um passo pra trás.

— Tudo bem...

— Ia te contar essa noite...

— Tudo bem – repeti. – Afinal, não é da minha conta...

Minha voz era um murmúrio seco que eu quase não reconhecia, saindo duramente da minha garganta.

— Não queria que você soubesse assim – ela insistiu, cabisbaixa.

— Mas... Gumi-chan, você gosta dela?

Ela assentiu sem me olhar.

— Eu achei... Achei que nós contaríamos uma pra outra, se um dia uma de nós encontrasse alguém de quem gostasse.

— Eu não tinha certeza! – Ela finalmente me encarou, e seus olhos verdes cintilaram. – Não teve importância nenhuma no começo... Não era pra ter, pelo menos... Mas agora-

— "No começo"... Quer dizer, a pousada? Foi lá que tudo começou?

A expressão dela endureceu de repente. – Como você...?

Eu vi, tá bom— acabei falando. – Foi sem querer, igual a hoje. Eu só achei que você fosse precisar de uma amiga pra desabafar qualquer coisa, mas...

— Você sabia que estávamos juntas – ela murmurou devagar. – Me viu com a Yukari todo esse tempo, mas nunca falou nada. 

— Porque era você quem tinha que falar, não é? A menos, é claro, que fosse uma coisa sem importância. A menos que você não goste de verdade dela.

— Mas eu gosto!

As lágrimas caíam pelo rosto da Gumi, e eu estava me odiando por fazer minha amiga chorar. Mas eu tinha que ser dura. Precisava saber por que ela não tinha achado que podia confiar em mim.

— Eu gosto dela – a Gumi respirou fundo, enxugando o rosto com as costas das luvas. – Gosto mais do que imaginei que podia. Mas, você entende... Nós somos garotas.

— E daí? Você não quis me contar por isso? Porque achou que eu fosse deixar de ser sua amiga ou alguma idiotice dessas?

— Eu não tinha certeza de como você ia reagir – ela admitiu. – Eu estava insegura, não tinha falado nada nem pro nii-san... E a Yukari disse que era melhor eu só falar quando me sentisse confiante o bastante.

Eu não conseguia acreditar. Tudo bem, ela provavelmente deve ter se sentido bem vulnerável numa situação tão nova, mas... Ter aquela dúvida em relação à minha amizade... Aquilo realmente me magoava.

— Você podia ao menos ter dito que já sabia – ela falou de repente.

— Como é? – sibilei sem acreditar.

— Por que não disse nada? – a Gumi insistiu. – Teria sido muito mais fácil pra mim, se eu soubesse que por você estava tudo bem...

— O que você queria que eu fizesse? Usasse lacinhos arco-íris no cabelo pra sinalizar, "essa cabeça é livre de preconceito" ou algo assim?

— Estou falando sério – ela retorquiu irritada.

— Eu também – gritei. – Que droga, você quer que eu adivinhe o que se passa na sua cabeça?

— Você podia ter o mínimo de sensibilidade e se colocar no meu lugar – as lágrimas voltaram a cair, mas agora eram de raiva. – Uma amiga faria isso pela outra.

— Só que eu não sou telepata! E caso não tenha percebido, em todo esse tempo que fomos amigas, não sou intolerante com as pessoas por causa de alguém que elas amam. Você me viu tratar a Luka mal alguma vez, por acaso?

Ela piscou sem entender. – O que tem a Megurine-san?

Eu poderia ter pensado comigo, "ops, fiz merda, hora de contornar o dano".

Mas pensar é pra pessoas em sã consciência, e a minha consciência naquele momento estava ardendo em chamas.

— Eu sou apaixonada pelo Gakupo-san – declarei ferozmente. – Desde que conheci ele. Mas sei que ele nunca vai olhar pra mim, por isso nunca contei pra ele. E nunca contei pra você, porque tinha medo de você achar que eu só queria ser amiga sua por causa dele!

Ela me fitava sem responder, a respiração produzindo uma nuvenzinha de vapor à frente dela.

— E não foi por isso?

— Claro que não! – respondi indignada.

A Gumi baixou a cabeça, pensativa, sem me encarar por um momento. Quando falou oura vez, seu tom era estranho e seco.

— Mas, ele ia bastante à sua casa antes. Pra ajudar com o mangá.

— Sim, e daí?!

— ... Bem conveniente, né?

Alguma coisa pareceu quebrar em meu peito, enquanto eu olhava à minha frente, buscando naquela estranha a Gumi que, minutos atrás, era minha melhor amiga.

O trabalho que era tão importante pra ela, que eu gostava tanto de ajudar a fazer...

Como ela podia insinuar que aquilo era só uma desculpa pra ver o Gakupo?

— Quer saber, eu tinha razão em não querer falar – sussurrei numa voz estrangulada. – Você tá agindo como uma completa estúpida.

— Claro – ela fungou de leve, a expressão fria como eu nunca tinha visto antes. – Realmente, uma estúpida.

Sem ação, vi ela me dar as costas e se afastar de mim, os cabelos verdes balançando ao vento até se perderem numa esquina adiante.

Sacudi a cabeça, sem entender nada do que tinha acabado de acontecer. Então comecei a seguir em frente, mas percebi que não precisava mais ir naquela direção.

Não precisava mais me declarar, porque a Gumi agora sabia. E não precisava mais ir ver os Kamui, porque aparentemente a Gumi agora me odeia.

"E eu odeio ela também?"

Não sabia dizer. Tinha imaginado mil vezes aquele momento, quando ela finalmente saberia de tudo. Estava até preparada pra levar um tapão maior que o do Kaito no festival, mas nem nas minhas piores hipóteses eu imaginei que ela fosse reagir daquele jeito.

Preferia um tapa de uma Gumi furiosa, do que acusações falsas de uma Gumi fria e antipática.

Enquanto atravessava a praça sem perceber, a realidade do que tinha acabado de acontecer me sobreveio como um choque. Tinha perdido minha melhor amiga. A Gumi-chan, a melhor pessoa que eu conhecia no mundo inteiro.

Tinha perdido ela, talvez pra sempre.

— Ei, toma cuidado!

Ao longe ouvi um som de buzina, mas não atentei de onde vinha.

— Miku-chan!

Um puxão forte por trás me fez retroceder. No mesmo segundo, um carro atravessou à minha frente num borrão veloz.

Tá querendo morrer?!

Kaito me fez virar pra ele, segurando meus ombros com força. Me encarava assustado, e ele arregalou os olhos quando senti senti as lágrimas descerem quentes pelo meu rosto.



— Ele achou mesmo que você fosse atravessar – dizia um velhinho encurvado. Embrulhado no casaco grosso, ele mais parecia uma tartaruguinha.

— Ficou preocupado, o rapaz – concordou um velho alto e magricela, que fotografava as luzes natalinas com a câmera do celular. – Você não parecia estar prestando atenção.

O mordomo do Kaito, em seu terno escuro costumeiro, acabava de me trazer um chá quente. Depois de ter chorado um pouco eu me sentia mais calma, e agora percebia que estava sentada junto com o Kaito e uma porção de velhinhos no meio da praça.

— Quem é esse pessoal? – perguntei a ele baixinho.

— Amigos meus – ele contou. – O asilo onde vivem é perto da minha casa. Todo Natal vamos aqui pra ver os corais.

Mais adiante, os cantores entoavam canções natalinas sobre um palco improvisado. Havia várias pessoas assistindo além de nós, e pelo que eu percebia, muitas famílias reunidas.

Imaginei o Kaito vindo todo ano com a mãe e os velhinhos do asilo. Depois que ela morreu ele manteve a tradição, aparentemente.

Bebi mais um pouco do chá enquanto ele olhava pra mim, meio curioso, meio aflito. – O que deu em você afinal? Não percebeu que ia atravessar a rua?

— Briguei com a Gumi – respondi simplesmente.

Ele abriu a boca surpreso, como se fosse dizer algo, mas apenas suspirou.

— Sinto muito – disse. – Então... Ela já sabe?

— Já. Não foi por isso que brigamos, mas no calor da discussão eu me descontrolei e contei.

— Entendo...

A frustração estava tomando o lugar da tristeza. Bufei irritada.

— Ela foi tão idiota... Tirando as piores conclusões sobre mim... E ainda queria que eu olhasse o lado dela, que eu me colocasse no lugar dela, que eu adivinhasse... Como ela pôde ser tão egoísta?

Kaito apenas me ouvia, sem falar nada. O mordomo estava parado mais adiante, parecendo respeitosamente nos ignorar, e o velhinho tartaruga e o de boina estavam entretidos com o coral. Aproveitei e desabafei pro Kaito tudo o que tinha acontecido desde o começo. Quando flagrei a Gumi e a Yukari por acidente na casa de banhos...

— Ah, por isso você não quis dormir com elas – ele bateu uma mão sobre a palma da outra, finalmente desvendando aquele mistério.

...e todas as vezes em que eu tive certeza de que elas estavam juntas, mas achava que seria de uma tremenda indelicadeza comentar algo a respeito, quando as principais envolvidas não tinham se manifestado. Pelo menos, até aquela fatídica noite.

Terminei o chá me sentindo aliviada daquele peso, embora ainda sentisse a decepção amargar na boca.

— Achei que essa noite ia ser horrível– resumi. – Mas não tanto assim.

— Brigar com uma amiga desse jeito... – ele murmurou, consternado. – Deve ter sido difícil mesmo.

— Ela não é minha amiga. Não mais.

Kaito assentiu. Foi falar algo com o mordomo mais adiante, e então voltou para o banco.

— Vou dar uma olhada nas árvores de Natal – disse. – Não quer esticar as pernas um pouco?

Ponderei por um momento e achei uma boa ideia. Ficar parada só ia me fazer remoer mais aquele assunto.

— Cuidado pra não esticar as pernas pra sempre – o velho da boina me avisou quando saí.

— Seus amigos – murmurei, fazendo o Kaito virar pra mim. – Quando você diz isso, quer dizer que eles...

— Estão mais pra meus 'avôs', na verdade – ele explicou. – Alguns deles me conhecem desde que eu era bebê. O asilo é perto da minha casa, como eu disse, então eu costumava passar um tempo lá. Hoje vivo mais ocupado, mas jogamos mahjong sempre que posso. Pra mim, são praticamente amigos.

Tentei imaginar um adolescente tendo um monte de idosos como amigos, e percebi que esse tipo de coisa estranha só faria sentido se o tal adolescente fosse o Kaito.

— Bom, – eu disse – isso explica porque você age feito um velhinho às vezes.

— Pode ser.

— A rabugice é sua mesmo ou você aprendeu com eles?

— Ei, eles não são rabugentos – Kaito riu, e então parou pensativo. – Mas talvez eu seja, um pouco.

"Um pouco"?

— Oe... Eu salvei sua vida, lembra?

Olhei pra ele sorrindo. – Verdade. Você tá sempre aparecendo do nada pra me salvar... Será que você é o meu alien da guarda?

— Alien da... Quê?— ele indagou confuso, enquanto eu corria pra longe.

O maior pinheiro de Natal tinha sido armado no ponto central da praça. Era o mais iluminado e enfeitado de todos; as pessoas que passavam por ele deixava ou levavam lembrancinhas das mais variadas, como bolinhas cintilantes e origamis coloridos. Tive vontade de deixar algo ali também, uma lembrança de que a noite tinha sido horrível, mas eu tinha sobrevivido a ela.

— Kaito-kun– eu o chamei, mexendo na sacola. – Pega um desses.

— ...Pra mim? – ele olhou incrédulo o embrulho da torta de nozes.

— Não, é só pra ficar segurando – revirei os olhos. – Claro que é pra você. Só que não é azul, desculpa.

Ele abriu o embrulho devagar. – Obrigado...

— Não agradeça. Você salvou minha vida, lembra?

— Acho que sua vida é mais valiosa que uma torta.

— Nossa, concordo plenamente.

Ficamos rindo e comendo a torta, que estava uma delícia. Era até esquisito ver o Kaito comendo algo que não combinava com a echarpe dele, mas ao menos ele parecia ter gostado.

— O que está fazendo? – ele perguntou, vendo eu pegar a pequena etiqueta em forma de noz que veio na embalagem.

— Um pedido – expliquei, pendurando a etiqueta num dos galhos do pinheiro, e então juntando as mãos. – Vai, faz um também. Vai que milagres de Natal existem.

Ele hesitou um pouco, mas afinal pendurou a etiqueta dele no galho.
No caminho de volta eu me sentia quase leve. Ainda queria voltar pra casa e esquecer aquela noite, mas se eu não tivesse encontrado o Kaito, provavelmente estaria bem pior agora.

É, estaria igual uma panqueca no asfalto.

— Você me salvou mais do que imagina hoje – comentei agradecida. – Desculpa por atrapalhar o programa com os seus amigos.

— Não foi nada – ele disse tranquilamente.

— Você teve que aguentar meus desabafos a noite toda...

— Mas a torta estava ótima. E eu gosto do seu perfume.

Parei e olhei pra ele, pasma.

— Hein?

— Que foi? – ele perguntou sem entender.

— Isso... Você acha... Normal, dizer isso pra alguém, do nada?

— Mas é verdade. Seu perfume é muito bom.

Minhas orelhas estavam pegando fogo.

— E o que eu devia responder a isso?

— Sei lá – ele riu. – "Obrigada, é que eu tomei banho hoje"...?

— Você é. Um perfeito. Imbecil.



Sim, a noite podia ter terminado bem pior, comigo arrasada ou pior, atropelada. Mas ao chegar em casa, desviar da multidão da minha família e subir direto pro meu quarto, dei de cara com as folhas já prontas do mangá da Gumi.

"Como ela pôde...", eu pensava, e a mágoa fez novas lágrimas aflorarem.

— Gumi-chan... Sua idiota.

Deitei na cama, prestes a cair no choro, quando o celular tocou. Era uma mensagem do Kaito, junto com uma imagem.

[Um dos meus amigos tirou. Achei que fosse gostar.]

Era uma foto nossa, no momento em que pendurávamos as lembranças na árvore. Não estava muito nítida por causa da distância, mas dava pra ver a ponta da echarpe dele esvoaçando, junto com meus cabelos.

Sorri e enxuguei as lágrimas.

[Você é mesmo o meu alien da guarda.]

[Que negócio é esse afinal?]

[Oyasumi, Kaito-kun.]





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Notas finais do capítulo

{especial de Dia das Crianças!}
E-etto... não me matem, ok?
Aproveitando pra agradecer a Chibieska (que ja comentava na fic antes, mas minha memória de sardinha empanada não ajudou a lembrar) e Nyu KillerQ que eu não via faz tempo (bem vinda de volta ^^), além de todos que ainda não citei (gomen! Me lembrem nos comments! #jeitodescaradodepedirreview). Obrigada por acompanharem a fic como sempre. Esse cap foi um pouco difícil pra mim porque tive que reviver algumas coisas chatas ao escrevê-lo, mas foi bom ter botado esses feels pra fora, então espero que tenha ficado bom e que vocês gostem, e que não me matem pfv.
E a todos os fantasminhas também, eu os convoco! Deem um OLAR!!!
Beijas e té maisinho :*****



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