Correspondências escrita por Blue Butterfly


Capítulo 20
214, Harbor View - Apartment #12 - Charleston MA




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/658812/chapter/20

30/05/2010

Querida Jane,

Me perdoe por ter desaparecido sem lhe deixar nenhuma mensagem mesmo que curta sobre isso. Gostaria de poder ter te avisado antes de partir, gostaria que eu não tivesse te deixado aflita. Dois ou três dias depois que recebi tua carta, a que eu deveria ter respondido imediatamente, recebi uma ligação de Constance, minha mãe. Ela mora em Paris junto com meu pai, apesar de que é justo dizer que eles visitam às vezes a casa que possuem. Ambos viajam bastante a trabalho, minha mãe é uma artista e meu pai um professor. Naquela noite descobri que meu pai tinha sofrido um ataque do coração - ele não é nada jovem, apenas para constar. Eu e meu pai nunca fomos próximos, Jane. Nós nunca trocamos abraços. Foram poucos os sorrisos. Eu quase não o via quando criança, e tenho a sensação desde pequena de que minha presença não era tomada como prioridade. Qualquer afeto foi pouco; mas o pouco foi o suficiente para que ele pudesse ser, bem, você sabe, meu herói. É claro que essa imagem não durou para sempre, eu já lhe disse que tudo com minha família é complicado, mas quando eu soube... O chão sumiu sob meu pés - metaforicamente, quero dizer.

O outro lado do mundo nunca pareceu tão distante. Na ocasião, ele estava na Itália. Soube que ele tinha acabado de jantar e estava entrando no hotel para passar a noite. Eu não fiz malas, apenas dirigi para o aeroporto, comprei o voo seguinte para Roma e fui. Não me lembro de ter dirigido, não me lembro de ter descido do carro ou que horas embarquei no avião. Tudo sobre aquela noite está borrado. A única coisa em que conseguia pensar era em meu pai na cama do hospital, e meu pai herói da infância. Ele me ensinou a ler, e me ensinou a contar. Ele me ensinou a tocar piano, talento que abandonei por pura teimosia. Não posso negar que houve muita negligência em relação a mim, entretanto eu sei que ele fez o melhor que pôde - demorou tanto para que eu pudesse reconhecer isso. Precisou de um ataque de coração para que eu pudesse finalmente ver.

Quando cheguei em Roma me encontrei com minha mãe - seria mais justo dizer com uma figura embaçada da mulher forte e dona de si com quem cresci. Quase não a reconheci. Ela parecia apagada, e meu coração acelerou enquanto minha mente traçava todas as más possibilidades, até a pior delas. Naquele momento acreditei que tinha chegado tarde demais e que meu pai estava morto. Agora sei o que a expressão 'vazio no peito' significa. Não é algo que quero experimentar de novo. Não sei como lidar com isso. Felizmente, para o fim do meu desespero, minha mãe me informou de que meu pai estava internado em estado crítico. É o que se espera depois de ter sofrido um ataque do coração. Eu nunca tinha visto minha mãe chorar até então. Eu nunca senti tanto medo, Jane. Foram cinco dias agonizantes, porque entre visitas e medicações, nós nunca conseguimos falar com ele. Você espera que depois desse tempo a condição passe a ser estável. Eu sou médica, posso dizer. O caso dele estava mostrando melhoras, então você pode imaginar a minha surpresa ao receber outro telefonema de madrugada me informando de que ele acabara de ter outro ataque.

Eu sou médica e não pude fazer nada. Me senti a pior pessoa do mundo - a pior filha do mundo. Ele precisou de uma cirurgia de emergência, uma que foi concedida imediatamente, e foram longas as horas de espera. Eu não pude entrar. Meu sobrenome e meu status não significaram nada naquela situação porque por questões de ética um familiar não deve estar dentro de uma sala de operação. Foi pelo melhor, eu penso. Minha mãe precisava de mim, e eu dela. Eu não acredito em Deus, então não rezei, mas esperei que aqueles médicos fossem os melhores no que estavam fazendo.

A parte mais agonizante depois da cirurgia foi a espera. O médico responsável nos informou de que durante o procedimento ele teve uma parada cardíaca. Meu pai morreu por cinco minutos, Jane. Tempo suficiente para causar danos cerebrais irreparáveis. Ele poderia não ter voltado. Seu corpo poderia ter voltado, mas seu cérebro não. E se esse fosse o caso, eu tinha um formulário em mãos para decidir o que fazer com o corpo pseudo-vivo dele. Eu, Jane. Eu jamais deixaria minha mãe fazer e conviver com sua escolha. Eu sou médica, e eu sei que... droga, eu sei que se ele não acordasse, ele não estaria mais lá. É isso que dizemos para as famílias, você sabe? 'Ele não está mais lá', porque supõe-se que isso traga algum tipo de conforto. E é por isso que eu não sou esse tipo de médica, eu não conseguiria lidar com a dor de um familiar - aquela mesma que eu sentia. Porque é insuportável, enlouquecedora. Quem sou eu para decidir algo assim? Eu não decido quem morre ou não. Era meu pai, Jane, herói ou não, meu pai. Eu não queria ser responsável pela morte dele. Eu não queria que minha mãe fosse. Eu só queria gritar e sentir-me livre da mão que apertava minha garganta - metaforicamente dizendo.

No final das contas, eu não precisei decidir por ninguém. Ele acordou no dia seguinte, as funções cerebrais intocadas. Foi a primeira vez que chorei de alívio. Eu não sei se você ainda tem seu pai ou se você sabe o que é passar e sentir tudo isso. Eu espero que não. Mesmo estando distante por tantos anos, mesmo me negando a tocar piano, mesmo que nossos telefonemas sejam tão limitados... eu odiaria perdê-lo. Ele é minha referência. Ele não é o meu pai de sangue - eu sou adotada - mas qualquer laço que eu tenha criado com ele é mais forte do que isso. Ele é meu pai, e eu odiei a sensação de ser orfã, mesmo que por um minuto. Foi uma experiência traumática. Eu me senti perdida, desamparada.

Nós acompanhamos a recuperação dele. Foi lenta, mas assim que permitido nós voltamos para Paris. Não é uma viagem longa, de qualquer jeito. Eu não poderia deixar minha mãe sozinha com ele depois disso, então passei alguns dias lá também. Ele está bem, foi melhorando a cada dia. A nossa relação se fortaleceu, e Jane, eu senti tanto medo de deixá-los ao voltar para cá. Eu sentia tanto a falta dele, e demorou tanto tempo para eu admitir. Me dói em pensar que essa falta poderia ser sentida no restante de minha vida.

Esse último mês foi o pior da minha vida. Eu não sou a pessoa mais sábia a lidar com sentimentos. Não tenho problema em falar sobre eles, mas eu dificilmente sei o que fazer com eles. Eu ainda me sinto um pouco amedrontada, e exausta. Cheguei de viagem hoje de manhã, e quero que você saiba que não deixei de pensar em você. Entre minhas preocupações na Itália, meus pensamentos se voltaram também para você, para a carta que demorei a responder. Sinto-me mal por não poder ter te avisado antes, não quero que você se sinta abandonada. Senti uma falta imensa de tuas cartas e de tuas piadas, até mesmo de suas referências à cultura pop que não entendo. Me perdoe por demorar tanto tempo para respondê-la de volta.

Não se preocupe com o que tuas cartas possam parecer. Um dos motivos de eu gostar tanto de recebê-las é justamente esse: você ainda continua aqui.

Vou tomar a insinuação sobre a substância tóxica como apenas uma de suas brincadeiras - acho que estou começando a entendê-las. E sobre assistir um jogo com você... Eu não sei. Eu já disse que sou meio estranha para as pessoas? Não quero perder isso que nós temos - seja lá o que for.

Eu espero que você esteja bem e que apareça logo. Estarei esperando.

Maura


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!