Olivia escrita por Loren


Capítulo 2
Surto




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***

Abri os olhos rapidamente e encontrei a luz do meu abajur iluminando fracamente um ponto do meu quarto. Suspirei aliviada ao constar que tudo continuava o mesmo. As pinturas dos quadros estavam intactas em suas molduras de madeira, a janela e porta fechadas e trancadas, os livros esparramados pela mesa e os lençóis da minha cama revirados e amassados. Passei minhas mãos pelo rosto e o senti encharcado, desde os primeiros fios acima da testa até o pescoço. Tirei uma mão debaixo do travesseiro e desliguei o abajur, deixando tudo escuro. Puxei o cobertor dos meus pés até o meu queixo e me encolhi em uma bolinha para dormir. Senti algo duro na barriga e tirei meu caderno de desenhos, lápis e borracha e os larguei no chão. Voltei a fechar os olhos e cruzei os dedos para não voltar àquele pesadelo que me atormentava desde os sete anos.

***

—Bom dia querida. Dormiu bem?- perguntou minha mãe.

Eu bocejei coçando o olho e me sentei para tomar o café da manhã. A mulher de cabelos dourado escuro serviu meu prato de panquecas e serviu dois copos com suco de laranja. Colocou um à minha frente e o outro à frente do seu lugar da pequena mesa.

—Obrigada.- eu murmurei.

Ela sorriu e sentou-se para comer seu cereal. Passei o mel nas panquecas e minha mãe ainda me fitava com os braços cruzados em cima da mesa. Ela tinha um sorriso raro de se ver. Com o canto da boca direita meio levantado deixando à mostra seu dente da frente torto. Eu deixei o mel de lado e levantei uma sobrancelha.

—Então....-eu disse, demonstrando total atenção para ela e incentivando-a a falar.

—Eu consegui, querida! Consegui uma transferência para Roma!- ela disse exibindo um enorme sorriso.

Eu me levantei da mesa e pulei em seu colo apertando seu pescoço. Ela começou a rir e abraçou minha cintura.

—Parabéns, mãe. Você merece.

—Obrigada! Ah querida, estou tão animada!-ela disse e eu voltei para o meu lugar e comecei a comer minhas panquecas.- Será melhor para nós duas! Um lugar maior, mais chances para nós duas! E o hotel parece ser bem grande! E o salário muito mais!- ela disse e comeu um pouco do cereal.

—Terá que trabalhar dobrado?- perguntei baixinho brincando com metade da panqueca.

—No inicio sim, mas logo, logo nos acostumaremos e eu poderei tirar férias! Tudo vai ficar bem.- ela disse pondo a mão na minha.

Eu sorri em resposta. Eu não tinha do que reclamar. Minha mãe, na verdade, tinha tempo para mim. Estava sempre lá quando eu precisava. A maior parte do tempo ela estava no hotel. Ela começou trabalhando como faxineira todas as manhãs e tardes e durante a noite ela fazia aulas para administração. Sempre fora boa com os números, apesar de eu saber que essa não é a verdadeira paixão dela. Enquanto ela estudava, era minha avó que cuidava de mim. Ela morreu um ano depois da conclusão do curso da minha mãe. Eu tinha seis anos. Terminamos de comer e ela não parava de falar sobre o que veríamos e teriamos em Roma. Ela se levantou e pegou meu prato e sua tigela para lavá-los. Eu comecei a beber meu suco da laranja.

—Então querida, como está a escola?

—A diretora quer vê-la. Houve reclamações sobre mim.- o prato cheio de sabão escorregou da mão de minha mãe, mas ela não o deixou cair.

—Pelo o quê?- ela perguntou com a voz trêmula.

Eu sempre desconfiava de que minha mãe iria brigar e me colocar de castigo. Mas sempre foi ao contrário. Quando eu era pequena, ela se sentava ao meu lado, passava as mãos tremendo em meus cabelos, perguntava o que tinha acontecido e se eu estava bem. Estava certo que eu deveria ter crescido mimada, mas isso também foi ao contrário. Não sei porquê. Nunca me senti sem conforto ou sem carinho. Minha avó era um amor comigo e minha mãe sempre deu o seu melhor. Além do mais, eu conseguia ocupar meu tempo livre. Às vezes eu lia, limpava o que podia em casa, olhava TV, até estudava quando não tinha mais nada para fazer, mas isso raramente acontecia. A maior parte do tempo eu desenhava. Desenhava tudo o que via ou imaginava. Ano passado, com onze anos minha mãe me deu um cavalete e um estojo de tintas para pintar quadros.

Bebi todo o suco e o levei para a pia. Enquanto minha mãe lavava o copo, peguei um cacho de uvas roxas e bem geladinhas da geladeira.

—Amanhã eu passo na escola e resolvo isso.- ela disse simplesmente e agradeci por não ter nenhum discurso.- E... O que mais?

No início, eu hesitei. Minha mãe iria enlouquecer talvez, mas aquilo já estava me sufocando e eu não gostava de mentir para ela. Além do mais, fazia meses e meses que eu tinha aquele pesadelo, apesar do último ter sido bem mais visível.

—Olivia?- minha mãe me chamou.

Virei-me para ela e a vi secando um prato com os olhos fixos, mas ela esperava uma resposta. Suspirei. Sentei-me na mesa e coloquei uma uva na boca e disse de boca cheia.

—Eu tive aquele sonho outra vez, mãe. Dessa vez até ouvi um nome e vi aquela mulher...

Fui interrompida pelo barulho de louça quebrando. Vi minha mãe com as mãos no rosto, de costas para mim e o prato quebrado no chão em vários pedaços.

***

—Mãe! A senhora está bem?!- perguntei, exaltada, em pé.

Empurrei a cadeira sem delicadeza para trás, mas em compensação, cheguei com calma por trás dela. Às vezes minha mãe era bastante... bipolar.

—Mãe?- eu a chamei novamente.- Mãe, fale comigo! Por favor!- eu disse com um fio de nervosismo e tocando em seu ombro.

Nesse momento, minha mãe se ajoelhou bruscamente e começou a catar os cacos de forma rápida. Ela os empilhava perfeitamente, mas suas mãos tremiam tanto que eles caíam novamente. Eu me ajoelhei ao seu lado, deixei de olhar para os cacos e me fixei em seu rosto.

—Mãe. Mãe?- eu tentei chamar sua atenção inutilmente.

Ela tinha o lábio inferior tremendo, murmurando coisas sem sentido e que eu não conseguia entender. Seus olhos estavam fixos em algum ponto do chão, o que me deixou curiosa. Como ela conseguia recolher todos os cacos se nem ao menos prestava atenção neles? Só então eu percebi que minha mãe não estava mais mexendo suas mãos. Na verdade, ela tinha a mão esquerda fechada e apertada fortemente em um algum caco. Ela apertava cada vez mais e mais, parecia nem notar as gotas de sangue que escapavam de sua mão.

—Mãe! Olha o que a senhora está fazendo!- eu gritei, pegando a sua mão.- Mãe, solta isso... Solta! Está te machucando!- eu gritava enquanto tentava abrir a sua mão, mas ela resistia.- Mãe! Solta isso! Agora!- eu gritei desesperada mais uma vez e consegui abrir seus dedos.

O pedaço de porcelana branco estava sujo de mel e sangue, dando um contraste estranho com os desenhos finos e abstratos rosa bebê. Larguei o caco e me levantei até a pia rapidamente, peguei um pano qualquer e o molhei. Meu lábio tremia e eu sentia algo me incomodar nos olhos. Quando me ajoelhei e pisquei, percebi que meus olhos estavam encharcados de lágrimas. Os ombros de minha mãe tremiam e ela tinha a cabeça tão baixa que eu não conseguia ver nem a ponta do seu nariz. Peguei a sua mão e senti meu estômago embrulhar quando vi o corte que transpassava sua mão inteira e o sangue que não parava de sair. Comprimi o pano contra a carne por alguns minutos até o sangue estancar.

—Mãe? A senhora está bem? O que houve para fazer isso?!- eu perguntei com uma mão tocando em seu rosto. Estava molhado e quente.- Mãe?- eu sussurrei.- Olha pra mim, por favor.- eu pedi mais baixinho ainda.

Ela levantou o rosto e eu senti minha garganta fechar. Era como se tivesse uma pedra ou algo intalado. Seus olhos brilhavam pelas lágrimas. Seus lábios e a ponta do nariz estavam vermelhos. Ela tinha tinha uma expressão tão triste. Cansada. Preocupada. Me atrevia até dizer sofrida. Então, ela me abraçou. Seus braços apertavam fortemente o meu pescoço e ela soluçava tanto que chegava a tremer. Eu não a compreendia na época. Não conseguia entender o drama que ela fazia por causa dos meus pesadelos. As pessoas tem o mal de não falarem tudo o que sentem.

—Mãe... Está tudo bem.- me afastei dela e limpei uma lágrima.- Está tudo bem. Agora, vamos ao médico. Precisamos dar um jeito na sua mão.- eu disse e me levantei para pegar sua bolsa.

—Médico?- ela perguntou baixinho.

—Sim, médico e, por favor, não diga...

—Não! Não preciso de médico! Foi somente um corte!- ela aumentou o tom de voz e se levantou abanando a mão sangrenta.

—Mãe, vamos logo! Aí nós já aproveitamos e fazemos um check-up, para ver se...

—Eu estou bem, Olivia! Eu. Estou. Bem. Não preciso ir em um médico, entendeu? Agora, vai pro seu quarto.- ela disse e se virou para a pia.

Começou a pegar a esponja para lavar os pratos novamente e antes que pudesse esfregar o primeiro, ela gemeu de dor e largou o prato abruptamente.

—Mãe, por favor...

—Eu mandei você para o seu quarto, Olivia!- ela gritou ainda de costas.

—Mas...- fui interrompida.

—AGORA!- ela berrou e sem me olhar, apontou o dedo para as escadas.

Eu abaixei a cabeça e suspirei derrotada. Era assim. Ela não me escutava. Subi as escadas lentamente e chegando ao quarto, fechei a porta com cuidado. Comecei a arrumá-lo, começando pela cama e refazendo as perguntas que eu nunca achava a resposta. Por que minha mãe recusava-se a ir em um médico? Céus! Era só um médico! Tanta desconfiança assim, só ia deixá-la à beira da loucura. O que sempre me deixou curiosa, eram os surtos que ela tinha quando eu comentava sobre os pesadelos. Desde pequena, quando contei pela primeira vez, ela chorava e adotava aquela expressão sofrida e preocupada. Antes, aquilo me deixava nervosa. Às vezes, me deixava curiosa. Outras vezes, apenas me cansava.

***


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