O Massacre Voraz escrita por Charlie


Capítulo 3
3




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Depois que Mags se apresentou, Paniella começou a fazer um monte de perguntas. De como sobreviver, de como conseguir aliados, como conseguir uma arma e a resposta de Mags para tudo aquilo foi: “Vá com calma”. Sim, ela literalmente disse aquilo. E eu entendia o porquê. Paniella parecia uma louca que não queria saber nada além de vencer os Jogos e partir para casa. Claro que eu não a culpava por ansiar aquilo. Eu também queria voltar para casa, mas as chances de cada um de nós dois vencermos eram de uma em vinte e quatro. Sem contar que um de nós dois ou nós dois iríamos nos matar ou nos tornaríamos Carreiristas ― ao menos ela, porque eu não sei se conseguiria ser tão sociável para ser um Carreirista e eu não tinha sede de matança. Muito diferente de Paniella que parecia muito mais do que ansiosa para começar a jogar.

Mags nos disse que a primeira coisa que fizéssemos quando chegássemos à arena, era procurar água. Comida não era nossa prioridade, porque em cada edição dos Jogos Vorazes a arena poderia ajudar em frutas ou nos não nos ajudar... mas que com certeza teria água em qualquer lugar. Muito diferente, ela alertou, de uma das edições dos Jogos Vorazes quando a arena toda era coberta de gelo e muitos morreram de hipotermia. Ela também disse que era para sermos espertos e não esperar que roubássemos armas dos outros, tínhamos que, se depender, fabricar a própria arma, o que eu achei moleza para mim. Eu sabia como tesar uma boa rede e construir uma boa armadilha, e eu sabia como tornar um pedaço de pau em uma lança muito mais do que afiada. Ela também alertou que a luta era muito mais do que necessária quando se tivesse sem armas e com poucas pessoas na arena, e cruzasse com elas. Também foi moleza, porque eu sabia lutar, mas eu não disse nada disso.

Claro, eu não era burro de dizer. Paniella estava dizendo com o que ela era habilidosa, com faca (eu também era), com armadilhas (duvido que ela fosse tão boa quanto eu) e em luta (eu também duvidava que fosse tão boa quanto a mim). Mas ela disse que não era boa com lanças e tridentes (cuja coisa eu sabia manusear muito mais que bem).

Paniella era da mesma escola que eu e eu a via lutar com outras meninas e ela não ganhava uma luta por conta de golpes, mas por exaustão dos adversários. Ela nunca, por outro lado, tinha me visto lutar e eu sempre ganhei de todos que eu enfrentei na escola, apesar do meu tamanho e modéstia parte. Eu era habilidoso, rápido e preciso. Eu sabia como acabar com um dos adversários em questão de poucos minutos. E teve um garoto que eu consegui abater em questão de segundos. Só nunca ganhei do meu irmão quando ele estava na época de escola, pois ele era o melhor e eu era o segundo melhor (de acordo com a escola na categoria masculina). A gente lutava, porque ele era tão habilidoso quanto eu e ele sempre me vencia... mas com dificuldade. Hoje em dia eu deveria vencê-lo com tranquilidade; talvez eu nunca saiba disso.

Mas antes que Paniella enchesse Mags com mais perguntas, ela nos mandou irmos para os quartos para descansarmos e, sem pensar duas vezes, foi o que eu fiz. Eu precisava ficar um pouco sozinho. Talvez conseguir digerir aquele dia.

Eu tomei um bom banho, após me mostrarem o caminho, é claro. Depois me deram roupas novas, uma que eu não fedia a peixe (segundo Sttefie) e que me deixava com cheiro mais... agradável, segundo ela novamente, e uma loção com cheiro estranho, porém doce. Acho que aquilo que era perfume, pensei. Não sei ao certo. E depois disse eu fui direto para a cabine que seria meu quarto.

Quando cheguei à cabine do trem (que eu reparei depois de muito tempo que já estava andando e não balançava de jeito nenhum), eu fiquei um pouco mais à vontade. A cama era grande e macia, diferente do colchão gastado que eu tinha em meu pequeno quarto no Distrito 4. Havia uma tevê pregada à parede já ligada no jornal da Capital. Caesar (o apresentador de televisão e dos Jogos Vorazes) estava comentando o Jogo passado, logo na cena que um tributo havia cortado a garganta de outro com uma faca. Torci o nariz com aquilo. Mortes não me abalavam e muito menos assistir o assassinato de outra pessoa, o que mais me abalava naqueles Jogos era o sangue frio, o canibalismo do ser humano para com o outro. Mas eu sabia que não adiantava nada ficar daquela maneira. De uma maneira ou de outra, eu teria que fazer o mesmo; eu teria que matar para sobreviver. Mas logo depois Caesar começou a pôr outra imagem na tela, sendo a de outra morte. Uma garota loura e alta decepando o braço de um garoto que era o dobro do tamanho dela com uma espada. Eu me lembrava daquela edição. Todo mundo pensava (ao menos a meu ver, é claro) que ela perderia, pois havia se demonstrado indefesa quando havia sido chamada na Colheita. Ela havia chorado tanto e ninguém esperava que ela conseguisse vencer. Ela era do Distrito 5. Mas só havia sobrado ela e o garoto que ela tinha matado e, quando todos nós menos esperávamos, ela o matou e venceu aquela edição.

E aquilo foi demais para mim, tanto que desliguei a tevê no mesmo instante (após pegar o controle remoto mais esquisito que já vi na vida). Eu sabia que teria que fazer aquelas coisas para sobreviver à arena, mas eu não queria antecipar as imagens logo. Ainda mais, eu já sabia e já tinha visto aquelas edições dos Jogos Vorazes antes, pois eu assisto aos Jogos desde que era pequeno ― Viktor nunca me proibiu de assisti-los, como forma de me preparar se, possivelmente (na época), eu fosse selecionado com o tributo; e funcionou.

E logo eu me deitei na cama para tentar dormir, mas eu acredito que não consegui.

Quando chegou à manhã seguinte, eu me sentia completamente sonolento e exausto. Eu não havia conseguido dormir direito, pois as imagens das mortes do jornal que Caesar apresentou ficaram me assombrando, como num pesadelo.

A mesa do café da manhã estava muito mais farta do que eu já vi a minha mesa de casa estar. Havia pães, pãezinhos, queijo, geleia, manteiga, suco, café, chá, e muito mais variedade que você possa imaginar. Paniella já estava sentada à mesa e conversava com Mags. Sttefie estava se maquiando no canto do vagão, sentada em uma poltrona e com um espelho à mão, completamente desatenta no que estava acontecendo ao redor. Eu cheguei sorrateiramente para não atrapalhar a conversa e me sentei ao lado de Paniella, pegando uns pães com geleia e me servi um pouco de café.

Eu suspirei, porque pensar em café da manhã daquele tamanho era de doer o coração. Na minha casa não tinha tanta fartura quanto aqui e eu sabia que se Kate, Boris e meu irmão estivessem aqui, estariam comendo muito mais do que deveriam. E há essa hora, também, eu já estava ao mar com Viktor e depois iria para a escola. Mas eu estava ali, dentro de um trem em direção à Capital para participar dos Jogos Vorazes sem saber se eu sobreviveria. Maravilha.

Paniella e Mags estavam conversando sobre como sobreviver à arena. Mags dizia que até mesmo um palito de fósforos podia ser seu aliado para viver. Ou até mesmo um simples barbante seria essencial para sua sobrevivência. Mas ela voltou a repetir que era para buscarmos água; a prioridade era a água, mas ao ver a cara de Paniella, ela não parecia contente em saber que a prioridade era água, pois ela relutou em dizer que queria armas para sobreviver e se tornar uma Carreirista. E eu sabia que deveria tomar cuidado com ela depois que os segundos que nos impedia de correr pela arena acabassem.

Mas Mags pôs os olhos em mim e começou a falar comigo, depois que Paniella havia ido para sua cabine, completamente exausta por ter comido demais e de Mags não ter lhe dito algo que preste (sim, nós conseguimos ouvi-la resmungar aquilo e eu revirei os olhos para ela no mesmo instante).

Mags repetiu tudo que tinha dito para Paniella a mim e eu disse que acreditava nela, porque eu sabia que Mags havia feito à mesma coisa na arena quando tinha sido tributo. Eu sabia que ouvir a voz de quem já tinha vencido os Jogos Vorazes era sinônimo de esperteza e inteligência. E eu a ouvi com atenção, pois Mags podia ser uma senhora, mas eu sabia que o que ela falava era para me manter vivo e não para me matar logo de cara.

E nós conversamos sobre minhas habilidades, eu disse para ela tudo que era bom e ela disse que falaria mais sobre isso quando chegássemos à Capital, e eu não fiz objeção alguma.

E também não demorou muito tempo para chegarmos à Capital.

Algumas horas depois, o trem começou a diminuir a velocidade e logo parou. Paniella e eu fomos até a janela e diversas caras engraçadas apareceram diante dos meus olhos. Havia gente de cabelo azul, rosa, roxo, verde, vermelho, preto, branco, cinza... olhos das mesmas cores e até mesmo os supercílios e sobrancelhas. Todos ali aplaudiam e assobiavam feitos loucos, como se Paniella e eu fossemos astros de cinema ou de tevê. Paniella acenou para eles e foi aí que eles foram à loucura. Eu não gostei. E honestamente, aquilo me deu raiva. Queria ver se um deles estivesse no meu lugar ou no lugar de Paniella... se um deles fossem um tributo e eu fosse a plateia aplaudindo por estarem se encaminhando para sua possível morte. Duvido que essa pessoa fosse gostar de ser aplaudida. A raiva foi tanta que eu saí da janela e voltei a me sentar perto de Mags, mas ela disse para eu voltar e ser simpático, e talvez conseguir algum Patrocinador, mas eu neguei com a cabeça e disse que não.

Quando o trem finalmente parou. Mags, Sttefie, Paniella e eu fomos para a porta do trem e saímos dele, seguindo para um prédio alto que eu não consegui acompanhar com o rosto, pois o sol estava radiante no dia. As pessoas eram ainda mais esquisitas de perto, ainda mais com aquele sotaque estranho que a Capital tinha. Era péssimo.

O prédio nada mais era que quase um SPA. Subimos em um andar que eu não prestei atenção e uma mulher e um homem que eram um pouco maiores do que eu, com o sotaque ridículo da Capital, me abordaram, e me tirando de perto de Mags, Sttefie e Paniella. Eles me conduziram até uma espécie de leito de hospital e me mandaram tirar a roupa. Desconfortável, eu fiz o que eles pediram e eles me deram um manto azul e me mandaram deitar na cama. E assim fiz, e logo eles dois começaram e me tocar e a mexer em mim.

Começaram a jogar água em todo o meu corpo, tirando sujeira de minhas unhas, dos meus pés, de minha cabeça e muitas outras coisas que eu fiz questão de dormir para não prestar atenção naquele todo processo demorado e exaustivo. E logo depois eles me deixaram em uma sala, sozinho, onde só havia uma cama e uma prateleira de metal. Eu me deitei na mesma e me mandaram esperar.

A espera foi um tanto chata. Eu não queria ficar sozinho naquela sala na Capital. Era chato e me dava uma sensação horrível; como se alguma coisa fosse surgir do nada e me atacar a qualquer momento. Eu realmente não gostei de ser deixado com um manto azul sem nada por baixo e completamente sozinho. Mas eu tentei relaxar. Fechei os olhos e esperei.

E como se alguém lesse minha mente, minutos depois, uma moça com cabelos pretos até as costas, incrivelmente curvilínea, alta e tão magra quanto Paniella. Ela vestia um simples vestido de seda dourado e com salto alto nos pés, e tinha uns olhos azuis tão lindos que quase me hipnotizavam. Ela veio até a mim e eu me pus sentado na cama.

Ela estendeu a mão e a peguei, balançando em seguida e um pouco desconfiado.

― Olá, Clive ― disse ela num sotaque que me fez duvidar se ela realmente fosse da Capital. ― Sou Ennie. Serei sua estilista.

Eu assenti com a cabeça. Ela parecia ser bem simpática, porque ela uma pessoa que se dava para conversar. Ela me fazia me sentir confortável em meio aquele caos que era ser tributo, pois ela começou a me dizer que a ideia de me vestir de peixe estava fora de cogitação; e eu gostei mais dela a partir daí. E que por conta da outra estilista, fariam coisas mais simples, porém significativas para nós do Distrito 4.

Logo depois daquela conversa, ela me levou até uma sala e pediu para que eu me despisse. Eu não gostei dessa parte, mas eu fiz o que ela pediu e, como uma excelente profissional, ela não sorriu e nem mesmo fez objeção nenhuma, apenas me entregou o traje que já estava pronto e me mandou vestir. Quando vesti, ela me trouxe um espelho imenso, eu consegui me olhar.

A minha roupa era bem simples. Havia uma coroa dourada de loros na cabeça de meu reflexo, realçando os olhos azuis e os cabelos pretos. Havia umas pulseiras no pulso esquerdo e o traje era transparente no peito, como se não tivesse nada. E nas pernas e nos antebraços havia pequenos detalhes de ondas azuis, representando o mar do Distrito 4, e com um jogo de luz, as ondas começaram a brilhar, jogando pequenas partículas de luz arco-íris, completamente brilhoso. Eu franzi a testa, mas não era nada que nenhum tributo do Distrito 4 havia usado e nem mesmo era tão feminino e ridículo como fizeram um tributo usar uma fantasia de peixe uma vez em um dos Jogos passado. Esse traje era lindo, afinal de contas. Nos pés do reflexo havia uma pequena sandália rasteira e deram-no um tridente dourado para segurar em sua mão direita. Era um tanto difícil de acreditar que aquele garoto era eu. Eu estava tão bonito que nunca pensei que conseguiria me vestir tão bem quanto dessa vez; como se fosse o rei do mar ou algo assim.

― Está pronto? ― perguntou-me Ennie quando saímos daquela sala e ficamos no térreo junto com os outros tributos de todos os Distritos.

Já estava à noite quando chegamos lá embaixo. A carruagem nos esperava e todos os tributos já estavam prontos e indo para a fila da carruagem.

Não foi um tanto confortável ficar ali. Paniella estava deslumbrante. Seus cabelos ruivos estavam lhe deixando ainda mais linda do que ela já era e com aquele traje (que era idêntico ao meu só que em um vestido) ela mais parecia uma rainha do mar.

Os tributos do Distrito 1 e 2 estavam nos olhando como se fossemos dois inimigos ou coisa do tipo, e seus trajes eram tão bonitos quanto os nosso; o Distrito 1 estava vestido com roupas de seda e os do 2 eram gladiadores dourados. O olhar dos quatro tributos me irritou um pouco, porque o olhar sério deles me incomodava.

Suspirei um pouco e voltei para Ennie.

― Sim ― respondi. ― Estou pronto.

― Lembre-se de apertar isso... ― ela me entregou um dispositivo redondo. ― Isso fará o traje dos dois brilharem. Escolham o momento certo.

Paniella e eu nos olhamos e assentimos um para o outro.

Apesar de tudo, Paniella não parecia ser minha inimiga. Ela e eu já até havíamos nos falado na escola, mas não muita coisa. E eu não tinha nada contra ela, apesar de saber que ela poderia me matar assim que pisássemos na arena. Mas eu não me via matando-a, porque ela tinha irmãos, tinha família e era do meu Distrito. Parecia traição matá-la e isso não iria caber a mim, porque eu tinha decidido que não iria matá-la.

― Tudo bem ― disse Paniella e eu em uníssono.

Ennie e Lannie (o estilista de Paniella) sorriram para a gente e subimos em nossa carruagem. Minutos depois, as carruagens da frente começaram a andar e a quarta carruagem, a nossa, começou a andar também, nos levando para aquela multidão toda, que aplaudia e assobiava para todos nós.

As carruagens seguiram e seguiram, e logo chegamos perto de onde o presidente Snow se direcionava lá em cima de um prédio com a bandeira com a insígnia da Capital. Quando chegamos perto, Paniella e eu nos demos as mãos e apertamos o dispositivo, e levantamos as mãos, como se estivéssemos comemorando uma glória ou coisa assim.

Eu não sabia exatamente o que tinha acontecido, mas as pessoas ficaram mais eufóricas do que antes. Jogaram rosas vermelhas, brancas em nós e os assobios eram mais audíveis do que antes. Quando olhei para uma tela retangular, ela mostrou a nossa carruagem, mas pouco de nós, porque o brilho que saia de nossos trajes era totalmente de cegar qualquer um. Tanto que eu fiquei de olhos fechados o tempo inteiro até o fim do trajeto.

Quando finalmente as carruagens pararam, nós desfazemos nossas mãos e o brilho de nossos trajes cessaram no mesmo instante, me fazendo, finalmente, abrir os olhos. A multidão se silenciou e o presidente Snow começou o pronunciamento, dizendo que estava aberta a trigésima nona edição dos Jogos Vorazes e que a sorte esteja sempre ao nosso favor. Mas eu queria gritar para ele que aquilo não era sorte nenhuma, que não era tudo não passava de divertimento para o povo da Capital e punição para o povo dos Distritos. Queria poder deixá-lo no meu lugar nos Jogos e ver se ele realmente continuaria as edições se soubesse o terço do que eu passara e do que eu estava prestes a passar. Mas é claro que eu me mantive quieto.

Caso contrário, eu morreria bem antes de pisar na arena.


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