O Massacre Voraz escrita por Charlie


Capítulo 2
2




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Quando Sttefie disse o nome de meu irmão, o efeito do maracujá que eu havia comido tinha se dissipado no mesmo instante; era como se o mundo todo desabasse bem à minha frente e eu não tinha como me segurar.

Meu irmão, que estava com Boris no colo, ficou imóvel no mesmo instante. Os segundos seguintes foram seguidos de palmas e o gesto com os três dedos da mão esquerda (feito pela grande maioria). Mas meu irmão ainda não tinha se mexido, ele continuava parado com Boris no mesmo lugar.

Foi só o tempo de eu piscar que ele deu o primeiro passo em direção ao palco do prédio do prefeito e ainda com Boris em seu colo.

Mas eu não podia deixar. Eu não podia deixar que meu irmão ficasse sem sua família. Eu não podia deixar Kate sem o marido e muito menos Boris sem o pai. Eu sabia que se Viktor realmente fosse para os Jogos, ele não voltaria, porque ele nunca mais tentou praticar luta como a Capital fornecia aulas para a gente; ele estava muito mais do que enferrujado nisso, ao contrário de mim, e se fosse para os Jogos era capaz de perder. Desde que ele virou pai, ele nunca mais quis saber dos Jogos; sempre abonou isso e dizia que a época de se tornar Carreirista havia passado. E ele sabia que não tinha como pôr comida na mesa de casa se ele fosse para os Jogos. Ele sabia que Kate e Boris passariam fome, pois eu não sabia como comandar um barco e trazer toneladas e toneladas de peixe para o mercado, somente ele; Viktor não podia ir para os Jogos Vorazes.

Então eu fiz aquilo que eu sabia que era o certo a se fazer.

Eu dei um passo à frente, logo depois de outro, saindo-me do meio da multidão de jovens e crianças, e de todos os guardas de branco que ali estavam que tentavam me impedir, até ficar de frente para o palco do prédio do prefeito, onde todos poderiam me olhar... inclusive as câmeras.

― Eu me ofereço como tributo! ― gritei para Sttefie, como se fosse as minhas últimas palavras fossem extraídas do fundo do meu peito.

E fiquei olhando para frente. Os guardas não tentaram mais me impedir de prosseguir. Eles nem mesmo me tocaram quando eu falei aquilo diante de todo o Distrito 4.

Viktor, que ainda tinha Boris em seu colo, virou-se para trás bem antes de pisar nos degraus das escadas do palco. Ele me olhou e eu pude ver as lágrimas em seu rosto. Ele veio até a mim.

― O qu-que está fazendo? ― gaguejou ele em um sussurro. ― N-não po-po-pode fazer isso...

― Shh... ― o silenciei. ― Não posso deixar Kate sem marido e muito menos Boris sem um pai. Não tem problema.

― Não posso deixar...

― Eu já me voluntariei ― o cortei com a maior calma possível e com um sorriso no rosto. ― E não há nada do que você possa fazer para me impedir. Eu vou.

― Clive... ― seus olhos lacrimejaram de novo e as lágrimas caíram, descendo pelo seu rosto.

Afaguei seu braço ainda com um sorriso.

― Está tudo bem, irmão... ― falei para ele.

E ele me puxou para um abraço e fechei os olhos, enterrando o rosto em seu peito. Senti as mãozinhas de Boris em minha cabeça, afagando a região. Eu senti vontade de chorar. Não por conta da cena em si, mas por conta de que talvez eu nunca mais pudesse voltar para ver meu sobrinho, minha cunhada e muito menos meu irmão. Aquilo me deu tanto pânico, que eu suspirei com força para não deixar transparecer.

― Muito bem ― disse a voz de Sttefie e eu voltei a abrir os olhos. ― Temos um voluntário no Distrito 4. Venha até aqui, querido...

Sem prestar atenção nela, eu soltei-me de Viktor (que ainda estava chorando) e sorri para ele e para Boris, afagando a mão do pequenininho e beijando-a em seguida. Boris sorriu para mim e eu dei uma piscadela para ele. Meu irmão me olhou por mais um instante, chorando e como se estivesse sentindo dor ou algo do tipo. Mas eu sorri para ele e fiz um gesto com a cabeça, como se quisesse dizer para ele deixar para lá. E segui para o palco.

Subindo os degraus, andei até que Sttefie me colocasse perto da bacia de vidro e fiquei olhando meu irmão sair do meio do palco e ir até onde ele estava. Ele parou no local com Boris nos braços e ficou me olhando, ainda com as lágrimas saindo de seus olhos. Virei o rosto para Kate e a mesma estava com a mão na boca, chorando e fazendo que não com a cabeça. Eu não entendi o porquê, exatamente. O marido estava são e salvo em casa... não havia motivos para que ela ficasse daquela maneira. Voltei a olhar para meu irmão.

Por um segundo, minhas pernas ficaram bambas e comecei a ficar tonto, junto com uma forte vontade de vomitar. Mas eu tinha que prender aquilo. Eu não podia deixar transparecer uma imagem de medo em meu rosto por cima dessa imagem de durão que eu tinha conseguir pôr em meu rosto. Viktor iria querer fazer alguma coisa e eu não podia deixar que ele fizesse nada; ele tinha que ficar com o filho e a esposa, ele não podia ir para os Jogos. Se o preço para que ele ficasse em casa fosse eu ir, eu iria com o maior prazer.

― Então ― disse Sttefie me tirando do meu transe mental e continuou: ―, acredito que aquele ali seja seu parente. Estou certa?

Sttefie me ofereceu o microfone, mas eu não tirei meus olhos de Viktor.

― Sim ― respondi um tanto sem emoção. ― É meu irmão.

― E quem é aquela adorável criança no colo dele? É seu irmão também? ― perguntou ela.

Mas eu neguei com a cabeça e pus um pequeno sorriso de lado.

― Não ― respondi de novo. ― É o meu sobrinho, o filho do meu irmão.

― Ah... ― foi só o que ela disse. Ela pigarreou. ― E qual é o seu nome, querido?

― Clive ― disse eu. ― Clive Kyllian ― ainda com meus olhos em meu irmão, deu tempo de vê-lo fechar os olhos e chorar novamente. Boris pôs a mão no rosto do pai e ficou fazendo carinho ali.

Por um segundo, eu esqueci que eu havia me voluntariado para os Jogos Vorazes no lugar do meu irmão e sorri para o gesto de Boris, mas eu lembrei logo em seguida o que eu havia feito e meu sorriso se desfez, deixando que um pouco de seriedade invadir o meu rosto. Mas logo suavizei a expressão, deixando com que meu rosto voltasse à mesma expressão que eu tinha quando me voluntariei para Viktor; com um sorriso de lado.

― Clive Kyllian, novo tributo do Distrito 4 ― disse Sttefie e bateu palmas.

Mas ninguém bateu palmas. Todo mundo apenas beijou os três dedos da mão e esticaram para o alto, inclusive a Paniella Pointez, o tributo feminino (sei disso porque eu olhei para ela). Kate, Viktor e até Boris fizeram o gesto como todo o Distrito 4. Eu levantei os três dedos da mão esquerda para o Distrito 4.

As palmas de Sttefie cessaram no mesmo instante.

No instante seguinte, Sttefie nos mandou apertarmos a mão. Paniella e eu apertamos a mão um do outro com certa firmeza e logo em seguida ela nos conduziu para dentro do prédio do prefeito, me deixando em uma sala que parecia ser mais um gabinete.

Havia mesa de madeira, estantes, prateleiras, um pequeno sofá verde e uma poltrona de couro preto atrás da mesa ali dentro. Papeis e lápis e canetas estavam em ordens na mesa. Eu nunca prestei atenção no que acontecia ― e nem mesmo sabia ― o que acontecia depois que os tributos entravam pelas duas portas de vidro do prédio do prefeito, das quais eu passei. E para ser bem franco, estar em um gabinete era de longe a última ideia que eu tinha em minha cabeça.

Mas depois de uns dois minutos, completamente sozinho naquele local, Viktor, Kate e Boris apareceram pela porta do gabinete.

Boris estava nos braços de Kate e Viktor veio me abraçar no mesmo segundo. Ele me abraçou tão apertado que eu quase não consegui mais respirar, mas eu não fiz objeção. Muito pelo contrário. Eu enterrei meu rosto em seu peito e sorri ao fechar os olhos, aproveitando ao máximo daquele abraço, porque eu não sabia quando o teria de volta... se o teria de volta. Depois dele, Kate e Boris me abraçaram, mas Viktor me pegou pelo braço e ficou abraçado comigo depois que eles dois haviam terminado de me abraçar.

― Você não precisava fazer isso ― disse ele bem baixinho em meu ouvido. O ouvi fungar.

Bufei.

― Claro que eu precisava ― falei. Olhei para cima e ele ainda estava com os olhos vermelhos e cheios de lágrimas. ― Eu não podia deixar você sem isso... ― pus a mão em sua cabeça e a forcei ir até Kate e Boris.

Viktor respirou fundo.

― Você sabe que o que eu fiz foi pelo bem de vocês três...

― A gente teria dado um jeito de viver ― disse Kate, mas eu não senti firmeza em sua voz. Não a culpava. ― Eu sei que conseguiríamos.

Sorri para ela gentilmente.

― Não tínhamos condições ― repliquei. ― Eu não sou forte como Viktor para puxar a rede, você tem Boris para cuidar. E eu sei como é crescer sem um pai, e eu não iria querer isso para o meu sobrinho.

Falei aquilo me soltando de Viktor e pegando meu sobrinho no colo pela última vez na vida. Boris sorriu para mim e bateu palminhas, e eu ri dele, pegando uma de suas mãos e fazendo barulho de puns em seus braços. Ele começou a gargalhar.

Viktor me pegou pelo braço de novo com certa força e me obrigou a olhá-lo. Lágrimas desciam de seus olhos e ele estava soluçando.

― Vo-voc-você não... n-não de-devia... ― gaguejou ele e apertou ainda mais o meu braço.

― Eu já disse ― falei para ele com a maior calma possível e sorri de lado. ― Eu não ia deixar Boris ficar sem o pai e Kate sem o esposo. Está tudo bem. Eu vou te surpreender e eu vou ganhar os Jogos para voltar para você. E a gente vai estar com a família completa de novo. Eu prometo ― dei uma piscadela para ele.

― Não se atreva a piscar para mim...

― Será que dá para você ficar calmo? ― o interrompi. ― Eu não ligo de morrer. Eu ligo de você morrer. Eu queria você vivo porque sua esposa e seu filho precisarão de você. Você sabe como manusear a rede, tem força, sabe pôr comida na mesa e eu não sirvo para quase nada. Nem mesmo as armadilhas e redes que eu sei traçar valem para muita coisa no mercado.

― Clive, isso...

― Não interessa, Viktor ― o interrompi de novo, ainda com uma extrema calma que nem mesmo eu sabia que tinha. ― Você fica e eu vou. Se esse é o preço que tenho que pagar para te deixar em casa, eu pago. Eu não ligo para os Jogos, não ligo para morrer ou sobreviver. É melhor você sobreviver do que eu.

Viktor pensou em dizer alguma coisa, mas ele só chorou e me abraçou de novo. E eu o abracei novamente, porém não chorei. Eu não podia chorar na frente de Viktor, porque eu sabia que se eu chorasse, ele ficaria muito pior do que já estava e eu não queria isso. Ele era muito molenga e emocional quando se tratava de decisões muito fortes e essa era uma dessas, não era? Quem não iria chorar ao ver seu irmão mais novo se voluntariar para a morte em seu lugar?

De canto de olho, eu vi Kate chorar.

― Não precisa chorar ― disse eu a ela e ela enxugou a lágrima no mesmo instante. ― Ele vai ficar em casa... com vocês e para vocês.

― Não queríamos que você fosse embora... ― ela fungou um pouco e limpou a lágrima do olho esquerdo.

Soltei-me de Viktor e abracei-a um pouco e ela retribuiu o gesto.

― Não se preocupa ― disse a ela. ― Viktor vai estar em casa. Tudo vai ficar bem.

Pisquei para ela e sorri de lado. Ela sorriu um tanto sem jeito e voltei-me a abraçar Viktor.

Viktor me apertou um pouco mais em seus braços e beijou minha cabeça, e eu alisei um pouco suas costas e o abracei um pouco mais apertado, e enterrei de novo meu rosto em seu peito. E mais uma vez eu tive que respirar fundo novamente para não soltar as lágrimas e eu começar a chorar que nem um bebê na frente de Viktor.

Mas o nosso momento não durou muito mais do que aquilo. Poucos minutos depois, um guarda apareceu e tirou Kate, Boris e Viktor do gabinete, me deixando sozinho. Mas antes que Viktor saísse, ele me beijou na testa e me abraçou com tanta força que eu aproveitei a cada segundo. E ele me desejou boa sorte e pediu para que eu lutasse, e que se precisasse matar por isso, que eu matasse. Mas quando eu disse que eu só caçava e capturava peixes, ele disse que seres humanos não eram diferentes de peixes, que tinha como caçar e capturá-los; que era ainda mais fácil. Não era um conselho que um irmão mais velho dava para um mais novo, mas nas circunstâncias em que eu estava eu não fiz objeção nenhuma e aceitei seu conselho.

Quando meu sobrinho, minha cunha e meu irmão passaram pela porta e ela se fechou, eu fiquei completamente imóvel por uns instantes; foi como se nunca mais eu os veria novamente, como se nunca mais veria meu irmão novamente. O pânico que uma vez tentou transparecer em meu rosto, logo havia se manifestado e eu comecei a respirar fundo várias vezes e meus olhos começaram a lacrimejar. Minhas pernas ficaram bambas e eu comecei a ficar tonto, e o choro veio logo em seguida, me fazendo liberar as lágrimas que eu queria soltar desde o começo, e sentei-me no pequeno sofá, enterrando meu rosto em meu colo e abraçando os joelhos.

De agora em diante, eu estava sozinho. Eu não tinha mais meu irmão para me orientar em nada, nada de ver meu sobrinho e ouvir suas primeiras palavras, nada de Kate e sua maravilhosa comida e a sua sinceridade e conselhos amorosos e a figura materna que cuidava um pouco de mim... eu não tinha mais certeza de nada depois daquilo. A única certeza que eu tinha era que eu iria para os Jogos Vorazes e

Mas Sttefie apareceu alguns instantes depois daquilo e eu consegui enxugar as lágrimas bem antes que ela botasse os olhos em mim. Ela disse alguma coisa referente a trem e me pegou pelo braço gentilmente e me levou até para fora do gabinete, seguindo por um corredor e outra porta, onde eu vi uma rua e um carro. Ela adentrou no carro e me obrigou, junto com Paniella, a entrar no carro e logo em seguida ele partiu.

Não ficamos muito tempo no carro. Ele seguiu em direção a uma rua reta e repleta de gente jovem e alguns adultos que não tiravam os olhos do carro e até aplaudiam, completamente eufóricos. Acho que o momento de pena sobre eu ter me voluntariado por meu irmão para os Jogos passou, pensei. E era melhor assim. Eu não queria ser visto como pobre coitado ou muito menos queria que sentissem pena de mim. E logo que o carro parou, nós estávamos diante a uma estação de trem. Nós três (Sttefie, Paniella e eu) saímos do carro e fomos em direção ao trem, adentrando nele.

Quando Sttefie nos levou para um vagão e a porta se abriu, meu queixo caiu no mesmo instante. Eu comecei a andar mais para dentro do trem e eu ainda fiquei muito espantado. Era completamente grande e tudo de primeiríssima qualidade, muito diferente dos móveis de madeira que eu tinha em minha casa no Distrito 4. Mesa, cadeiras de veludo azul, talheres de prata, jarras de vidro com sucos de diversas cores. Garrafas de conhaque e whisky, comida variada (isso ia muito além de pães e frutas) ― inclusive alguns alimentos que eu nunca tinha visto em minha vida ―, lustres, mesa pronta com jarra de frutas, pratos de porcelana e muitas outras coisas que eu nem mesmo sabia pronunciar o que era. Se eu pudesse pelo menos pegar parte da prataria e vender no mercado do Distrito 4, eu conseguiria muito mais dinheiro do que eu e meu irmão conseguimos juntar em três meses.

Sttefie pediu para que sentássemos em uma das poltronas azuis e assim fizemos, e logo ela saiu dali, dizendo que iria chamar nosso treinador e deixando Paniella e eu sozinhos.

Eu não disse nada. Eu só conseguia fitar o nada e ficar pensando no que eu realmente estava fazendo, no que eu estava me metendo... no que eu estava metido. Eu ainda não tinha acreditado que meu irmão realmente conseguiu ser tão azarento a ponto de ter seu nome selecionado. E que por conta disso, por conta de salvar a vida dele e por conta de deixá-lo em casa para Boris e para Kate, eu teria que ir aos Jogos. Teria que sacrificar minha vida pela de meu irmão. Eu não ligava, pois eu sabia que valeria a pena morrer para tê-lo em casa para seu filho. Eu poderia voltar, se eu conseguisse vencer os Jogos e poderia vê-los novamente; se eu conseguisse vencer.

Logo em seguida, uma porta se abriu e apareceu uma senhora que aparentava ter pelo menos uns cinquenta e poucos anos. Ela dois sorriu para nós gentilmente e se sentou em uma das duas poltronas da frente.

― Olá. Eu sou Mags ― disse a senhora. ― E serei sua mentora.


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