O Massacre Voraz escrita por Charlie


Capítulo 1
1




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Eu não esperava a hora de passar pela Colheita da Capital para os Jogos e acabar com essa ansiedade que eu sentia. Eu sabia que as chances de meu irmão e eu sermos selecionados eram poucas, comparado ao tanto de adolescentes que tem nesse Distrito, mas mesmo assim aquilo me deixava aflito. Meu irmão tem dezessete e eu tenho treze. Só faltava mais um ano (além desse) para meu irmão se livrar da possível morte que lhe aguardaria se ele fosse convocado para os Jogos.

Eu não queria, para ser franco. Eu não tinha figura paterna, pois meu pai morrera em um naufrágio quando eu ainda era um bebê e, desde então, Viktor é meu irmão/pai. E perder Viktor para um possível massacre não era uma ideia boa de se ter, apesar de eu saber que ele daria um bom Carreirista.

Meu irmão e eu somos pescadores. Passamos o dia num barco à procura de peixes e mais peixes na praia de água clara que temos em nosso Distrito.

Hoje não era diferente.

Viktor estava com a rede à mão, pronto para lançar e eu estava preparando alguma isca na vara de pescar ― Viktor nunca deixou que eu lançasse a rede.

― Ei, irmãozinho... venha ver! ― disse ele, parado perto da borda do barco. Viktor segurava a rede com tanta força nas mãos, que os nós dos dedos estavam brancos. Prendi a vara de pescar com uma corda à outra borda do barco e aproximei-me dele lentamente. ― Veja... ― sussurrou ele e indicou a água com o queixo.

Semicerrei os olhos para ele e franzi a testa.

― Por que está sussurrando? ― perguntei baixinho também.

― Shhh, Clive, só observe! ― disse ele em outro sussurro.

Franzi a testa para ele novamente, mas olhei para a água.

Nas águas claras, um enorme cardume passava bem a nossa frente. Todos prateados e movimentando-se como se estivessem dançando em uma música num ritmo acelerado e divertido. Podia até ser linda aquela imagem se você visse de um ângulo totalmente diferente de nós (pescadores), mas para meu irmão e eu, aquilo significava comida, dinheiro, trabalho, obrigação e todas outras coisa que pensavam para se pôr dinheiro em casa ― e não grande quantidade dele.

― Segure a rede desta forma... ― disse ele baixinho novamente e puxou um pouco mais da rede para a mão direita. ― E... ― no segundo seguinte que meu irmão disse e, ele jogou a rede tão rapidamente que eu quase nem percebi a manobra que ele tinha feito.

A rede caíra no mar e ele deu corda na mesma, esperando.

― Quando vai me deixar manusear a rede? ― perguntei um tanto com raiva.

Viktor nunca deixou que eu manuseasse a rede. Eu sempre pedia a ele desde criança quando ele me levava para passear em seu barco (que herdara de nosso falecido pai) quando tínhamos um tempo livre depois de recebermos treinamento da Capital (cujo qual ele não mais participava) para os Jogos. Mas ele sempre dizia que eu era novo demais para tal coisa. Ele me ensinou todo o procedimento assim que começamos a andar de barco (quando eu tinha seis anos), mas nunca deixou sequer eu tocar na rede. Eu achava que era ciúme dele com aquela maldita rede, mas ele bufava e tirava sarro de minha cara dizendo que não era nada disso. Mas no fundo eu sabia que era. Desde então, a única coisa que eu era bom era armar armadilhas para peixes, preparar iscas, armar a rede, traçar perfeitos nós (segundo minha falecida mãe), usar bem um tridente, uma peixeira e sabia lutar muito bem. Viktor sabia fazer tudo isso bem mais do que eu (exceto lutar como antes) por conta de sua experiência e idade, mas eu era tão bom quanto ele, claro.

― Você é fraco demais para puxar uma rede com muita quantidade de peixe. Ia acabar sendo arrastado para o mar ― disse meu irmão sem tirar os olhos da água.

Eu segurei o impulso de empurrá-lo para o mar. Eu sabia que se eu fizesse aquilo, ele iria virar uma fera, me punir e com certeza iríamos perder os peixes ― eu não podia deixar o luxo de perdermos os peixes. Então eu engoli o impulso de empurrá-lo e de xingá-lo na mesma hora.

Eu não era tão magricela quanto ele dizia. Eu não era nem tão magro. Eu tinha braços um tanto fortes e pernas um tanto malhadas de tanto carregar redes com peixes e peso com a troca e algumas compras de mercadorias no mercado no Distrito 4. Ele sabia disso. A única coisa que me fazia parecer indefeso era o tamanho e a idade. Eu era baixo e tinha treze anos.

― Mas preste atenção nisso... ― disse ele e me puxou para mais perto dele. ― Com a mão que tiver mais habilidade, enrole-a em seu antebraço e puxe a corda com toda sua força assim... ― disse ele enrolando parte da corda da rede em seu antebraço direito e começou a puxá-la. ― E depois solte para fazer tudo de novo, entendido? ― perguntou ele sem me olhar, soltando a corda e fazendo todo o procedimento novamente.

Eu não disse nada, mas apenas assenti para ele e comecei a puxar a corda da rede que ele já tinha puxando e a enrolá-la no cotoco de madeira que tínhamos para amarrar a corda da rede ― não tínhamos um guincho mecânico para ajudar a puxar.

Quando puxamos o suficiente para ver a rede, conseguimos ver mais de noventa por cento do cardume que tínhamos visto estava capturado. Eu dei uma grande gargalhada e Viktor levantou o punho, completamente satisfeito consigo mesmo, e deu um sorriso de lado.

― Um dia você vai ser tão bom quanto eu ― disse ele e bagunçou meu cabelo.

Ri dele um pouco sem graça.

― Espero que sim ― sussurrei de volta e ajeitei minha cabeleira.

Ele riu.

― Vai sim, menino ― ele me deu uma piscadela. ― Bem, maninho ― disse ele ―, depois dessa, vamos para casa.

Assim que ele disse aquilo, ele terminou de trazer os peixes para o barco. Entrei na cabine e ele veio logo em seguida.

― Você conduz ― disse a voz dele atrás de mim.

Virei-me para olhá-lo e ele sorria para mim. Contente ― porque ele nunca tinha me deixado manusear o barco ―, sorri para ele e movi o timão para que nos levasse em direção à praia. E fomos para o determinado local, para que pudéssemos levar o cardume capturado para o mercado e comercializá-lo.


Viktor e eu chegamos ao pequeno vilarejo em que morávamos no Distrito 4 (após levar todo o cardume e comercializá-lo, é claro). Não era repleta de casas, mas os habitantes eram bastante simpáticos. Ao menos o meu vilarejo era assim.

Assim que abri a porta, minha cunhada com meu sobrinho em seu colo foram à primeira coisa que eu vi. Viktor saiu de trás de mim e foi direto para perto da esposa ― Kate (minha cunhada) e Boris (meu sobrinho). Viktor havia se casado com Kate quando ambos tinham quatorze anos. Por que tão precoce? No mesmo acidente de barco que matou os meus pais, matou os pais de Kate também. E Viktor e Kate já estavam namorando desde que eu podia me lembrar, então eles só anteciparam isso. E, há dois anos, Boris nasceu.

Era estranho e cruel ter o pensamento de que Viktor podia ser selecionado para a Colheita, deixando a esposa e o filho para trás. Ele até tinha a ideia de se oferecer para os Jogos e se tornar um Carreirista na época que nossos pais eram vivos. Mas depois que meus pais morreram e ele teve um filho com Kate, todo dia de Colheita ele ficava completamente tenso e torcia para que ele não fosse um tributo. Eu tinha certeza que esse nervosismo todo era porque ele tinha se tornado pai. E eu não tirava sua razão. Eu preferia ir aos Jogos no lugar dele caso ele fosse selecionado, mas isso era improvável. Não pusemos nossos nomes para receber mais grãos da Capital, então nossas chances eram bem pequenas, comparado ao número de pessoas inscritas para os Jogos.

Viktor, Kate, Boris e eu nos sentamos à mesa e comemos um almoço onde comemos peixe frito, legumes, arroz e alguns pães e suco das laranjas colhidas no dia anterior. Não era uma refeição tão simples assim. Hoje havia pouca fartura, porque teve sobremesa: frutas; maçãs, laranjas e um pouco de manga e maracujá. E comemos tão bem que, quando chegamos à parte das frutas, só conseguimos comer maracujá e a calmaria veio logo em seguida.

Era completamente necessário comer maracujá num dia de Colheita. Ter aquela tensão que nos consumia toda vez que liam os nomes era completamente assustadora. Houve casos de que meninos e meninas vomitaram e passaram mal por conta da tensão. Não falo por mim, porque eu não tinha total medo de ser chamado para os Jogos, mas eu já vi muitos no Distrito 4 desmaiarem.

E afinal de tudo, eu me sentia completamente calmo com essa tensão toda. Minhas chances de ser selecionado para os Jogos eram de uma em quase cinco mil. E eu sabia que não iria ser selecionado assim. Eu podia ser um pouco azarento, mas eu não era azarento ao quanto de ter meu nome tirado dentro daquela bacia de vidro repleta de nomes.

Mas eu não podia me atrasar com o horário da Colheita. Meu irmão, a esposa, o filho e eu saímos para ir em direção à praça da prefeitura. Não demorou muito tempo para chegarmos lá, para ser bem franco. Lá estava repleto de gente, como sempre era no dia da Colheita. O lado esquerdo tinha os meninos e o lado direito às meninas. Cada lado estava repleto de gente com as idades que a Capital dizia sermos aptos para começarmos a pôr nossos nomes para os Jogos.

Meu nome estava escrito e colocado naquela bacia ali pela segunda vez. Era o meu segundo ano nos Jogos e, com isso, tinha pelo menos três papeis com o meu nome e o do meu irmão estava bem mais do que isso. Era triste saber disso, mas tinha tanta gente para ser chamada ali, que eu simplesmente ignorei a hipótese de ser o meu irmão. Ele não era azarento como eu, então ele não seria selecionado para os Jogos.

O palco do prédio do prefeito estava com a bandeira da Capital e com um microfone de prata no centro dele. O prefeito, a esposa e mais alguém que eu não sabia quem estavam sentados em cadeiras de madeira perto do canto esquerdo do palco. Meu irmão e eu conhecíamos bem o prefeito, ele era um dos nossos primeiros compradores no mercado de peixe. Era o nosso maior comprador, na verdade. Sempre sorridente. Mas desta vez seu sorriso não existia em seu rosto sério e perturbado. Talvez estivesse sentido pena de mim por ter me voluntariado por meu irmão. Havia guardas vestidos de branco por toda a praça e muitos escoltavam onde os possíveis tributos ficavam e havia muitos mais perto do prédio do prefeito.

Separando-se de sua esposa e carregando o filho no colo, meu irmão foi à mesa que era para nos inscrevermos e, com ele e depois de nos inscrevermos naquela mesa com uma pequena gota de sangue, fomos para o lado dos meninos. Mas eu não pude ficar perto dele, porque eu era mais novo, então eu tive que ficar mais à frente do palco do prédio do prefeito. Mas eu também não liguei... o efeito do maracujá que eu havia comido estava me deixando completamente calmo e eu agradeci muito por aquilo.

Sttefie (uma mulher branca que mais parecia ter uma pele cinza, cabelos exóticos e em um vestido verde que me dava enjoo) chegou para dar início à cerimônia, nos dando boas vindas a todos nós na trigésima nona edição dos Jogos Vorazes. Ela disse alguma coisa que eu fiz questão de ignorar ― porque era a mesma baboseira que no ano anterior ―, e ela passou o filme de “incentivo” para nós; o filme dos Jogos Vorazes, onde mostrava que o período após a guerra, como consequência, o país havia criado os Jogos Vorazes como prova de mantimento de paz e equilíbrio no nosso país (Panem). Mas era tudo fachada, pois sabíamos que aquilo só era para mostrar o quanto um menino ou uma menina estava lutando para se salvar, a ponto de tirar uma vida de outra pessoa. Eu sabia que aquela carnificina toda que o filme mostrava era apenas para dizer o quanto a Capital era poderosa sobre todos nós e que queria tudo certo, e, caso contrário, eles sabiam como eliminar todos que o fossem contraditório.

Quando o filme acabou, Sttefie deu um passo à frente e dirigiu-se ao microfone.

― Que demos início à trigésima nona edição dos Jogos Vorazes ― disse Sttefie. ― E que a sorte esteja sempre ao seu favor.

Ela bateu palmas e alguns dos possíveis tributos bateram palmas junto com ela. Mas somente alguns que se atreviam a se dar o luxo de se voluntariar aos Jogos. Mas, eu sabia que no fundo de tudo, todos ali tinham medo de se voluntariar a uma edição dos Jogos. Eu bati palmas, mas foi só por ironia. Mas outros beijaram os três dedos do meio da mão esquerda e ergueram ao ar, o que eu também fiz depois de bater as palmas ironicamente.

Ninguém queria morrer. Ninguém quer, na verdade. Ninguém sabe se, se você for para os jogos, você voltará vivo. As possibilidades de sobrevivência eram poucas. Ou você matava, ou você morria. Ou você morria de sede, ou você morria de fome. Ou você desidratava por conta do calor, ou você morria de tanto frio. Havia várias edições dos Jogos Vorazes em que alguns tributos morreram nessas condições. Tudo era possível dentro da arena, uma vez que ela mudava a cada edição dos Jogos.

― Vamos selecionar o tributo ― disse Sttefie. ― Primeiro as damas.

Ela seguiu para a bacia da minha direita. Ela mexeu um pouco e tirou um papelzinho, e voltou para o microfone.

― E o tributo feminino do Distrito 4 é... ― ela abriu o papel e leu: ― Paniella Pointez!

Sttefie começou a bater palmas, mas somente alguns fizeram o mesmo e outros ergueram (inclusive eu) os três dedos do meio da mão esquerda. Como eu havia dito: ninguém realmente estava disposto a dar a sua vida por simplesmente ser reconhecido por toda a Panem. Ou até mesmo para mostrarem ato de coragem e de “bravura”.

Havia uma forma de sobreviver, é claro. Se você fosse um Carreirista, era bem provável de suas chances de sobreviver e vencer aos Jogos aumentasse. Os Carreiristas sempre venciam os Jogos. Sempre. Era raro ver algum tributo de outro distrito que não fosse do Distrito 1, 2 e o 4 (o meu) vencer. Eu sabia que se meu irmão fosse selecionado (mesmo eu sabendo que ele não iria) ele seria um Carreirista. Viktor tinha tamanho potencial para vencer os Jogos, eu nunca duvidei disso, mas eu não queria ter a ideia de ter meu irmão numa arena que as chances de morte dele seriam inúmeras e deixar um filho e uma esposa para trás. Não parecia ser certo.

Eu queria poder fazer alguma reclamação por conta dos Jogos. Dizer que nem todos eram obrigados a participar. Dizer que a guerra havia acontecido anos e anos atrás contra os aliados do Distrito 13 (que nem existia mais) não era de nossas contas. Dizer ao presidente Snow que todos nós (Distritos) já tínhamos entendido a mensagem e aprendido a lição. Dizer que estávamos fartos de termos que sacrificar um filho ou uma filha para os Jogos só para mostrar o quanto a Capital era poderosa ― porque quem iria assistir aos Jogos, se ser os habitantes dos Distritos, seriam os habitantes da Capital e eles se divertiam com aquilo. Dizer que eu não estava disposto a me sacrificar, nem a sacrificar a vida do meu sobrinho, da minha cunha e nem mesmo a do meu irmão. Dizer que já basta de Jogos. Queria dizer todas essas coisas e mais, mas eu sabia que se eu falasse alguma coisa, eu poderia ser morto.

Paniella, uma menina ruiva e que parecia ter pelo menos quinze anos, saiu do meio das meninas e deu um passo à frente, seguido de outro em um ritmo não demorando, porém firme, até chegar ao lado de Sttefie no palco do prédio do prefeito.

― Vamos à seleção do tributo masculino ― disse Sttefie.

Ela saiu de perto do microfone de novo e foi em direção à bacia e, mexendo um pouco, ela tirou mais um papel. Ela voltou-se para o microfone.

Por um segundo, meu coração acelerou. Pensei se o próximo tributo seria Viktor, mas eu sabia que ele não era tão azarado assim, então eu relaxei e quase pus um sorriso no rosto.

― E o tributo masculino do Distrito 4 é... ― ela abriu o papel e leu: ― Viktor Kyllian!


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