Uma Noite no Halloween. escrita por Ytsay


Capítulo 5
Halloween e aquilo que os humanos não acreditam que exista. - Final




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Fora da casa o tempo corria pela madrugada, ocupado apenas pelas festas estendidas de Halloween. Os vizinhos de Tália estavam dormindo e não se importavam com os gritos e barulhos, e nem mesmo nos anos passados se preocuparam com o que a família dela fazia, afinal, o pai da garota era o estranho da rua e ela era filha dele.

O pulso baixo da Tália não dava para ser notado por nenhuma das duas criaturas que estavam na casa e tinham os sentidos mais apurados. E até ela acreditou que estava morta quando teve sua primeira experiência fora do corpo, como se sua alma se apegasse aquela situação que se desenrolava na casa e necessitasse assistir como o jovem, que disse querer ajuda-la, ia escapar. Seu espectro flutuava próximo do teto. Tudo era frio a sua volta, como seu corpo estava dentro da banheira ensanguentada onde Caronte a encontrou, e ela nada podia tocar ou sentir nada, nem mesmo se ver ao estender o que achava ser sua mão em sua frente. Ela não existia, mas via o cômodo e o que acontecia sem nada poder fazer.

O jovem sobre seu corpo parecia frustrado. Havia parado por um segundo, talvez pensando, e então — deixando a alma de Tália se perturbar lá no alto — ele tirou a blusa ensanguentada dela, deixando-a apenas com a roupa de baixo. Em seguida, enojando-a mais, ele a sujou com o próprio sangue de seu ferimento, espalhando o líquido escuro sobre os ferimentos dela e depois no rosto. Tália queria gritar para ele ficar longe dela, mas não ouve voz e nem uma reação de seu corpo ali em baixo. Ela desejou partir logo pra não ver o que ele podia fazer com seu corpo tão desprotegido.

Do fundo de sua garganta Angus soltou seu uivo grosso e ecoante, buscando garantir que algum irmão lobisomem viesse até ele; assim, se o magrelo meio humano o vencesse teria que uma nova luta logo em seguida para não sobreviver. Seus pulmões faziam ruídos crescentes e borbulhantes, por culpa da ferida pela madeira da gaveta que Caronte lhe fez. Seus olhos não mais viam, então tinha apenas seu faro, mas este era atrapalhado pelo próprio sangue e pelo sangue fedido de Caronte, que lhe chegava como a coisa mais mal cheirosa do planeta.

Demorou um tempo para Angus reencontrar a escada, mas a subiu enraivecido e atrás da humana, sua presa para aquela noite de lua inteira. Quando chegava à porta do banheiro, de onde vinha um rastro confuso do cheiro férreo do sangue humano, ele recuou a tempo de evitar os punhos do jovem mestiço. Mesmo sem ver, o lobisomem estendeu as garras para a sua frente e avançou pra cima de seu inimigo. Os dedos menores de Caronte se enroscaram com o dele e Angus fechou os seus, sentido que conseguia fincar as garras nas costas das mãos do jovem que apenas rosnou de dor. Subitamente Caronte o puxou com algum golpe de luta de humano, que tirou suas patas traseiras do chão, e o jogou para o outro lado do corredor. Quando Angus se deu conta estava tombado de costas no piso, e odiou que o menino pudesse subitamente alcançar forças semelhantes à dele, mesmo por curtos segundos.

Caronte já não pensava exatamente no resto da vida que teria, vivia apenas aquele momento com sua raiva contra o monstro. Ele detestava aquela criatura com quem dividia o mundo que os humanos não conheciam — e incentivavam no Halloween achando que não existia — e mais ainda naquele momento depois de sua missão pessoal ser um fracasso.

Ele empurrou os ombros de Angus de volta ao chão, quando o animal tentou se por de pé, e o manteve no lugar ao deixar um joelho sobre uma das grandes orelhas caninas do inimigo. Em um bolso do jeans ainda carregava a blusa umedecida pelo sangue ralo de Portia, para atrair Angus pra ele, mas teve um novo plano. Quando o lobisomem urrou, abrindo as mandíbulas e buscando alcança-lo com as garras, Caronte enfiou o punho carregando o tecido entre os dentes pontudos, surpreendendo o monstro cego. A criatura fechou a boca antes de perceber a real intensão do jovem. Por pouco o garoto não teve a mão decepada pelo estalo das mandíbulas, mas conseguiu largar o tecido nas profundezas daquela garganta maligna, e depois se afastou, fazendo silencio e observando a agonia que se formava na criatura.

Angus logo notou o sabor do sangue humano e também um pouco do de Caronte, mas pior que isso foi notar que o ar não passava. Não ia, nem saia. Em movimentos agitados tentou se por de pé, mas recebeu um chute no peito de Caronte e vários outros com a força extra-humana. O monstro se viu sendo levado como uma bola de futebol pelo corredor, aflito com sufocamento e sem conseguir se concentrar para revidar.

Na porta para o quarto de hospedes, o lobisomem enfiava a própria mão em sua garganta, ferindo sua boca com as garras afiadas e em desespero enquanto chiava em busca de ar. Caronte, mesmo com as mãos feridas, segurou cauda peluda e nojenta que chacoalhava, e arrastou Angus para dentro do quarto murmurando: “Espero que tenha gostado da refeição...”.

Ao largar o animal no chão, Caronte observou mais um pouco seu plano dando certo. Sua vingança estava indo muito bem até para ele mesmo... Mas tinha que terminar aquilo. Agarrou uma perna do lobisomem de qualquer jeito, lutando um pouco com a criatura que queria voltar a tentar se desengasgar, e, recorrendo a sua força extra, jogou Angus contra a janela do quarto no segundo andar.

O tempo estava contado. O impacto contra o chão depois de cair ajudaria na falta de oxigênio, o ferimento no pulmão e olho desperdiçando sangue o faria ter menos força. Depois, apenas mais alguns minutos e seria o fim daquele lobisomem, e nunca mais ele ia repetir sua caçada especial na madrugada de Halloween. E mais, estando lá em baixo o jovem Caronte teria menos trabalho de arrasta-lo e esconder o corpo, se aproveitando do bosque selvagem aos fundos do terreno da casa.

Da janela quebrada Caronte assistia a morte do lobisomem, que era molhado pela chuva da madrugada e iluminado pelos clarões dos raios. Ele teve certeza de seu sucesso quando a criatura se destransformou, se tornando novamente o ser com aparência de homem que por décadas vagava naquela região e já fizera tantas outras vítimas.

O telefone (do tipo antigo, que não usa eletricidade) da casa toca. Um tilintar solitário que ecoa pelo ambiente silencioso, escuro e frio, chamando atenção do rapaz para o que deixou pra trás até que parasse. Caronte então pensou se devia ir ver Tália antes de ir, não podia fazer mais por ela, pois não conhecia nenhuma forma de curar que sobrepujasse a morte; e até a si mesmo precisava dar um jeito antes que fosse tarde, sua parte monstro o ajudaria a sarar mais rápido, mas a anemia iria controlar seu bem estar por dias e o deixaria fraco.

Lentamente avaliou a mão ferida ao som do telefone que retornava a tocar, e só quando tudo se silenciou que ele deu um passo para trás e foi até o cômodo manchado de vermelho e bagunçado onde a garota estava.

— Eu devia ser seu herói, Portia — sussurrou, a olhando um pouco e acariciando delicadamente o rosto empalidecido da moça. — Desculpe.

Então, quando as pontas de seus dedos passaram levemente no pescoço dela, Caronte percebeu o que a agitação e raiva de pouco antes havia escondido o leve pulsar que passava na artéria. Isso lhe deu esperança e animo, pois seu corpo já começava a dar sinais da pôs batalha com o cansaço, desanimo e dores profundas. Ele sorriu a deixando ali mesmo e desceu as escadas semidestruída pelas diversas passagens do lobisomem.

Caronte parou diante do telefone justamente quando este voltou a tocar pela terceira vez, e o desligou rapidamente, tirando e pondo no gancho, antes de pega-lo para discar o numero da emergência. Esperou que a atendente dissesse algo, ouviu-a fazer perguntas em dúvida, e finalmente disse que era uma emergência e que deviam ser rápidos. Sua voz era quase um murmurar e a moça quis que ele repetisse, mas Caronte desligou.

Sozinho o jovem conseguiu levar o corpo — bem mais leve — para o meio do bosque, distante da casa que logo ganhou vida com as pessoas de uma viatura policial e de uma ambulância. Aquela noite havia acabado, e Caronte procuraria não olhar para seus erros na primeira tentativa de conter as criaturas que quisessem fazer mal aos humanos. Afinal sua missão de vida estava apenas no começo e estava aprendendo, no fim faria mais bem em lutar a favor dos humanos, a raça á qual sua metade racional pertencia, do que ajudar a malicia impune dos monstros.

Tália foi salva pelos paramédicos, assim como em parte pelo poder do sangue mestiço de Caronte. Infelizmente muitos não acreditaram em sua história de lobisomem, e sugeriram outra que parecia mais irreal para a jovem: Um cão de rua havia invadido a casa na madrugada, a assustado tanto que a fez ficar enlouquecida e a fez ter um surto psicótico agudo. O surto a fez acabar com o cão de forma mórbida e cruel — o que explicava os uivos e todo o sangue pela casa — e a se automutilar antes de ficar na banheira quando acabou seu trabalho e seu corpo não aguentou mais. Disseram que ela arremessará o corpo do bicho pela janela do quarto de hospede antes de telefonar para emergência, mas não explicaram muito bem o sumiço do corpo, culpando algum bicho selvagem. Por essas conclusões trataram Tália Portia como louca, e a história se encerrou com ninguém querendo saber a opinião dela e seguidos meses de acompanhamento psiquiátrico, internações e remédios para controla-la.


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Notas finais do capítulo

Obrigada por ler, obrigada á Taw pelos comentários, é sempre bom saber que existe pessoas que não se intimidam de ser a unica presente na fic e alegra as postagem do autor ^_^
Bem, por enquanto é só isso pessoal.
Estarei presente na fiction interativa Os insólitos.
Até qualquer momento, ou quem sabe em alguma Interativa que eu venha a escrever. Fiquem bem e abraço.