Contos escrita por Carlitos


Capítulo 13
Pesadelos




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Corria o olhar pelo apartamento. Cada móvel ali a gritar, a recordar doces tempos, épocas melhores. A cabeça gira em pensamentos, que surgem desorganizados, em fios embolados, que se vão, aos poucos, desenrolando em fios organizados. E trazendo à luz os pensamentos insones.

 

Que a consomem. Houve tempos felizes, de sorrisos, doces lamentos. Tempos em que a vida era colorida. Que caminhava pelas ruas, sorria, feliz. Felicidade. Sentimento que se faz em cores vibrantes.

 

Mas o tempo passa no tic-tac do relógio. Seus pensamentos giram. À beira de um precipício. Lágrimas lhe escorriam o rosto. Olhos inchados na madrugada. Noite após noite de choro.

 

Em lamentos sórdidos. De mau gosto. Depressão profunda. Um abismo debaixo de seus pés. Um sentimento crescente, que lhe traz outros. Mais tempo necessário para curar a dor.

 

Que não passa. Só aumenta. Haverá talvez, ainda, um tempo de alegria! Mas não sabe. Cadê a esperança? Alguém ainda pode esperar algo de diferente? Esperar que lhe pudessem dizer que não precisava de uma solução tão drástica, pois a vida mudaria.

 

Entretanto a tristeza, sorrateira, sempre prevalecia, esgueirando-se pelos cantos e sempre surgindo, reluzente, por entre fendas.

 

Seu apartamento mobiliado, a mobília que lhe lembrava dele. Era tudo ele. Tudo dele. Beijos cálidos às paredes, roupas ao chão, de um tempo em que se entregava a todas as vontades dele, enchendo-se, também nisso, de prazer. Mas daria um jeito de não se lembrar disso mais. Deixaria a vida, pularia direto à morte.

 

Daí que não tivesse perdão? Uma eternidade no inferno parecia até infantil, tamanho o sofrimento que já sentia na Terra. Uma vida sem cores. Sem calor. Sem motivos.

 

Um emprego de que não gostava, colegas que não suportava. Não tinha paz, saída, só torpor. Nada cristalino em sua vida. Como os raios de sol atingiriam seu mundo e lhe iluminariam as ideias? Que adianta viver assim? 

 

Mais inteligente talvez fosse morrer. Deixar esta vida para trás, de sofrimento.

 

Que lhe diriam seus pais se assim fizesse? Qual seria a tristeza deles? Por que os trairia assim? Já os tinha traído. Já tinha traído eles quando não trilhou o caminho que eles tinham planejado para a sua própria vida. Quando disse, decidida, que seguiria sua própria convicção, e só faria aquilo que quisesse.

 

Ó, era bem verdade que lhes responderam "o importante é que você seja feliz. Estando feliz, ficamos felizes também", mas era mentira; tudo nessa vida é cobrança e expectativa. São réguas, métricas, que nos enfiam goela abaixo, como comprimidos engolidos a seco. 

 

Uma traição a menos, outra a mais, não faria a menor diferença.

 

Uma taça, um vinho barato. Uma música a mais. A última.

 

Uma mesa, uma cadeira, um sofá. Roupas para guardar. Um apartamento cheio de móveis que lhe lembravam dele. Um amor fervoroso, gentil, atencioso. Que há muito tempo aconteceu, neste microcosmos onde hoje mora sozinha com seus pensamentos insones disformes. Pelos céus, abreviar-lhe a vida seria um favor a si mesma!

 

Um ato de amor consigo mesma! Sua dignidade, uma ode à própria honra! Não continuaria a viver assim, como um zumbi sem vontade, com uma nuvem de trevas sobre a cabeça. Dias fechados, de nuvens negras, sempre, para sempre.

 

Tinha já tantos comprimidos, juntaria-os todos e toma-los-ia juntos, num único gole d'água. Sentiria seu corpo, leve, a desfalecer-se. Desvaneceria da vida numa morte gentil, sem tormentos.

 

Quantas noites seu amor gentil não lhe rasgara por dentro, nos momentos ardentes, sob pretexto de um amor cálido, tórrido. Porque mesmo as coisas do coração magoam, pois transbordam. Humanos e corações não tem coerência. Agem por instinto para depois racionalizar seus atos.

 

Naquelas noites de prazer em que não queria comparecer, mas o fazia para satisfazer o ego dele. Estavam mais frequentes nos últimos tempos, mas não queria que levassem ao fim de tudo. Quantas desculpas não foram inventadas, quantas palavras não foram cuspidas, quantas mentiras ditas para que não magoasse?

 

E mesmo assim ele foi embora, deixando-a só. Quanta energia gasta à toa. Era só pra dar um tempo; o amor ainda existe e está aí, a atormentá-la! Ele deveria usar-se mais de sua razão e compreender que ela ainda o ama e quer passar sua vida com ele, mas ele, ocupado, tratou de arranjar-se com outra e ir embora.

 

Como um peixe preso num aquário, sem nunca ver o oceano, assim se sente todos os dias. Não deveria ela procurar uma outra coisa, um outro homem? Para quê? Para a tristeza encontrar então novas brechas e lhe contaminar todas as coisas, e fazê-la sofrer de novo?

 

Porque assim agem as trevas, sugando todas as coisas, tirando-lhe toda a vivacidade. Tomando-lhe de assalto todos os seus bens e suas conquistas, o calor e as cores que se pode perceber no mundo. Talvez seja melhor mesmo findar sua vida ali, deixar que as trevas lhe levem embora o espírito.

 

Minta pra mim, minta pra mim de novo! Diga-me, diga-me que foi engano, que ainda quer me ter de volta em seus braços! Seus olhos não mentiram, não esconderam a desaprovação quando ele lhe disse que não a queria mais, que não suportava mais, que a relação já não lhe dava mais prazer.

 

E ela nem percebera, pega de surpresa, o chão sumindo sob seus pés. Mas sabia, ah se sabia! Sabia que o tratamento não era mais o mesmo, com as palavras ficando frias, os beijos fracos, as noites menos cálidas, o prazer demorando a vir, fingindo orgasmos. Uma voz que dizia, não está bem, não está nada bem. Voz a quem mandava calar-se.

 

Houve momentos bons, o box do banheiro já testemunhara as mãos dele a lhe percorrerem o corpo; os afagos, sussurros, os dois colados, a agonia de duas pessoas como se quisessem tornar-se uma só! Mas isso já faz tanto, tanto tempo. Toda essa força, essa determinação, que se foi minando com o tempo, como as águas de um rio que se vai secando com o passar dos anos.

 

Afundada no sofá da sala, não tinha forças, talvez fosse ali. Talvez fosse ali, a morrer de inanição, ou de um ataque cardiaco. Dos seus batimentos a se acelerar, da vida a passar. Passar-lhe frágil. Fitou as suas mãos, contou seus dedos, e ao vê-los, sentiu como se não fossem seus, como se as mãos não fossem as suas. Sua identidade lhe escapara, uma vida toda a pensar no que tinha feito de si mesma. Uma vida inteira a se questionar se tivera valido a pena. Aonde mais iria, o que faria? 

 

Qual sua função? Qual o caminho? Pra onde caminhara até agora, se não para a borda de um abismo? Para que tanta crueldade, tanta agonia no mundo? Para que a existência se no final tudo viraria pó? Não precisaria mesmo dos remédios, tinha o coração disparado e a respiração difícil.

 

Tudo difícil, inacessível, todo esforço jogado fora. Tantos gritos no escuro, tantas tentativas frustradas. O que faria? Arregaçaria as mangas e começaria tudo outra vez? E das outras vezes que fizera isso, alguma lograra êxito?

 

Uma pausa; o coração que se acalma. A dor e a tristeza ainda estão em todo a sua casa. Uma desilusão e um apartamento solitário. Uma geladeira cheia, uma TV de tela grande, não se realizava de forma alguma.

 

Foi ao banheiro, olhou-se ao espelho. Grandes olheiras, olhos vermelhos. Inchados. Onde esta o orgulho, seu próprio brio? Deixar-se-ia abatecer-se assim, por conta de alguém? Não era ela própria capaz de se subsistir, de dar-se forças, levantar a cabeça e seguir em frente?

 

Seus beijos cálidos, um abraço caloroso. Um dia de encontro, em que estacionaram o carro na cabine do motel, adentraram ao quarto, sentindo-se invencíveis. Tinham um amor ali, amor forte, com as mãos dele a passear-lhe pelo corpo, tirar-lhe o vestido, acariciá-la os seios.

 

Beijar sua boca, demorar-se, brincar com seus lábios. As mãos dela, a desenhar-lhe o corpo dele, seus músculos por baixo de sua camisa, desabotoada, retirada. De se colarem os corpos, friccionarem-se, com desejo de se entregarem um ao outro. E agora, nada disso mais.

 

Nada mais. Não mais. Só um apartamento frio, um banheiro com um espelho a devolver a imagem de um rosto destruído, preso a um corpo desanimado, já quase sem espírito. Não deveria ser assim. Não deveria mais depender tanto de um sentimento. Deveria já ter maturidade para pensar em outro caminho, outra solução, que não fosse pular de cabeça para um abismo.

 

Abriu o armário, muitos comprimidos. Cada um prometia uma coisa. Pegou um monte numa das mãos. Fitou-os. Levou-os à boca, engoliu-os, tomando da água da torneira para ajudar.

 

Caminhou de novo à sala e sentou-se no sofá.

 

Os ponteiros do relógio correram para trás e mostraram um tempo  em que tudo era mais puro, mais simples. Que não precisava mentir, não precisava fingir ser o que não era. Quando o céu era azul, a grama era mais verde. O sol dourado corava seu rosto, e ela podia ser quem era. Sabia ainda quem era.

 

E quando em um jantar em um restaurante, sentados à mesa, bebendo vinho, seus olhares se encontraram. Ele tinha interesse genuíno no que ela dizia, ela o achava particularmente interessante. Mãos dadas, afagos, carícias no rosto. Havia leveza, havia doçura. Havia tempo, havia tempo.

 

Sua percepção do tempo foi-se escapando. O peso de seu corpo foi sumindo. Só havia um som distante. E, sem perceber, deixou de se importar.




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