As Crônicas de Pan Gu escrita por Nanahoshi


Capítulo 3
As Crônicas dos Reinos - Antes da tempestade de fogo


Notas iniciais do capítulo

Olá pessoal! Presentinho de Natal pros meus leitores ♥ Capítulo novo já entrando no desenvolvimento dos personagens *-*
Boa leitura!



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Ano 19990, Pan Gu, Vila da Ponte Quebrada.

A cesta de pães estava em cima da bancada da cozinha. Kitten ergueu a cabeça e farejou atentamente. Aparentemente ninguém estava por perto para lhe oferecer perigo. Ela se esgueirou silenciosamente até o seu alvo e, ao alcançá-lo, puxou uma faca da bolsa que carregava. Cortou um pão ao meio e pegou metade, devolvendo a outra metade ao cesto de forma que ele parecesse inteiro se alguém olhasse de longe. Pegou outro pão e repetiu o ritual. Assim que guardou a segunda metade de pão e a faca, Kitten suspirou aliviada e virou-se para a porta da cozinha na esperança de sair despercebida.

Mas um vulto bloqueava a passagem para fora da casa.

–Mãe! – arfou a menina. – Que susto!

A selvagem alta, com uma leve presença de rugas no canto dos olhos trocou o peso para a perna esquerda e encarou a filha.

–Não fui eu que entrei em casa feito uma assombração.

A garota selvagem calou-se. Olhou para os lados, torceu os dedos.

–É que... Hoje eu vou explorar os arredores além do meu limite. Então como vou ficar mais tempo fora de casa, pensei em levar mais comida...

A mãe balançou a cabeça e entrou.

–Tudo bem, tudo bem... Só não vá chegar muito tarde, mocinha.

–Não vou não. E não se preocupe. O Kat vai comigo.

Suspiro.

Como se aquele filhotinho estabanado fosse capaz de te ajudar se arranjasse algum problema, pestinha, pensou a mãe.

–Então vá. Fique longe da mata fechada e não se atreva a ir além dos limites do reino, entendido?

Kitten fez um biquinho e saltou para o vão da porta.

–Okay mãe! Amo você!

E correu casa afora.

–Não achou isso muito estranho, Keyla? – uma voz grave e profunda soou do corredor que ligava a cozinha ao resto da casa.

–Maddox! – reclamou a selvagem dando um pulo. – Vai brincar também de ficar entrando em casa feito fantasma!?

Um enorme homem-tigre adentrou o cômodo e puxou uma cadeira para si. Sentado, curvou-se para frente analisando a perna direita.

–Está tudo bem com sua perna, querido? - Keyla se aproximou e abaixou-se para examinar melhor.

Maddox, pai de Kitten, um dia fora um bárbaro do exército da Cidade Perdida. Enfrentara inúmeras batalhas em nome dos selvagens desde jovem, e durante anos carregou um fardo que nunca quis: o de matar. A culpa que o perseguia, um dia, lhe custou a perna direita. Em uma batalha, baixou a guarda por alguns segundos diante de um inimigo ponderando se deveria matá-lo ou não... Tempo suficiente para deceparem-lhe a perna. Agora ele vivia com uma prótese tosca de madeira que substituía sua canela. Sem condições de lutar, Maddox fora aposentado como inválido e vivia agora com a mulher e a filha numa pacata Vila do Reino das Feras.

–A dor de sempre. Mas então... Onde Kitten estava indo?

–De acordo com ela... Explorar os arredores com Kat. – disse Keyla se levantando e virando-se para a pia. – Mas eu sei que isso é mentira.

O selvagem ergueu as orelhas demonstrando apreensão.

–E mesmo assim você deixou ela ir?

–Ai Maddox... – a selvagem lavava as tigelas empilhadas na bancada de forma um tanto frenética. – Você realmente não percebeu o que a Kit anda fazendo, né?

O homem-tigre permaneceu em silêncio.

–É a Nana.

–Ah.

–Não percebeu que ela não está vindo mais aqui?

–Sim, mas...

Keyla deixou uma tigela escorregar que bateu no fundo da pia com um estalido agudo.

–Nanahoshi se recusa a voltar aqui porque está com vergonha.

–Como assim? E o que isso tem a ver com a Kitten mentindo aonde vai?

A mulher retomou o movimento circular com a bucha sobre as tigelas.

–Descobri há um tempo que a Nana vive quase como uma garota de rua na Cidade Perdida. Ela não tem pais, e o que se declara “responsável” por ela, o velho Lopine, mal tem comida para ele mesmo... Além disso, estamos em crise. Até nós, que nunca tivemos problemas com necessidades básicas, estamos em apuros.

–Então...

Keyla parou subitamente de esfregar. Ficou em silêncio e desligou a torneira. Algumas gotas pingavam na pedra retumbando assustadoramente alto na cozinha.

–A pequena Nana não quis mais voltar por medo de que descobríssemos e achássemos que ela só vem porque damos comida para ela.

O tigre ficou quieto.

–Então era por isso que os pães estavam desaparecendo.

–Sim... – a mulher começou a secar a louça molhada. – A Kit está levando comida pra ela todo dia.

–Você já viu?

Ela se virou para o marido. Um sorriso cálido de orgulho fez o rosto de Keyla brilhar.

–Querido... Acho que criamos nossa filha muito bem.

***

A cesta de pães estava em cima da bancada próxima à pia. A pequena selvagem farejou em volta.

Beleza! Parece que não tem ninguém por perto!, pensou a menina sentindo o estômago se revirar de felicidade e fome.

Colocando pé ante pé, ela deslizou para dentro da casa vazia. Subiu silenciosamente pela janela, pousando do outro lado sem fazer o menor ruído. Poderia se dizer que ela tinha a destreza de um gato, mas o par de orelhas que lhe enfeitavam o topo da cabecinha eram de lobo.

Devagar, aproximou-se da cesta e analisou os pães dispostos num círculo sobre um pano branco. Seu estômago roncou de fome ao sentir o cheiro da massa crocante, tão alto que por um instante acreditou que seria descoberta. Abaixou-se rente ao chão e esperou atentamente ouvindo com os dois pares de orelhas. Quando teve certeza que não corria risco de ser pega, voltou a analisar os pães.

Qual deles eu vou pegar? Não quero que percebam que eu peguei... E também eu não preciso de um tão grande...

O monólogo mental deixava a pequena ladra um tanto zonza. Ela não queria roubar. Odiava tudo que feria moralmente seus princípios. Além disso, era uma menina extremamente bondosa...

A guerra, o desespero e a miséria a levaram a isso.

Como se para acordá-la de sua ponderação mental, seu barriga voltou a reclamar pela terceira vez. Ela abraçou o abdômen e se encolheu sobre si mesma.

Desculpe... É que eu estou realmente com fome!

Sem pensar muito bem, ela meteu a mão entre os pães e puxou o que se localizava mais no meio. Escondeu-o em pedaços de pano que trouxera consigo e correu para a janela. Erguendo a cabeça o suficiente apenas para que seus olhos fossem visíveis do lado de fora, ela analisou a rua. Não havia muita gente por perto, mas ainda assim teria de esperar pra sair.

Esperou dois minutos. Três. A rua precisava ficar mais vazia...

Um barulho soou no fundo da casa. Seu coraçãozinho disparou.

Ai não...! Eles voltaram!?

O fluxo de sangue ensurdecia seus ouvidos, e seu peito ribombava com as batidas frenéticas de seu coração. Sem pensar, segurou na base da janela e saltou para fora da casa, esquecendo-se de checar se ninguém estava olhando naquela direção. Assim que pousou os pés na calçada, ouviu uma voz gritar:

–Ladrão! Olhem! Peguem ela!

Droga! Essa não...!

Mais por instinto do que por vontade própria, começou a correr desesperadamente para fora da cidade.

–Volte aqui, sua pestinha!

–Ladrazinha de uma figa!

–Peguem ela!

A menina passou correndo por alguns agricultores que voltavam do campo. Um deles, o que era meio homem, meio urso, percebendo do que se tratava a confusão, estendeu a enxada colocando-a no caminho da menina. No desespero, ela não percebeu o obstáculo, que acertou em cheio suas canelas. A pequenina foi ao chão rolando agarrada ao pão que acabara de furtar.

–É ladra! Não deixem ela escapar!

No chão, ela percebeu os vultos se aproximando. Tinha que fugir. Senão iriam linchá-la. Queria deixar o pão e sair correndo, mas seu estômago, mesmo em meio a toda aquela confusão, roncou de novo. Sua cabeça girava. Estava tonta de fome.

Movida por isso, ergueu-se do chão no momento em que o agricultor ia agarrá-la pelos cabelos. Ela abriu a boca e enterrou os dentinhos afiados no antebraço do homem-urso. Ele urrou de dor jogando o corpo para trás, dando os segundos que a menina precisava para escapar dos civis enfurecidos que estavam quase ali. Ao fugir para o vale, ouviu os pés enfurecidos batendo no chão nos limites da cidade.

–Ladra!

–Você me paga, sua imprestável!

Ela mal escutava. Corria o mais rápido possível para dentro dos campos áridos do Vale do Dragão. Seu estômago se revirava, suas pernas doíam e sua cabeça girava. Uma dor incomum lhe fazia arder os olhos ensopados de lágrimas que eram uma mistura de fome e culpa.

***

Lá fora estava uma gritaria. Já era quase impossível se concentrar nos pergaminhos.

–Yi Jie, que barulheira é essa lá fora? – reclamou Sarai.

–Eu não sei, Alteza. Quer que eu vá checar? – respondeu o servo pacientemente.

–Não precisa. – a pequena Ruhama interferiu – Só feche as janelas, por favor. Está difícil de concentrar...

–Claro, Alteza.

Ruhama e Sarai eram filhas do rei do Reino dos Selvagens. Ruhama era a mais velha, e estava sendo preparada dia após dia para herdar o trono do reino ao lado de um pretendente que seria escolhido por seu pai.

A pequena princesa voltou a olhara para os pergaminhos espalhados sobre sua mesa de estudos. As letras se embaralhavam diante de seus olhos e um zumbido constante em seus ouvidos lhe tirava completamente a atenção. Mexeu com impaciência nas folhas e suspirou.

–Eu vou tomar um ar no jardim, Yi Jie.

–Claro, Alteza. Entretanto, não se demore muito. Se seu pai encontrá-la fora do q-

–Eu sei, eu sei. Eu já volto. – e com essa última declaração, saiu pisando firme na direção do jardim do castelo em que vivia. Em contraste com a árida savana que rodeava a Cidade Perdida, o jardim real era quase uma selva verde pontilhada de manchas coloridas que podiam voar. E por mais bela que aquela floresta domesticada fosse, a pequena princesa sequer se lembrava que essas maravilhas existiam dentro do lugar que vivia. Apenas um ponto do jardim a interessava. Haviam pedras engolidas pelas plantas que antes haviam formado cômodos antigos do castelo. Explorando essas ruínas, Ruhama descobriu uma passagem subterrânea que se estendia em pequenos túneis por toda a extensão da construção real. Ela acreditava que eles iam além, espalhando-se como uma teia sob a Cidade Perdida. Entretanto o medo de ser pega fora do castelo sem autorização e a escuridão dos túneis esquecidos a desencorajaram a explorar as passagens mais a fundo.

Dentre as rotas que ela descobriu dentro de sua casa, a que mais lhe interessava era a que levava ao topo da pedra que encobria a área reservada para o castelo. No topo havia sigo esculpida a parte superior do rosto de um minotauro horripilante que assustava até mesmo os habitantes da cidade. E era exatamente no alto da cabeça do monstro que um alçapão se abria, possibilitando a quem subisse ali um vislumbre de toda a cidade e um pedaço do Vale do Dragão. Quando conseguia fugir de seus afazeres e de Yi Jie, a princesa passava horas admirando a imensidão das terras dominadas por sua raça enquanto sua cabeça zumbia com perguntas e mais perguntas.

Naquele dia em específico, Ruhama decidiu não se demorar ali em cima já que estava no meio de uma lição. Pelo menos ninguém a vira desaparecer no meio das trepadeiras do jardim. Sentou-se próximo à beira da cabeça do minotauro e olhou a praça central, sempre apinhada de gente. Comerciantes berravam seus preços e ofertas, pastores empurravam rebanhos para as saídas da cidade, alfaiates e artesões disputavam a atenção dos transeuntes balançando armaduras, roupas, colares, anéis e muitos outros apetrechos Um homem-leão com o pêlo assustadoramente negro martelava ruidosamente sobre uma enorme bigorna cor de chumbo. Dali não era possível ver se ele estava forjando uma lança ou uma espada.

–O que será que foi aquela gritaria de agora a pouco? – perguntou-se a princesa.

Seus olhos corriam distraidamente pela multidão. Sua mente se desligava do mundo que ela captava através dos olhos.

Caim. Caim.

Um ganido agudo estalou em seus ouvidos fazendo-a estremecer.

–Mas de onde...?

Ela se apoiou na rocha com as mãos e vasculhou em volta. Ao lado do castelo havia pequenas ruelas muito estreitas, muitas que acabam em becos sem saídas. Dali de cima, Ruhama conseguiu ver em uma delas um cachorro cor de areia muito magro ganindo para um vulto agachado contra a parede da rua. A selvagem aguçou a audição e prestou atenção na cena que se desenrolava.

O cachorro farejava o vulto ansiosamente. Seu rabo balançava tão rápido que chegava a fazer o ar silvar.

–Não! Sai daqui!

A figura encolhida se remexeu, revelando um bracinho fino que fez um gesto tímido para espantar o cão. O animal apenas abaixou o focinho e voltou a ganir.

–Eu não tenho comida pra você! Custou eu roubar esse aqui... – a voz era feminina e infantil, mas em determinado ponto da frase, o som foi minguando até sumir. Um soluço fez-se ouvir no beco, ecoando nas paredes.

–Ela... está chorando?

Neste momento, a menina ergueu o rosto e Ruhama pode ver sua expressão infantil contorcida pelo choro. Lágrimas já lhe encharcavam as bochechas e ela fungava constantemente.

–Eu... Sai daqui... Eu estou... Com fome...

O cachorro se sentou no chão. Seu rabo ainda não parara de balançar, e agora açoitava o chão empoeirado. A menina, com as orelhas encolhidas no topo da cabeça, olhou atentamente para o cão e começou a chorar um pouco mais alto.

Como a pequena princesa havia sido isolada completamente do resto do mundo desde o seu nascimento, era difícil para ela entender o que estava acontecendo. Para ela, fome, sede, miséria, morte e doença eram coisas que aconteciam apenas em histórias contadas em livros ou por bardos. A frase que a garota falara a pouco ainda martelava em sua mente enquanto ela tentava entender.

Ela está com fome. Por que ela simplesmente não vai ali nos comerciantes, pega alguns pães e come?

Foi aí que ela viu a menina esticando as pernas no chão e revelando algo que estivera escondendo entre as pernas e a barriga.

Um pão encardido.

O cachorro olhou para o alimento e começou a abanar o rabo duas vezes mais rápido. A pequena selvagem segurou as duas extremidades do pão e puxou-o, divindo-o em duas metades. Uma delas saiu um pouquinho menor que a outra. E então, a garota estendeu a mão com a parte maior para o cachorro.

–Toma. Pode comer.

Ele abocanhou a metade reservada a ele e, deitando-se no chão, começou a repuxá-la com os dentes como se fosse a comida mais suculenta do mundo. A menina também começou a mordiscar sua metade, olhando para a felicidade do animal enquanto comia. Pelo jeito que mastigava, parecia estar saboreando cada pequeno farelo.

Aquela cena impressionou a princesa de tal forma que ela demorou alguns segundos para escutar a voz de Yi Jie gritando-a ao longe.

Xi! Acho que demorei demais...

Antes de se virar para o alçapão e voltar para sua lição, Ruhama ainda vislumbrou um último gesto daquela garota. O cão já havia terminado de comer, e ela estendera a mão para afagá-lo no topo da cabeça. Porém, antes que ela alcançasse o animal, ele se adiantou até a menina e lambeu todo o comprimento de seu rosto de baixo para cima. A última coisa que a princesa escutou ao descer pelo alçapão foi a risada alegre da menina que estava com fome.

***

Brurlgh...

Mesmo tendo comido um pedaço de pão, ainda continuava faminta.

Algo molhado encostou-lhe na mão. Era o focinho de seu amigo canino com quem acabar de dividir uma refeição.

–Arf! – ele latiu todo feliz.

–Ah... Desculpa... Eu só tinha aquele pão...

Ele balançou a cabeça, seu rabo cortando o ar rapidamente. Seu focinho direcionou-se para o tórax da menina, onde esfregou energeticamente a cabeça.

–De nada. – Nana pousou a mão sobre o pelo encardido e afagou-o gentilmente.

–Bom, vamos sair desse beco horrível, né? – a pequena se levantou e começou a andar de volta para a rua apinhada de gente. O cachorro a seguiu balançando a cauda. Como aquela confusão a incomodava, decidiu sair da cidade. Ao passar pelo portão, vislumbrou uma árvore enorme que fazia sombra sobre o chão. Dirigiu-se para lá e sentou-se recostada em seu tronco.

–Ah, acho que se eu dormir aqui, talvez esqueça um pouco a fome...

O seu amigo encardido havia se aninhado ao seu lado. As folhas chiavam baixinho com a brisa que soprava. Com aquele som tranqüilizante, aos poucos Nanahoshi sentiu o torpor tomando conta de si. Quando estava quase adormecendo, algo lhe acertou em cheio no meio da testa, despertando-a num sobressalto.

–Ai!

O cachorro, que também ressonava, ergueu a cabeça e começou a olhar para os lados com as orelhas em pé. Podia-se dizer que sua expressão era de indignação por terem atrapalhado sua soneca.

–Mas o que foi... – a menina baixou os olhos para o seu colo. Na dobra formada entre as suas duas pernas, estava aninhada uma pequena noz.

–Uma noz?

Uma lembrança bem vaga começou a tomar forma em sua mente. Demorou alguns segundos para que ela se lembrasse por completo do que se tratava.

–Minhas nozes!

Ela se colocou em pé num salto e correu na direção da floresta do Vale do Dragão.

***

–Caramba, onde será que a Nana se meteu?

Kit já havia vasculhado toda a área do bosque na qual Nanahoshi poderia estar escondida. E não havia nem sinal de sua amiga.

Suspirou.

–Não me resta opção. Vou ter que ir procurá-la na Cidade Perdida.

Chegando lá, dirigiu-se para a primeira loja que encontrou.

–Oi, boa tarde! Por acaso você viu uma menina da minha idade, cabelos pretos e compridos, olhos azuis, pele morena... Ela tem orelhas e rabo de lobo.

–Hm? – o responsável pelo estabelecimento organizava os produtos numa prateleira de madeira. – Você está falando da Nanahoshi?

–Sim, sim! – animou-se Kit.

–Aquela ladrazinha sem vergonha estava causando confusão mais cedo.

–Ladra? – Kit imaginou ter ouvido errado. – A Nana não é ladra!

O selvagem com cabeça de urso riu.

–Não é? Ela causou a maior confusão hoje porque invadiu uma casa!

Kit arregalou os olhos. Impossível. Nana nunca faria uma coisa dessa.

–Impossível! Ela nunca faria uma coisa dessa!

Ele mudou de prateleira.

–Calma aí garota! Estou falando o que aconteceu.

–Pra quê ela invadiu uma casa?

O homem-urso deixou um saco de farinha cair no chão. Por sorte, não estourou.

–Ai... Parece que ela roubou um pedaço de pão... Mas não tenho certeza...

Kit congelou onde estava.

Um pedaço de pão?

Nana estava tão faminta à ponto de ser obrigada a roubar?

A menina baixou os olhos para o chão, o cabelo lhe escorreu pela testa.

–Hm... Obrigada por me informar.

O dono da loja agora estava muito concentrado na sua logística de organização.

–Ah... Nada!

Kitten saiu da loja e seguiu de volta para fora da cidade. Foi caminhando sem prestar atenção na direção que tomara. Mil pensamentos zumbiam em sua cabeça.

A situação está tão ruim assim? Nana falou que estava tudo bem! Ela... Ela... Ela disse que o Lopine estava alimentando ela bem! E que ela não estava passando fome!

O barulho de água corrente chegou aos seus ouvidos. Ergueu os olhos. Estava à margem do Rio da Alegria.

–Nana... – Kit lamentou olhando para seu reflexo na água.

–ME DEVOLVE! – um grito vindo do bosque fez a pequena selvagem dar um pulo.

Depois do grito, vários rosnados agudos se seguiram. Kit olhou para os lados, buscando a fonte do barulho. Começou a correr seguindo a margem do rio, na direção de uma pequena cabana de pescadores abandonada.

–ONDE FOI QUE VOCÊ COLOCOU AS MINHAS NOZES!? – a confusão continuava. Como estava mais próxima, Kit conseguiu reconhecer a voz.

Ah, finalmente!

Rosnados felinos soavam mais claramente agora.

–QUE DIABO DE GATO COME NOZES!? DESEMBUCHA KAT!

Contornando a cabana, Kitten se deparou com uma cena um tanto incomum. Nanahoshi rolava no chão esbofeteando um filhote de gato preto quase do mesmo tamanho que ela. O gato, que havia sito carinhosamente batizado de Kat por Kitten,, arranhava todas as regiões do rosto de Nana ao seu alcance. E se ela havia entendido bem, sua melhor amiga e seu gato estavam brigando por causa de nozes.

–MIAAAAAAAAAAAAAU! – protestou Kat arranhando o ombro de Nana.

–Faaala!

–Nana! Kat! – chamou Kit autoritariamente.

Os dois pararam subitamente de se matar e olharam para ela. Assim que reconheceu a amiga, Nanahoshi se colocou de pé e apontou acusadoramente para o filhote de gato deitado de barriga para cima no chão.

–Kit! Fala pro Kat devolver as minhas nozes! Eu tinha feito um estoque delas e escondido no tronco que fica perto daquelas cabanas abandonadas na nascente do rio. E elas sumiram! E só você e o Kat sabiam que elas estavam lá...

O filhote de gato colocou-se de pé e começou a miar.

–Você acha mesmo que foi o Kat? – ralhou Kit. – Olha aí! Ele ta dizendo que jura que não foi ele! E também... Que gato iria roubar nozes? Além disso, não é impossível que algum outro animal ou outra pessoa tenha encontrado seu esconderijo para as nozes. Era óbvio demais...

–Não era óbvio! – berrou Nana fazendo um biquinho.

Então, Kitten e Nanahoshi entraram numa demorada discussão sobre a qualidade do esconderijo escolhido para as nozes. Kat ficou observando as duas brigando uma com a outra, até que se distraiu com um besouro-hércules que passava por ali.

O dia estava muito bonito. O céu estava manchado de nuvens brancas muito gordas. O bosque fervilhava de animais e monstros. Todos seguiam sua rotina calmamente no Reino das Feras.

Quando a paz parece ter tomado completamente a rotina de um povo, os anciãos costumavam dizer que isso era um mau sinal. E, infelizmente, eles sempre estavam certos.


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Notas finais do capítulo

E aí divoooos o que acharam?