Insidious escrita por Bah


Capítulo 3
Inconstante




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Era meu terceiro dia na casa de Oliver e eu estava confiante. Feliz, poderia dizer. Desde bem pequena tenho a necessidade de me sentir útil, sentir que alguém realmente precisa de mim. Não que eu tivesse a força de uma psicóloga, não conseguia administrar nem meus próprios problemas, mas me sentia bem não sendo só uma idiota cheia de sonhos aventureiros em uma realidade pacata. Ele e meu irmão Peter, de algum modo, me traziam a aventura. Sempre achei as pessoas previsíveis demais, rasas demais. Não que eu gostasse de saber que poderia ser agredida a troco de nada, mas com certeza gostava do desafio de lidar com pessoas tão misteriosas.

Me arrumava para sair quando ouvi a risadinha de Peter.

_Bom dia, Peter Pan, isso lá é hora de acordar?

Ele apenas sorriu enquanto mordia a fronha. Olhando-o assim parecia uma criança de quatro anos como qualquer outra. Um pouco arredia, talvez, mas ainda era cedo para ver o autismo antes da pessoa linda que ele era. Eu temia que o dia em que ele percebesse que era diferente chegasse cedo demais. Eu queria ter mais tempo para dar-lhe atenção, mas já estava suficientemente atrasada. Acordei mamãe e segui meu caminho.

Pisei na calçada e estremeci. Congelante. Tentei respirar fundo, mas o ar fazia o cérebro latejar. Andei em passos curtos e tremidos até finalmente chegar à mansão artificialmente aquecida. Margareth pegou meu cachecol e disse que Oliver estava em um dia bom. Eu mal esperava para conhecer seu lado bem humorado, expressivo, ou seja lá como esse lado fosse.

Subi as escadas esfregando o nariz vermelho do frio. Quando meus olhos se acostumaram com a falta de luz do quarto, vi que Oliver usava fones de ouvido e fumava sentado na janela. Geralmente estava sem camisa, com ferimentos expostos e calças largas. Hoje usava um casaco preto com capuz e calças rasgadas. Deus, ele estava sexy. Uma droga admitir, mas me senti dentro de um filme adolescente. A mocinha apaixonada pelo bad boy misterioso com cicatrizes (só que nos filmes eles geralmente são bem menos problemáticos), e a mansão escura. Clichê.

Será que ninguém tinha medo de que ele se jogasse dalí?

_Olá, Oliver.

Ele se virou e juro que pude ver uma ameaça de sorriso. Jogou o cigarro fora, foi até o criado mudo e pegou um CD.

_Acho que vai gostar_disse mais jogando que entregando nas minhas mãos. Mantinha uma distância segura.

Ele estava me dando suas músicas favoritas? Merda, muito mais clichê.

_Deixa eu adivinhar_comecei bem humorada_ My Chemical Romance, The Who, talvez um pouco de System Of A Down...

Ele riu (genuinamente, pela primeira vez).

_O que foi? Pensou que eu fosse te fazer ouvir "Behind Blue Eyes"?

_Se pensar bem tem tudo a ver com você...

_Pode ser que sim...mas acredito que não com você.

_Bom, obrigada_disse guardando o CD na mochila jeans.

Era uma conversa normal, ele agia como uma pessoa normal, não estava acanhado como um bicho e isso me fez bem.

_Oliver..._eu me sentei na cama e fiz sinal para que se sentasse ao meu lado. Ele não o fez_ há quanto tempo você está trancafiado nesse quarto?

Me arrependi da pergunta logo após ter feito, mas ele não pareceu se importar em responder.

_Há uns dois anos. Só saí duas vezes quando os ferimentos foram muito graves para serem tratados em casa. Eu tentei arrancar meu rosto_A naturalidade com que falava me causava arrepios_Sabe essa cicatriz no meu queixo?_engoli em seco_ela se estende para a nuca.

Ele me mostrou a enorme cicatriz que saia do queixo e quase contornava seu pescoço. Eu não queria imaginar, mas a imagem de Oliver tentando arrancar a própria pele veio como uma cena trash de filme de terror.

_Bom..._comecei, tentando ignorar a história_não acha que devíamos aproveitar e sair um pouco? Quer dizer...a praia é no quintal da sua casa e tem anos que você não pisa na areia. Eu sei que está frio, mas a gente podia...

Antes que eu terminasse, ele derrubou a mesa pequena coberta de livros com um único empurrão descontrolado e me olhou como se eu tivesse acabado de dizer a coisa mais horrível do planeta. Notei então que havia me destraído com seu equilibrio de minutos atrás e deixei a porta aberta. Eu nem vi ao certo quando saiu, mas assim que chegou ao pé da escada foi surpreendido por uma das agulhadas de Margareth. Ela e mais um empregado o arrastaram escada acima.

_O que você disse a ele?_perguntou bufando, enxugando as gotas de suor da testa_Ele estava muito bem até você chegar!

_Será que estava, Margareth? Pelo menos eu tento fazer com que ele tenha uma vida digna. Se ele tem medo de pisar no lado de fora é porque ALGUÉM o fez acreditar que era perigoso.

Fui surpreendida com um forte tapa no rosto. A mulher bufava.

_Você não sabe de nada! Não passa de uma criancinha tola! Nunca mais...NUNCA mais chame-o para sair de casa durante o dia, entendeu bem?

Eu ainda cobria a bochecha quente e avermelhada. Lágrimas ameaçavam a cair, mas as segurei junto ao pouco de dignidade que ainda me restava.

_Onde está a senhora Hill?_minha voz estava oscilante. Um misto de ódio e humilhação.

Ela soltou uma risada debochada, o que só aumentou minha vontade de proferir um soco naquele estômago coberto por diversas camadas de gordura.

_Acha mesmo que a senhora Hill é desocupada assim? Que vai aparecer para atender seus caprichos?

_"Meus caprichos?" Isso é sobre o filho doente dela! Sobre o cara que passa os dias se agredindo, morando enclausurado como o Corcunda de Notre Dame.

_Escute só...eu conheço bem o seu tipinho. O Oliver é um rapaz bonito, não é?

_Onde quer chegar?

_...é um rapaz bonito, rico, com tendências suicidas_continuou_ Já vi várias como você por aqui. Não aguentaram nem uma semana. Não fique achando que poderá viver um romancezinho dos seus livros surreais com o Oliver. Ele é um garoto doente, precisa de injeções, não de um encontro.

Ela se virou antes que eu pudesse dizer qualquer coisa. Ele precisava de amor.

Oliver acordou após duas horas. Eu lia um livro ao lado de sua cama quando um empregado chegou com seu almoço em uma bandeja. O homem magro tremia a ponto de fazer o copo de suco quase cair. Parecia estar entrando na cela de um assassino de alta periculosidade.

_Deixe isso comigo_eu disse pegando a bandeja_pode avisar a Margareth que ele já acordou.

Ele assentiu e saiu o mais rápido possível. Olhei para Oliver. Estava fitando o teto com os lábios entreabertos e, não fosse por sua respiração, seria facilmente confundido com um cadáver. Concluí que não era ele que eu temia dentro daquela casa.

_Sente-se, chegou o seu almoço.

Coloquei a refeição em cima do criado mudo e pousei a mão em sua testa que brilhava com o suor. Ardia em febre.

_Caramba, Oliver, vou chamar alguém!

Me virava para sair quando ele agarrou meu pulso. Não foi violento, nem possessivo, nem imediatista dessa vez.

_Por favor, fique.

Era um pedido.

_Você está pegando fogo, precisa de um médico!

Ele engoliu com dificuldade e negou com a cabeça.

_É efeito colateral. Logo passa.

_Oliver, isso não está certo...ninguém merece viver assim.

_Estou com muita fome_disse ignorando meu comentário_de onde vem esse cheiro?

Peguei a bandeja e me sentei ao seu lado na cama. Ele se levantou apenas o suficiente para não engasgar. Pegou a bandeja e quase derrubou o copo.

_Deixa comigo_eu disse.

Embora fosse um pouco constragedor, levei a primeira garfada em sua boca. Mamãe diz que tenho espírito de enfermeira...talvez eu tivesse mesmo. Ele me lançou um olhar que não pude decifrar. Me esquivei.

_Sabe quando foi a última vez que fizeram isso por mim?

_Quando?_perguntei relaxando os músculos.

_Quando eu tinha dois anos.

Enrubesci.

_Se quiser...eu paro.

_Pode continuar, por favor?_disse com um sorriso de canto.

Sorri também

Ele comeu menos da metade, recusou o suco e me pediu o cinzeiro em sua janela. Não entendi, mas pela urgência de sua expressão o fiz rápido. Assim que entreguei a ele, apoiou no peito e o encheu de vômito. Apoiei sua testa e limpei sua boca com o lençol.

_Me desculpe, eu...

_Não se desculpe. Eu já volto.

Entreguei o cinzeiro para Margareth, que foi até o quarto conferir se tudo estava em ordem. Deu uma breve olhava e saiu logo em seguida.

_É sempre assim?_perguntei.

_Acha que tenho esse corpo de uma modelo anoréxica porque quero?_disse bem humorado.

_Não consigo me conformar...você não está fazendo quimioterapia para ter que passar por tudo isso.

_Obrigada pelo almoço e pelo...resto_disse mudando de assunto, como de costume_acho que precisamos conversar.

Sentei-me ao seu lado. Nunca o tinha visto lúcido por tanto tempo.

_Sobre o que quer conversar?_perguntei.

_Preciso te pedir desculpas pelas vezes que te machuquei e...

_Esqueça isso!

_Não, por favor, me ouça. Eu quero que me pergunte o que quiser, não quero que você me olhe como se fosse correr toda vez que faço um movimento brusco. Só peço que seja breve, nós dois sabemos que não tenho muito tempo. Seja direta.

Eu estava surpresa com o quão observador era.

_Bom, o que você sente quando...aquilo começa?

_Como se eu estivesse em chamas. Como se estivesse em carne viva. É como um espirro que precisa sair. Se eu não fizer o que mandam não consigo ter paz.

_Quem manda?

_As...pessoas nessa casa.

_Você disse que não tem muito tempo. Como sabe que outro ataque está chegando?

_Não está chegando, sempre esteve aqui. Estou sempre em uma batalha comigo mesmo. Cada parte do meu corpo dói o tempo todo.

_Por que dói?

_Não é sempre...

_Quando?

_Quando os outros me tocam. É como se eu sentisse uma descarga elétrica_olhei o lado do meu corpo que encostava com o dele na cama.

_Eu estou te tocando agora.

_Eu não sinto com você. Muito pelo contrário.

_E qual seria o contrário?

_Eu nunca consegui ter controle sobre meu próprio corpo e fala por tanto tempo como quando estou perto de você.

Aquilo aqueceu meu coração.

_Hoje de manhã você estava bem e eu não estava aqui, Oliver.

E então ele estendeu o elástico que prendia meu cabelo na noite anterior.

_Eu usei isso.

_Usou como?

_Só segurei durante a noite. Você deixou cair. Posso ficar com ele?

Assenti incrédula. Ele usou meu elástico como um amuleto? Um terço religioso? Loucura. Mas a melhor parte louca que eu já havia conhecido de Oliver Hill.

_Alicia...

_Sim?

_Será que você pode ficar?

_Ficar?

_Ficar aqui. Sei que é sufocante e que te deixo com medo, mas...

Não esperei que ele terminasse de falar. Abracei-o. Percebi que a febre baixara.

_Olhe dentro dos meus olhos_instrução idiota, já que era o que ele mais fazia. Chegava a ser desconfortável as vezes_eu pareço ter medo de você? Os empregados dessa casa ficam tão perto de você sem uma agulha nas mãos?

Ele desviou o olhar.

_Não, na verdade acho que você devia ir.

_O quê?

_Você não precisa passar seus dias presa aqui. Tem o quê? Dezessete anos?

_Dezoito...

_Que seja...deveria estar fazendo qualquer outra coisa.

_Bom, você tem dezenove e não está muito melhor que eu.

_Você não é louca.

Ele tremia. Olhei para o curativo em suas pernas, onde o sangue escorria.

_Deixe-me ver isso, Oliver.

_Não! Só chame o doutor.

O médico estava lá dentro do quarto por mais de uma hora e meia. Três empregados (entre eles, Margareth) estavam presentes para segurá-lo no caso de mais um ataque. Não permitiram que eu ficasse lá dentro. Ouvi seus gritos mais altos do que nunca e aquilo foi demais para mim. Comecei a chorar incontrolavelmente e então o ouvi me chamar com fervor, com toda a potência de sua voz. Não pensei duas vezes e lancei meu corpo contra a porta. Obviamente não obtive sucesso em arrombá-la, mas ganhei um braço bastante machucado.

_Ei! Você!_gritei para o segurança enorme que devia estar no andar de baixo_preciso de um favor!

Ele me olhou com desprezo. Levei a mão até o pescoço e senti a medalha de ouro que Adam me dera antes de desaparecer. Por que eu ainda usava aquilo? Puxei o colar sem abrir o fecho e o estendi com a mão trêmula.

_Arromba essa porta por esse colar?

Ele pegou a corrente das minhas mãos e sem muito esforço quase pôs a casa abaixo, desaparecendo nos lances de escada logo em seguida. Oliver ainda me gritava em desespero.

Margareth me olhou surpresa e disse algo, mas toda a minha atenção estava voltada para o homem pálido se contorcendo. Trombei nos corpos dos três empregados e alcancei sua cama. Os ferimentos estavam completamente abertos e inflamados. Apertei sua mão, mas não me pareceu o suficiente para apaziguar sua dor. Colei sua testa na minha.

_Eu estou aqui, já vai acabar.

_Não é o ferimento que dói_disse com a respiração entrecortada.

Não quis fazer perguntas.

_Seja lá o que for, já está quase no fim. Eu prometo.

Não vi a reação de Margareth e dos outros dois empregados, não ouvi o que disseram e nem sequer vi a hora em que todos deixaram o quarto. Éramos só eu e Oliver.

Só então tirei minha testa da dele e abri os olhos. Nossos cabelos grudavam na nuca, ambos suávamos muito, sua boca branca estava rachada. Me levantava quando ele colocou uma das mãos em minhas costas e puxou meu corpo contra seu peito. Deitei-me e alí fiquei até que nossas respirações se normalizassem.

_Obrigado_ele sussurrou.

Apenas assenti.

_Oliver, tenho uma proposta.

Ele ficou atento.

_Já ouviu dizer que as águas do mar curam? É científico.

_Não é tão simples.

_Bom, se o problema são eles a gente sai pela janela, ninguém precisa ver, podemos ir à noite. Se você mergulhar vai se sentir melhor.

_Eu não ligo pra porra das pernas.

_Bom, mas devia! São parte do seu corpo e estão em péssimo estado.

Olhei para o relógio. Onze e meia.

_Bom, tenho que ir, mas nossa conversa não acabou_Ele mantinha os olhos fixos na janela_boa noite, Oliver.

Eu vestia meu sobretudo enquanto me dirigia até a porta. Só quando saia do quarto de Oliver sentia o peso de estar com ele. Sua presença sugava todas as minhas energias, aquela casa me sugava até a alma.

_Senhorita Mitchell?_chamou uma voz imponente.

_Senhora Hill...

Eu odiava tanto aquela mulher que poderia pular em seu pescoço a qualquer minuto. Que tipo de mãe deixa o filho doente naquelas condições?

_Como tem se saído?

_Bem, acredito eu, mas tenho algumas dúvidas.

_Posso ajudá-la?

_Talvez...por que o seu filho não pode sair daquele quarto? Por que viver enclausurado?

_Margareth me contou sobre suas tentativas...Oliver tem fotofobia, não pode ser exposto diretamente ao sol. Mais alguma pergunta?

Seu tom era impaciente e pude notar que ela batia as unhas em um móvel, a frequência das batidas cada vez mais rápidas conforme eu perguntava.

_Bom, será que ele pode dar algumas voltas na praia durante a noite?

_Se ele estiver de acordo, sim. Mas exigo que Margareth e mais dois enfermeiros os acompanhem. Você não saberia contê-lo caso começasse a ter um ataque. Agora, com licença, tenho algumas coisas a fazer.

Ela alisou a saia e foi para o lado oposto ao que eu estava.

Aquele lugar estava me sufocando.

Chegar em casa não era nenhum alívio, mas mal podia esperar para abraçar meus irmãos e repor minhas energias, trazer de volta minha essência.

Lilith me recebeu com um abraço saudoso e Peter deu um beijo em minha coxa, onde sua boquinha alcançava. Peguei-o no colo e seguimos para o quarto.

Deite-me no colchão e dei um longo suspiro. Sem que eu pedisse, Lilith colocou minha cabeça em seu colo pequeno e alisou meus fios mal tratados. Relaxei.

_Você está com olheiras, Cici.

_Estou com muito mais do que olheiras, raio de sol.


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