Teus Olhos Meus escrita por Felipe Perdigão


Capítulo 2
I — Eu Espero Que Você Esteja Bem.




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MARCOS

— Marcos! — Deixei o ouvido em alerta ao escutar uma voz me chamar distante. — Se não quiser se atrasar é melhor se apressar. — Minha mãe me alertou.

Dei um pulo da minha cama de viúvo conferindo no celular quantas horas eram. Puta merda! Terei que me decidir entre tomar um banho ou café da manhã caso não queira perder o ônibus e chegar a tempo.

Corri para o banheiro, liguei o chuveiro o mais quente possível e finalmente pude despertar ao sentir a água fervente em minha pele. Assim que terminei de me enxaguar meus cabelos, me enrolei em uma toalha branca e fiquei me admirando confuso na frente do espelho. Passei muito tempo longe dos estudos, temo bastante como que esses próximos cinco anos serão.

Ao receber uma notificação em meu celular pude ver as horas e porra, eu estou cada vez mais atrasado.

Esforcei-me pra não demorar a escolher o que vestir, mas fora em vão. Enquanto vestia a única cueca preta que encontrei na gaveta, eu encarava camisas e mais camisas, mas era impossível achar uma boa o suficiente. Agora sim, eu estava impecável uma camisa de linha negra, uma calça jeans quão escura a parte superior e meus fieis sapatos sociais pretos. Se tivesse como, com toda certeza do universo eu me pegaria neste momento.

Ótimo, toda produção fora em vão.

Eu jamais conseguiria chegar a tempo na UFMG! Meu ônibus acabou de virar a esquina e o próximo não deve passar tão cedo.

Neste momento eu me lamentei pela primeira vez de estar juntando dinheiro para ir para Inglaterra turbinar meu inglês ao invés de comprar um carro.

Segui frustrado, apesar de não demonstrar e manter a cabeça erguida e o olhar firme, para o ponto de ônibus cantarolando Guns N’ Roses em silêncio.

Talvez o universo tivesse ficado com um pouquinho de pena de mim e resolvera ser justo. Não fiquei mais de três minutos esperando a próxima condução.

Me acomodei no ônibus e logo me distraí observando a cidade que ainda estava coberta de neblina naquele horário. Eu definidamente amo esse lugar. Sua historia, sua arquitetura, sua cultura, suas incontáveis diversidades, o sotaque engraçadinho que a grande maioria da população tem e principalmente a comida mineira que não se compara a de nenhuma outra parte do mundo.

Antes que eu pudesse me dar conta, já estava na hora de descer.

Se não fosse uma moça negra de lindos cabelos verdes e crespos que tivesse dado o sinal, eu teria passado direto e teria que andar bastante até a portaria do campus mais próxima.

Quando passei pelo arco da portaria principal, respirei fundo e, ao notar que o pátio principal estava inteiramente vazio fiquei desnorteado e apertei os passos o máximo que pude em busca da minha sala.

MERDA!

Gosto de chamar a atenção das pessoas, mas não dessa forma.

Soando frio, peguei meu celular que estava perdido em alguma parte da minha mochila e conferi qual seria meu primeiro período naquele dia.

Introdução a Eng. De Minas. — Antônio Scodelario — Turma S — Prédio Pangeia.”.

É muita informação pra uma pessoa só! Tentei limpar o suor que descia pela minha testa e ao me deparar com um professor segurando algumas amostras de rochas na mão pensei “só pode ser aqui”. Fui logo pedindo licença e entrando. O professor pareceu dar a mínima pra minha existência e continuou a falar sobre o ciclo das rochas. Como não estava entendendo nada, me desconcentrei e facilmente, comecei a reparar os outros alunos... Pareciam tão centrados naquilo que o professor explicava. Quando parei de reparar nos alunos e fui notar o que o professor dizia, vi em seu uniforme o nome Rafael bordado e agradeci em silêncio por aquela não ser a minha turma.

Imediatamente peguei minha mochila e saí correndo daquela sala.

Cruzei os braços enquanto caminhava com o olhar atento a alguma placa que identificasse a sala S.

Com certa dificuldade consegui achar a turma S.

Mais uma vez pedi licença e quando já estava me acomodando em uma carteira no fundo da sala o professor se voltou a mim.

— Tudo bem que é o primeiro dia, mas não aturarei mais atrasos. Isso não é um colégio particular qualquer onde você pode pintar e bordar, ok? — O velho moço tossiu e se voltou para a turma — Se estão dispostos a serem geógrafos, que sejam disciplinados pelo menos.

“Geógrafos”, EU ESCUTEI BEM?

Senti meu rosto queimar enquanto ele ficava cada vez mais enrubescido.

Isso não podia estar acontecendo comigo.

Levantei completamente constrangido mais uma vez e com a mochila na mão caminhei em direção a saída.

— Onde você pensa que vai?

— Não estou me sentindo bem para ficar aqui, cara.

— Se sair, não precisa voltar pelo resto do semestre.

Porra! Que cara mais chato. Voltamos sessenta anos no tempo direto para a Ditadura Militar?

— Ótimo! — Dei de ombros e apesar do ódio que me consumia continuei a andar, afinal, nem matriculado na aula daquele ser ranzinza eu estava.

Isso só podia estar acontecendo comigo mesmo.

Desisti de assistir o primeiro período.

Que grande fracassado que sou. Matando o primeiro horário do primeiro semestre.

A caminho da biblioteca, tive a sorte de escutar uma voz grave dizer “Eng. De Minas” e então pausei os passos.

Fiquei ali escorando na porta tentando identificar algum indicio de aquela era a minha turma.

Enquanto tomava coragem pra bater na porta, senti minhas pernas bambearem e meu rosto queimar.

Respirei fundo e tomei um impulso para bater na porta.

Knock Knock.

— Já entrei em duas salas erradas, por favor, não me diz que essa não é a sala do professor Scodelario. — cerrei os punhos o mais rápido que pude.

Antônio mordeu os lábios mais forte que pode para não rir.

— Entre e ache um lugar para você se sentar. — Ele disse enquanto tirava o corpo do caminho.

Pra minha sorte, Caio acenou em minha direção. Logo avistei uma carteira vazia ao seu lado. Confesso que me senti extremamente aliviado com sua presença.

Sorri para meu primo e logo voltei à atenção para o professor.

— Hmm, bem… — Antônio disse com sua voz grave e intensa. — Já que se atrasou, vamos começar a apresentação por você.

PUTA MERDA!

Meu coração palpitou.

Senti o sangue queimar meu rosto novamente por tamanha vergonha.

— Bem, e o que o senhor quer saber? — Disse com a voz ampla e cara. Apesar de enrubescido, não queria parecer nervoso.

— Me diz seu nome, quantos invernos você já viveu, o que faz da vida e porque está nessa sala neste exato momento… E se quiser falar algo mais, sinta-se a vontade, à final, é o primeiro dia… Vocês tem que se enturmar.

Roguei a Deus em silêncio para que não passasse vergonha falando besteira.

— Meu nome é Marcos, já vi 31 verões e bem, trabalho na loja de peças do meu pai. — Disse sem medo.

— Interessante, Marcos. — O professor me encarava com o cenho franzido. — E o que te traz aqui?

Pensei em várias piadas sem graça pra fazer, mas meu senso me fez perceber que aquele não era o momento.

— Eu não sabia que porra fazer da merda da minha vida, estava só trabalhando e trabalhando e vendo o tempo passar e eu sem sair do lugar… — Fiz uma pausa pra tomar o folego e achar novas palavras. — E também, meu primo — apontei com os olhos para Caio que estava sentado ao meu lado — me disse que ia tentar fazer o curso e daí me perguntei “por que não?”, então… é por isso que estou aqui agora morrendo de vergonha por estar atrasado.

Os outros alunos pareciam realmente estar interessados naquele assunto. Não sei o que eu estava sentindo naquele momento, mas acho que não era bom.

O professor Marcos me deixou super à vontade naquele momento. Não só a mim, é claro, mas a todos da turma. Ele foi incrível.

A primeira aula seguiu e terminou mais rápido a que pudéssemos perceber.

As outras matérias foram um pouco tanto instigantes. Não entendi várias coisas, terei que dedicar bastante do meu tempo para estudar, afinal, parei de estudar há mais de 10 anos. Se eu quiser um bom empenho acadêmico, It’s better work bitch.

Quando deu hora do intervalo, corri para o refeitório e fiquei surpreso com aquele aposento de tamanho imenso. Um dos maiores de todo o campus, senão o maior. Havia várias janelas de vidros que iam do chão até o teto nos dando o privilégio de observar o bosque do campus enquanto comíamos. Várias mesas de seis acentos estavam espalhadas pelo salão irradiando a coloração prateada que combinava com o piso negro.

Era um privilégio estudar no naquele campus. A arquitetura era incrível. Nicole Avelar projetara um prédio inspirado na arquitetura Inglesa: totalmente clássica ao mesmo tempo em que moderno.

Eu me sentia em Harvard.

Comprei um pão de queijo recheados com calabresa e uma latinha de coca cola e antes de achar uma mesa para me sentar dei uma imensa mordida no meu lanche. Estava com tanta fome que era capaz de minha mãe que estava em casa na cidade vizinha seria capaz de escutar o ronco do meu estômago.

Ao acabar de comer, percebi que faltava algum tempo para o intervalo acabar e fui andar pelo campus. No pátio principal, vi várias pessoas participando de um trote e logo fiz questão de me esquivar. Já passei da idade disso.

Lembrei-me do bosque que eu vira no refeitório e caminhei até encontrar uma forma de adentrá-lo. Eu estava encantando com a diversidade das plantas e animais que circulavam por ali com tranquilidade.

Subitamente uma das músicas que estava escutando no caminho de casa para a universidade me veio a mente.

Lately, I've been, I've been losing sleep… dreaming about the things that we could be.

Assim que terminei o primeiro verso da música tive uma visão deveras constrangedora.

Deparei-me com o professor Antônio utilizando uma árvore como mictório.

— Merda. — Antônio disse fechando a braguilha.

— Olha, caso não tenha percebido tenho entre as pernas a mesma coisa a que você — tentei ignorar o fato de ter acabado de ver o sexo do meu professor—. Não se envergonhe.

Antônio não conseguiu responder.

Antes que ele pudesse dizer algo sobre o ocorrido, o sinal do campus soou alertando do último período.

— Tenho que ir. — Antônio correu as pressas se direcionando para o laboratório.

Sem entender muita coisa, dei de ombros e segui meu caminho para encontrar Caio que com toda certeza do mundo estava farreando com os demais calouros.

Ao chegar à turma procurei um lugar mais a frente. Estava a fim de prestar bastante atenção, afinal, já tinha bastante coisa pra estudar.

O que dizer de química que tive apenas uma aula e já odeio tanto?

Assim que o sinal bateu peguei a folha de exercícios sobre a mesa da professora e corri para o ponto de ônibus. Não podia cogitar na ideia de perder o ônibus já que moro na cidade vizinha e tenho que trabalhar o resto da tarde.

Pela primeira vez no dia detestei aquele campus, pois era muito grande. Demorei vários minutos para chegar à saída. Conferi as horas no celular e MERDA! O ônibus já deveria ter passado.

Apressei os passos e assim que coloquei o pé na rua senti algo bater contra o meu corpo despertando toda adrenalina e me derrubando no chão.

A priori não consegui entender o que havia acontecido, eu estava completamente desnorteado.

— MAS QUE MERDA MARCOS! — Disse Antônio aos berros. — Não sabe que tens que olhar a rua antes de atravessar?

O encarei tentando processar aquela informação.

Antônio parecia aflito com tantos olhares curiosos que surgiam ao nosso redor.

— Você está bem? — Ele me perguntou com a voz falha.

— Sim… Só me ralei, eu acho. — Respondi tentando recuperar o fôlego.

— Vou chamar uma ambulância! — Antônio tirou o celular do bolso.

— Não! — Ordenei. — Está tudo bem, e olha, tenho que bater cartão daqui a pouco…

Houve um silêncio.

— ÓTIMO! — Gritei incrédulo. — Acabei de perder meu ônibus. Que belo primeiro dia.

— Vamos, entre no carro! — Sugeriu Antônio com as mãos ainda trémulas. — Eu te levo até casa.

— Eu não posso aceitar. — Meu professor me tomou pelos braços me ajudando a levantar.

Por impulso, o empurrei com o corpo.

— Caí fora! Não preciso disso.

Ele deu um passo para trás surpreso.

— Você tem certeza que está tudo bem?

— Sim. Ficarei ótimo, longe de você. — respondi por reflexo.

— Então ta! — Ele se virou e foi em direção ao carro fazendo um movimento negativo com a cabeça.

— Espera! — Meu orgulho foi completamente ferido ao dizer aquelas palavras. — Vou ser obrigado a aceitar o convite.

Ele abriu um sorriso amarelo.

Sentei no carro ainda tremendo. Não sei se estava furioso por ter perdido o ônibus, por ter sido atropelado ou ter que pegar carona com um desconhecido.

— Me desculpa?! — Ele disse enquanto ligava o carro.

— Não foi sua culpa. — Disse a primeira coisa que veio a minha cabeça.

Não sou bom com essas coisas de perdão.

— Tem certeza que não quer ir ao Hospital conferir se ta tudo bem? — Antônio insistiu.

— Sim! — Esfreguei as mãos na perna torcendo com que ele não insistisse no assunto.

— Então me fala onde você mora pra partirmos.

Enquanto explicava a localização ele ligou o som e começou a tocar uma música que me fez arrepiar.

Demorei um tempo, mas logo reconheci a voz apesar de não conhecer aquela música.

— É Pearl Jam? — Perguntei.

— Hã?

— A música...

— Não. Bem, quem está cantando é o Eddie Vedder, vocalista da Pearl Jam, mas essa música ele compôs para o filme Into The Wild. — Ele aumentou um pouco o som. — Já assistiu?

— Não. — respondi. — Não que eu me lembre.

— Pois deveria. Aliás, todo humano deveria assistir esse filme ou ler o livro.

— Vou ver se assisto, se tiver tempo, é claro. Com tantas cosias pra estudar e exercícios pra fazer, acho difícil que isso aconteça.

— Primeiro dia e já está assim?

— Sim... Alguém vou sofrer depois de tanto tempo sem estudar.

— Você anotou meu e-mail? Se precisar de ajuda sinta-se à vontade.

— Anotei sim. Obrigado.

O assunto morreu. Como ele dissera que conhecia o caminho, pois já namorou alguém que morava ali perto não tínhamos mais sobre o que dizer.

Fiquei observando o trajeto e uma vez ou outra respondia uma mensagem no celular.

— Você se importa se eu ligar o ar-condicionado? — Perguntei levando a mão em direção ao botão que aciona o dispositivo.

— À vontade! — Por reflexo ele levou a mão em direção ao botão.

Nossas mãos nos tocaram e trocamos um olhar confuso.

Demos uma risada e deixei com que ele ligasse, afinal, o carro é dele.

Não demorou muito e ele estacionou em frente o portão de casa.

O agradeci pela carona e ele se desculpou mais uma vez.

Estendi a mão para despedir e ele me puxou para um abraço. O perfume que ele usava era agradável. Quase que por impulso perguntei qual era, mas seria constrangedor para ambas as partes ele saber que eu reparei em seu cheiro.

Desci e esperei com que ele acelerasse o carro a antes de entrar. Ele dera uma buzinada e subi com calma para tomar um banho, já que tinha conseguido a carona eu estava com minutos de sobra.

Passei a tarde trabalhando.

Minhas costas estavam me incomodando por conta da quantidade de caixas que passei a carregar repondo o estoque.

Nunca estive tão grato por meu horário de expediente ter acabado.

Fechei a loja dando vivas aos céus.

[...]

Estava em meu quarto trajando uma cueca azul quando minha mãe abriu a porta do quarto sem ao menos bater.

— Você não me disse como que foi seu dia.

— Oi mãe, é claro que você pode entrar no quarto. — Debochei.

— O que tem demais? Deixa de ser sem graça menino.

— Ah, foi bom, apesar de ter tido dificuldade pra achar minha sala e ter sido atropelado. — Mostrei meu braço ralado.

— Que história é essa?!

— Está tudo bem.

— Você foi ao hospital?

— Não. — Revirei os olhos.

— Deveria ir!

— Mãe, estou estudando, quando o jantar estiver pronto eu desço e a gente conversa.

Ela entendeu o recado e saiu do quarto.

Eu realmente não queria ser incomodado.

Ao acabar de estudar a matéria de Mineralogia percebi algumas dificuldades e depois de vários minutos pensando sobre resolvi pedir ajuda a Antônio.

Olá, Boa noite.

Professor, você disse que eu podia entrar em contato caso tivesse dificuldades e assim estou fazendo.

Segue em anexo um arquivo com as minhas dúvidas.

Att,

Marcos Machado.

Enviei e desci para jantar.

Como de costume, fui interrogado por minha mãe.

Enrolei um pouco na sala com meus pais e meu irmão assistindo novela enquanto trocava mensagens com o Caio sobre a aula.

Meus pais foram dormir e decidi fazer o mesmo, amanhã eu acordaria com as galinhas.

Assim que me acamei, ouvi o notebook notificar um novo e-mail.

Com preguiça de me levantar, abri pelo próprio celular.

“Olá, boa noite.

Estou bem sim, obrigado. E você? Espero que já tenha se recuperado do acontecimento de mais cedo.

Em anexo está um material para te auxiliar e uma lista de conceitos da mineração para facilitar sua leitura.

Se quiser, podemos nos encontrar na biblioteca durante o intervalo para tirarmos as dúvidas restantes.

Att,

Antônio Scodelario PhD em Mineralogia e Petrografia e professor da UFMG.”

Não sei porque, mas abri um sorriso e adormeci.


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Notas finais do capítulo

E então gente, o que acharam?
Já tiveram um dia igual a este de Marcos?
O próximo capítulo sairá na sexta a noite, espero ver vocês!
xx