Aquele que Perdeu a Memória escrita por Ri Naldo


Capítulo 3
Chiaroscuro


Notas iniciais do capítulo

Depois de pouco mais de um ano sem a participação dessa ilustre personagem, vamos dar as re-boas-vindas a...



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Estávamos agachadas em cima de um tronco grosso, silenciosas, esperando alguma presa aparecer, para só então enfiarmos uma flecha na sua cabeça.

Ultimamente, esse era o nosso passatempo. Sem vôlei, canoagem, escalada ou esgrima. Estava tudo destruído. A única coisa que restara do nosso Acampamento era o bunker, a floresta e os monstros. Estávamos cercados, sem nenhum lugar seguro na Terra para ir, e com um estoque limitado de comida e água. Tínhamos que pensar em algo, e rápido.

Mas, bem, isso é tarefa para os líderes. Não fui escolhida como líder porque eu estava muito “instável”. Claro, experimente morrer, ter sua alma apagada de existência e depois voltar à vida miraculosamente, e depois me diga o resultado. Não é como se eu fosse ficar dando pulinhos de alegria.

E, além do mais, já é ruim o bastante ter que aguentar os olhares de desgosto das pessoas em direção a mim. Certo, tudo bem, meu namorado é — era — um idiota, mas que culpa eu tenho se ele simplesmente não conseguia aceitar que eu tinha morrido?

E sabe qual é a pior parte? Se eu pudesse, faria a mesma coisa por ele. Como eu queria acordar no meu minúsculo espaço no bunker e encontrar uma carta de uma bruxa tosca dizendo que eu poderia ressuscitá-lo. Eu daria tudo por isso.

Imbecil. Por que ele tinha que se matar? Nós poderíamos ter dado um jeito. Juntos. Eu não o deixaria para trás nem que um bilhão de monstros estivessem atrás de nós.

Minha tristeza virou raiva. Ele me abandonou. Eu disse que o esperaria, mas ele não teve paciência. Poderíamos ter vivido a eternidade juntos organizando os documentos de Tânatos ou seja lá que merda os semideuses mortos fazem no Mundo Inferior. Mas ele me forçou a fazer aquilo, e, ainda assim, teve a ousadia de me trazer de volta. Só para ir embora depois.

Será que ele não pensou que eu também não aguento viver sem ele?

E agora eu não consigo ouvir o nome dele sem sentir uma dor no peito. Maldito. Transformou-me em uma menininha apaixonada.

A flecha estava tremendo na minha mão de tanta tensão que eu guardava. Finalmente, um monstro apareceu ao longe, esgueirando-se pela vegetação, tentando localizar algum semideus desavisado.

Pena que ele estava desavisado.

Fechei um olho e pus o arco à frente do nariz, tentando alcançar a mira perfeita. Quando finalmente a atingi, respirei fundo e abri os três dedos que seguravam o elástico.

À medida que quebrava a barreira do som, a flecha deixou um zunido por onde passou, até que se encravou na cabeça da empousai.

Então, poucos segundos depois dela morrer, as cinzas juntaram-se e formaram a mesma empousai, ressuscitada. Cara, eu odeio isso.

— Não já basta ter um inferno de monstros aqui, eles ainda têm que ser imortais — eu falei, bufando.

— E do que você está reclamando? Alvos infinitos para nós treinarmos.

Mirina parecia não ligar para o fato do Acampamento estar destruído, de estarmos com centenas de monstros no nosso quintal, prontos para nos matar assim que puderem, ou de esses monstros não morrerem. Ela estava mais a vontade quando morta. Bônus de ser filho de Tânatos.

— Vem, já vai ficar tarde. — eu a chamei, descendo da árvore sobre a qual estávamos.

— E o que eu tenho a ver com isso?

— Colin já vai fazer a chamada. Não seria legal forçá-lo a convocar uma equipe para nos procurar, quando só estamos aqui sem fazer nada.

— Estamos treinando. É crime?

— Depois das seis e meia, é.

Ela revirou os olhos e suspirou profundamente. Depois, jogou o arco e flecha dela no chão, se jogando logo em seguida. Pousou com uma mão colada ao corpo e a outra no chão, usando as pernas para amortecer a queda. Quando recuperou o equilíbro e se levantou, ela bateu as mãos para tirar a poeira e pegou o arco e flecha.

Esse pequeno showzinho dela nos custou caro: todos os monstros que estavam nas redondezas ouviram, e agora estavam vindo atrás de nós.

— Beleza! — ela gritou, entusiasmada, atraindo ainda mais as garras e presas famintas.

— Ficou maluca? Vem! — eu peguei em seu braço e a puxei, correndo, em direção ao bunker.

Monstros nos cercavam em todas as direções. Eu tinha abandonado meu arco e flecha na árvore, e agora eu só tinha uma espada velha e torta para me defender. Três monstros e ela partiu no meio, me deixando completamente indefesa com uma Mirina risonha e feliz.

Certo, eu sei, é coisa clichê de filmes e histórias e bla bla bla, mas realmente aconteceu: eu tropecei em uma raiz e caí no chão, levando Mirina comigo. Quando eu me levantei, dezenas de monstros nos cercavam.

— Parabéns, Mirina. Lá vamos nós de novo — suspirei, aceitando a minha segunda morte de mãos abertas.

— Hoje não, gostosas.

Mãos ágeis e rápidas iam para lá e para cá, enfiando uma espada em um monstro de cada vez, trabalhando em conjuntos com os pés, que chutavam a poeira dourada, impedindo-os de renascerem. Quando ele terminou, se virou para nós, colocando a espada de volta no suporte.

Eu andei em direção a ele, que abriu os braços pensando que iria receber um abraço e um beijo. Mas, ao invés disso, eu fiz uma mira certeira e acertei os nós dos dedos na parte do meio do nariz dele, só ficando satisfeita quando ouvi o barulho de osso quebrando.

Ele caiu no chão, gritando de dor, com o nariz sangrando bastante. Acho que exagerei um pouco. Mas bem, ele merecia.

— Nunca mais me chame de gostosa, entendeu? — eu estava vermelha de raiva. Odiava quando garotos idiotas faziam isso. Só um tinha o direito de me chamar disso sem eu quebrar o nariz, e ele provavelmente riria das minhas bochechas infladas caso não estivesse morto.

— Ah, vai se ferrar! — ele grunhiu, com a mão no nariz, já ensopada de sangue. — Eu só vim chamar vocês para a reunião do conselho, mas acho que é pedir demais. E, além do mais, eu salvei a sua vida!

— Que vida? — perguntei, mesmo sabendo que ele não responderia. Nem eu sabia a resposta para essa pergunta.

Mirina parecia ter saído da crise de suicídio, e agora falava com o cara, caído no chão. Ela parecia não ligar para o fato de o nariz dele estar virado quarenta graus para a direita. Ela foi escolhida como líder. Claro que eu não estava com inveja, mas achei injusto, porque ela estava na mesma condição “instável” que eu. Obviamente, era por causa do Dylan.

— Quando vai começar? — Mirina perguntou.

— Em dez minutos.

— Estranho, não achei que as reuniões começariam assim tão cedo. Nem deu tempo para as pessoas se acostumarem. Você é um líder também?

— Sou. Meu nome é Jake, se quiserem saber.

Jake. Esse nome era familiar.

Ele se levantou, e saiu andando em direção ao bunker, ainda com a mão no nariz. Um monstro apareceu na moita, para virar pó logo depois. Quando Jake chutou as partículas douradas, a luz do sol refletiu-se para todos os lados, criando um efeito de luz e sombra.

Ψ

Meus pés deveriam estar sangrando e parecia que iam derreter a qualquer momento, mas eu não sentia dor alguma: a adrenalina era demais. Eu não tinha direção, nem destino, nem fôlego.

By corria ao meu lado, e estávamos de mãos dadas. Não nos separaríamos por nada.

Ouvi um grito escandaloso, e virei a cabeça para ver. O monstro tinha pego um dos sobreviventes, e estava dilacerando-o. Ele soltou outro grito, dessa vez mais profundo, quando seu braço foi arrancado, e outro quando sua perna foi arrancada. Até que, por fim, a cabeça de dragão abocanhou a cabeça do cara, e ele parou de se debater.

Mas não acabou por aí. Ele — ou ela — não estava satisfeito, e continuou correndo atrás de nós.

— Peter, eu não aguento mais correr — By gritou.

— Só mais um pouco, certo? — pedi. — Eu não sei o que está acontecendo, mas vai passar logo, eu prometo.

— Dói muito — ela disse, quase choramingando.

Olhei para baixo, e vi que a ferida na perna dela tinha aberto ainda mais, espalhando mais sangue pela calça jeans. Ela merecia um prêmio por ter aguentado tanto tempo..

Aproveitei a vantagem que tínhamos criado e parei, me agachando. By já sabia o que deveria fazer: ela passou uma perna pelo meu pescoço, e eu levantei, segurando uma panturrilha dela com cada mão, tomando cuidado para não tocar na ferida. Ela passou os braços pelo meu pescoço, para não cair.

By era leve, então não tive muito esforço em correr com ela montada nas minhas costas.

— O que você vê aí em cima? — perguntei.

— Tem um casebre ali — ela apontou, mas eu não conseguia ver nada naquela direção. Eu confiava nela, então corri para lá.

Quando chegamos a uns quinhentos metros de distância, eu já podia ver o casebre do qual ela falou. Mas, bem, eu não achava que era um casebre.

A dez metros eu já podia sentir o cheiro pútrido e intenso, o que só confirmou minhas desconfianças.

— Eu não vou entrar aí — ela disse, com nojo.

— Certo, então fique aqui e morra.

Eu abri a porta, e me arrependi imediatamente. O fedor adentrou minhas narinas, e eu senti vontade de vomitar. Abaixei a tampa da bacia sanitária imunda e tirei By das minhas costas, colocando-a lá.

— Peter, eu te odeio — ela disse, tampando o nariz.

— Pelo menos tem tampa — retruquei.

Procurei por algo que pudesse ser útil, e achei.

Tirei o rolo de papel higiênico do suporte e enrolei um pouco ao redor da ferida dela. Em alguns segundos, o papel ficou completamente molhado e com um tom vermelho, e eu tive que tirar para enrolar mais um pouco. Repeti o mesmo processo várias vezes até que o sangue coagulou e o papel conseguiu ficar lá sem molhar muito.

— Viu? — falei, colocando o papel higiênico de volta no suporte. — Isso é uma mina de…

Um pedaço de madeira atingiu meu peito, me empurrando para trás. Um estrondo e um grande crack indicaram que o banheiro público tinha sido quebrado.

Não me importei com a dor, levantei a cabeça para ver a By. Ela estava deitada, com mais sangue escorrendo pelo nariz e os olhos fechados. O peito dela ia para cima e para baixo, ou seja, ela ainda estava viva.

Mas o monstro não tinha interesse nela. Ele soltou um rugido com a cabeça de leão, liberando seu hálito fedido. A cauda de serpente me avistou, e balançou a língua para mim, fazendo aquele barulho nojento.

Ssssssssssh.

Então as outras três cabeças se viraram para mim, e ele começou a andar na minha direção. Colocou uma pata no meu peito e a cabeça de dragão se aproximou do meu rosto, soltando um bafo quente que fazia minha pele arder.

Eu estava tremendo de medo. Não de medo do mostro, mas do que ele iria fazer com a By depois que me matasse. Eu só queria que ela acordasse e fugisse. Só queria que ela ficasse bem.

A fera cansou de se aproveitar de mim e mordeu o meu ombro. Eu vi meu próprio sangue escorrer pelos dentes da boca de leão, e gritei com a dor que veio junto da mordida.

Minha visão foi ficando turva, branca nos cantos, e, de repente, eu estava em outro lugar. Mas não parecia o mundo real: era tudo em preto e branco e distorcido, como se a vida tivesse sido mudada com um efeito da Retrica.

Eu vi a mim mesmo, sentado na biblioteca da escola, com a cabeça no ombro da By enquanto ela lia um livro estranho.

Ei, pare de ler isso e me beije logo. — eu pedi.

Peter, vou te beijar até você pedir para eu parar, certo? Só deixe eu terminar essa história. É interessante.

Uma história tão interessante que faria você não me beijar, é? Sobre o que ela fala?

Belerofonte.

Você me xingou de quê?

Não, besta. É o nome do protagonista. É a história de como ele derrotou a Quimera. Você sabe o que é a Quimera, pelo menos?

Mordi o canto da língua.

E se eu te disser que não?

É sério que eu namoro com você? Meu Deus. Quimera é um monstro da mitologia grega. É um híbrido de dois ou mais animais, sabe? Mas geralmente ela aparece com três cabeças. Uma de leão, uma de cabra e a outra de dragão, e uma cauda de serpente.

E como ele fez para derrotar isso?

É o que eu estou tentando descobrir e você não deixa. Mas, pelo que parece, acho que ele montou no Pégaso e acertou as costas da Quimera com uma lança.

Será que se eu fizesse algo assim você casaria comigo?

Ela sorriu.

Não precisa. Eu já vou casar com você.

O peso que estava no meu peito sumiu, e a alucinação se foi. Eu voltei ao mundo real, ainda desnorteado, mas acordado. Bom, eu não acreditei que estava acordado porque, quando eu virei a cabeça para ver o que tinha acontecido com a Quimera, vi algo mais inacreditável ainda: um pégaso.

Não era um pégaso, era o Pégaso. “Certo, Peter, mas qual é a diferença?”. Eu não sou professor de história, então vocês têm que se virar, mas eu posso dizer que o Pégaso é o primeiro, primordial, pai de todos os pégasos. Acho que deu para entender.

Enfim, ele tinha empurrado a Quimera de cima de mim, e agora ela estava furiosa, soltando fogo sem parar. O Pégaso olhou para mim e abaixou a cabeça, como se me chamasse para cima dele. Sem pensar, eu me levantei e montei nas costas dele, passando a mão pela sua crina macia e perfeitamente branca.

Ele levantou voo, e eu gritei de pura excitação. Era como estar montado em um cavalo de carrossel, só que de verdade, e mil vezes mais rápido e alto.

Olhei para baixo, e a diversão se foi. Já que eu estava fora de alcance, a Quimera passou seu foco para o alvo fácil mais próximo: By. Ela pôs uma pata na perna dela — a perna machucada — e cheirou o pescoço, avaliando se valia a pena dar uma mordida. A raiva que me encheu era maior do que qualquer outra coisa que eu já havia sentido.

Então, como se toda a minha raiva saísse do meu corpo para a minha mão, uma lança vermelha e fumegante apareceu lá. Eu não mirei, não calculei e não pensei. Só lancei.

No momento em que a Quimera ia abocanhar a carótida da minha namorada, a lança a perfurou nas costas, atravessando seu corpo e fincando no chão. O fogo espalhou-se pela pelugem, queimando cada centímetro dela. Os gritos de agonia eram horríveis, mas soavam como alívio para mim.

Alguns segundos depois, tudo desapareceu. A Quimera, a lança flamejante e, para meu azar, o Pégaso. Eu fiquei em queda livre, com o frio na barriga aumentando a cada segundo.

O chão estava cada vez mais próximo, e, de novo, eu me preparei para morrer. Mas, de novo, eu não morri. Parei no ar, quase no chão, com a minha testa tocando a ponta da grama rala. Tinha algo me protegendo do impacto, como uma bolha, e ela me impedia de ver claramente, mas eu podia ver que tinha um cara apontando algo para mim.

— Interessante. — foi a única coisa que ele disse.

Pelo que eu podia ver, ele tinha pele morena e cabelos brancos — quero dizer, brancos mesmo, como leite.

E, bem, ele tinha um cajado.

~Ψ~


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