Aquele que Perdeu a Memória escrita por Ri Naldo


Capítulo 26
Vérité




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O Acampamento Júpiter era enorme, mas o buraco no meu peito era maior.

Eu estava deitada no quarto para o qual me levaram depois da batalha. Os corpos de semideuses mortos ainda estavam sendo postos em macas quando um campista romano tocou em meu ombro e fez sinal para que eu o seguisse.

— Meu nome é Frank. Frank Zhang — ele dissera. Era corpulento e tinha um rosto de bebê, realçado pelo cabelo curto e orelhas redondas. — Qual o seu nome?

— Louise — disse, seca, fitando o chão.

— Louise Martin?

Fui forçada a encará-lo. Ele sabia meu sobrenome?

— Você sabe meu sobrenome?

— Está brincando? Todos conhecem você. Você é a garota que voltou à vida, assim como Mirina Murray. São uma espécie de lenda aqui no Acampamento.

Afastei-me dele involuntariamente. Ele pôs as duas mãos na frente do corpo, na defensiva.

— Calma. Não é algo ruim. Nós respeitamos vocês duas. Inclusive, eu tenho até um pouco de medo.

Não pude negar-lhe um sorriso, mas este logo se esvaiu.

— Você está bem? — ele perguntou. Seus olhos tinham uma preocupação genuína, mas eu não poderia explicar o que estava acontecendo nem se eu tentasse.

Limitei-me a indicar um “não” com a cabeça e continuar andando. Ele respeitou meu silêncio e me acompanhou sem dizer nem mais uma palavra até o alojamento para o qual eu fui designada.

Chegando lá, uma garota de pele morena, cabelos cacheados cor de canela e olhos dourados estava esperando por Frank. Ela se apresentou como Hazel Levesque. Meu nome causou o mesmo efeito nela, mas a garota não parecia surpresa, como se retornar dos mortos fosse normal.

— Bom, Louise, a gente tem muita coisa pra fazer, então… — Frank estendeu a mão para mim, e eu a apertei. — Se cuida.

— Você também.

Meu quarto era simples. Apenas um pouco maior que o espaço que eu e Mirina dividíamos no navio. Uma cama, um criado-mudo de madeira e minha bagagem. Eu gostava assim. Não que Mirina fosse uma companheira de quarto ruim, mas eu tinha que esperar ela sair para extravasar minhas emoções. Aqui eu estava sozinha. E com muitas emoções para extravasar.

Apesar dos acontecimentos recentes, eu não surtei. Meu coração estava completamente estilhaçado, eu estava cansada, dolorida e perplexa, mas eu não surtei.

Sentei na cama e comecei a digerir o que tinha acontecido.

Dylan perdeu a memória, mas ele lembrava com afeição de uma pessoa, e essa pessoa não era eu. Era Anne.

Eu estava bem ao lado dela, esperando por ele, mas Dylan me ignorou como se eu nem existisse. Ele nem sabia mais quem eu era.

Esfreguei as mãos no rosto e suspirei. As coisas não param de ficar piores. Quando eu penso que o nível de sofrimento chegou no máximo, ele aumenta mais.

Abri a mochila preta que estava no chão e tirei de lá um caderno azul. O diário que Dylan deixara. Como eu sempre fazia, abri em uma página aleatória e comecei a ler.

Louise, você gostava de me xingar. Muito. E eu não me importava. É loucura, mas eu não ligava.

Eu percebi que você era especial para mim naquela noite em Raleigh. Mirina tinha usado os poderes dela para desintegrar as pedras que bloqueavam a entrada da caverna — nessa época, não tínhamos ideia que esse poder seria sua ruína; jamais a teríamos deixado usá-lo se soubéssemos — e desmaiado. Ela não respirava. Todo mundo entrou em pânico. Ninguém sabia o que fazer. Eu tomei a iniciativa e fiz respiração boca-a-boca nela. Basicamente, eu salvei a vida dela — e fui recompensado com um chute na bunda. Você ficou com raiva e correu para a floresta. Subiu em uma árvore e ficou fazendo talhos nela com sua faca. Eu te segui, e você assumiu que ficou com ciúmes por eu ter feito aquilo. Então eu assumi que fiquei com ciúmes quando vi Colin te beijar na noite anterior. Ficamos olhando um para o outro. Você estava com raiva. Suas bochechas inflavam quando você estava com raiva. Eu disse que você parecia uma esquila.

Lousquila.

Ali eu vi que queria que você fosse minha.

Minha Lousquila.

Eu sinto sua falta. Todos dizem que eu deveria te esquecer e seguir em frente, mas eu não quero te esquecer.

Eu quero você de volta.

Uma lágrima caiu no papel e borrou a palavra “Lousquila”. Deixei minhas emoções tomarem conta de mim e chorei por vários minutos, deitada na cama.

Então ouvi um barulho e me virei. Um corvo preto estava em cima do criado-mudo, me olhando profundamente. Seus olhos eram vermelhos e mortíferos.

Era Ares. Ele estava me repreendendo. Não era a primeira vez que isso acontecia. Mas dessa vez eu concordava com ele.

Sequei as lágrimas dos olhos com a manga da camisa e funguei o líquido que saía das minhas narinas.

O pássaro sumiu e deixou em seu lugar um espelho de mão. Peguei-o e observei minha imagem.  Fiquei enojada com o que vi. Uma garotinha descabelada com os olhos vermelhos de tanto chorar por um amor adolescente.

Abri o criado-mudo e encontrei lá vários itens de higiene pessoal. Dentre eles, um pente.

Penteei meu cabelo e o prendi em um rabo de cavalo. Tirei a camisa laranja imunda do Acampamento Meio-Sangue e vesti uma preta do Linkin Park que eu guardava na bolsa. Limpei meu rosto com um lenço umedecido e me olhei novamente no espelho.

Agora eu me parecia mais com a Louise original. A que existia antes dessa merda toda acontecer.

Minha tristeza transformou-se em raiva. Eu soquei o criado-mudo repetidas vezes, tentando fazer nele um buraco tão grande quando o que estava em meu peito. Quando acabei, o móvel estava reduzido à tocos e minha mão sangrava, mas eu não sentia dor. Joguei o espelho no monte de madeira e o vidro, ao quebrar, criou um fogo avermelhado que embebeu todo o quarto em luz.

Peguei o diário e, sem remorso, atirei-o nas chamas. Observei-o queimar com os punhos cerrados.

Eu ainda tinha muita raiva guardada. Não foi o suficiente.

Eu precisava de mais.

Ψ

Todos olharam torto para mim quando eu entrei no salão de treinamento. Era um lugar enorme, com diversos ringues espalhados por seu comprimento, armas de todos os tipos penduradas na parede e cadeiras de metal onde os campistas podiam observar as lutas.

Uma menina com calça esportiva e top verde interrompeu seu treinamento para me observar. Todos pareciam estar assistindo a luta que ela travava com outro campista quando eu cheguei.

— Você não é bem-vinda aqui, grega — ela disse, seca. — Vá procurar seus amigos e não nos atrapalhe. Vocês não entram no nosso caminho e não entraremos no seu.

— Eu quero treinar — respondi, cruzando os braços.

— Por que você não vai bater na porra dos cadáveres dos que morreram quando vocês chegaram? — ela gritou. A plateia seguiu o exemplo dela e começou a atirar xingamentos na minha direção, muitos deles em latim.

Eu não dei a mínima.

— Se você tem tanta raiva de mim assim, me dê uma lança e vamos resolver isso no ringue.

Ela me fitou por um tempo, mas sorriu e jogou a lança que tinha em mãos para mim. Testei a ponta com meu dedo indicador, e um ponto de sangue surgiu. Perfeito.

Andei rapidamente até a entrada do ringue e passei meu corpo pelos elásticos.

— Você tá de jeans — a garota disse, pegando outra lança idêntica à que eu tinha em mãos. Ela tinha o cabelo preto amarrado em uma trança. — Vai perder feio.

— Acho que eu estar de jeans torna essa luta justa pra você. E eu achando que vocês lutavam de armadura.

Assim que eu falei isso, ela desferiu o primeiro golpe. Meus reflexos tomaram conta de mim e eu o bloqueei com minha lança. Ela não perdeu tempo e golpeou novamente, com mais força. A garota repetiu o ataque várias vezes.

— Vai ficar só na defensiva? — perguntou, rodando a lança nos dedos e andando em círculos no ringue.

Fiz o gesto de chamar com a mão. Ela atacou novamente. Mas, dessa vez, ao bloquear, eu usei o peso do meu corpo para empurrar a lança dela para o lado, e não hesitei em golpeá-la na perna. Ela caiu de joelhos com um corte na calça vermelho de sangue. A garota bufou de raiva e usou o cabo da lança para tentar me derrubar. Eu pulei, mas ela já esperava por isso; usou o pé para levantar a lança e acompanhar meu pulo. Eu caí no chão e o ar saiu dos meus pulmões.

Ela analisou o corte na perna enquanto eu usava minha lança para me levantar.

Dessa vez, fui eu que investi. Golpeei-a repetidas vezes, mas ela era rápida e ágil. Entretanto, eu era mais forte. Concentrei toda a minha força do braço da lança e gritei quando golpeei uma última vez. O impacto foi tão forte que a minha arma partiu-se em três pedaços, mas a dela continuou intacta. Então eu percebi que a lança dela era feita de um material diferente do meu.

— Muito justo — comentei, desarmada.

Ela deu um passo à frente e apontou a lança para mim.

— Foi você quem pediu.

A garota gritou e correu em minha direção. Ela me golpeou e eu não vi outra opção: segurei a cabeça da lança com as mãos. Senti a lâmina penetrando a minha carne, mas não cedi à dor. Gritei enquanto eu afasta a lança de mim, e dei um chute no peito da minha oponente. Ela soltou o cabo e caiu no chão. Eu joguei a lança para o ar e peguei-a de volta com a mão no cabo. Corri até a garota, deitada no chão, e golpeei a lona do ringue bem ao lado da sua cabeça. A lança ficou presa lá.

Estendi a mão para ela.

A garota sorriu para mim e me deixou ajudá-la a se levantar.

— Não são muitos que fazem o que você faz. Meu nome é Reyna.

— Não somos de todo ruins, Reyna. Meu nome é Louise — olhei para a plateia, buscando a surpresa que agora vinha com meu nome. Eu a recebi. — Louise Martin.

— Você é…

— Sim. Aquela que voltou dos mortos.

Ψ

Reyna me mostrou onde eu poderia fazer ataduras para as minhas mãos. Assim que acabou, retornei ao meu quarto. Não queria correr o risco de esbarrar com ninguém.

Quando abri a porta, tive uma surpresa. Uma mulher estava lá, olhando o porta-retrato antes guardado na minha mochila que abrigava uma foto na qual eu, Mirina e Julieta sorríamos para a câmera. Usava uma camiseta azul sem mangas e calças jeans verdes folgadas. Ela virou-se para mim quando ouviu a porta abrir. Tinha os olhos cor de âmbar e os cabelos negros.

— Quem é você? — perguntei.

Ela suspirou, sentou-se na minha cama e fitou os próprios pés.

— Eu vi como você ficou quando o Dylan abraçou aquela outra garota. Eu sei como você está se sentindo.

— Claro, você era a mulher que estava ao lado dele. Você não sabe de merda nenhuma. O que você está fazendo aqui, mexendo nas minhas coisas?

Ela se levantou e se pôs a minha frente. Pegou uma das minhas mãos e analisou a atadura que tinha nela.

— Meu nome é Melanie. Louise, por favor, você precisa entender. Eu me arrependo até hoje de ter feito o que eu fiz, te abandonado. Foi um erro. Eu era jovem e estúpida. Seu pai me deixou e eu fiquei desesperada, não sabia o que fazer. Mas eu aprendi. Não errei de novo com Francine. Com a sua irmã. Por favor, me perdoe.

Puxei minha mão e dei um passo para trás, encostando na porta.

— Do que você tá falando? Quem é você? — perguntei. A esse ponto, o mundo girava à minha volta.

— Louise… Eu sou sua mãe.

Ψ


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