Aquele que Perdeu a Memória escrita por Ri Naldo


Capítulo 24
Chienne




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É oficial. O que antes pensava-se ser apenas um caso de alucinações coletivas foi confirmado quando as criaturas invadiram as principais cidades do mundo. Nova York, Tóquio, Seul, Paris, Moscou, Rio de Janeiro… O mundo todo está infestado de monstros. As autoridades se mobilizaram, mas balas parecem não surtir nenhum efeito neles. Já foram relatados casos de espadas de bronze e ouro que conseguiram matá-los, mas por um tempo muito pequeno.

Não sabemos de onde elas vieram ou o que querem, mas sabemos que essas criaturas das mitologias grega e romana destroem tudo no caminho delas. O dano à estruturas em nível mundial já é trilionário. A contagem de mortos chega aos bilhões. Tudo que nos resta fazer é armar barricadas em nossas casas e nos esconder. Não tentem lutar com as criaturas. Juntem-se às suas famílias nesse momento de desespero e terror. O governo não pode fazer nada por vocês.

Essa é a última transmissão que faremos na televisão. Talvez seja a última transmissão que a humanidade fará. Todas as estações de rádio e TV foram abandonadas, nós somos os últimos, e também iremos embora. Se alguém estiver nos assistindo, eu repito: não saiam de suas casas. Não tentem fugir com seus carros, eles vão achar vocês.

Só um milagre pode nos salvar agora. O fim do mundo chegou.

A televisão escureceu e virou estática. Depois, uma bola de metal do tamanho de um coco a atingiu, transformando-a em um monte de entulho. O monstro que a jogou estava na nossa frente, na porta da lanchonete. Ele materializou outra bola e jogou em direção a uma mulher que gritava freneticamente, do outro lado do recinto. Sangue dela veio parar em nossos rostos.

Eu saquei a espada que Lucas me dera no treinamento, mas temi que ela não fosse surtir efeito em uma criatura gigante desfigurada de três metros de altura.

— Corre, Francine. Eu vou distraí-lo — falei, me levantando de debaixo da mesa na qual nos escondíamos.

— Você vai morrer, Peter! — ela rosnou, me puxando de volta.

— Nós dois vamos morrer se eu não fizer nada. Você tem que ir embora. Os semideuses precisam saber o que descobrimos.

Tirei a mão dela da minha camisa e saí de baixo da mesa, chamando o monstro para mim.

— Ei, babaca. Por que você não vai jogar bolas na sua mãe?

Se eu tivesse demorado mais um segundo para me abaixar, a bola que ele jogou teria arrancado metade do meu crânio.

— Eu não sou sua mãe! Acha que eu sou feia e gorda?

Ele rosnou de ódio e partiu para cima de mim, com bolas nas duas mãos. Pulei atrás do balcão para desviar de uma, e ele errou a outra.

Nesse momento, Francine saiu devagar da mesa e levantou, correndo até a porta. Mas ela não passou despercebida pelo monstro, que atirou uma esfera mortífera no chão à sua frente. Francine caiu para trás, e seu relógio se desprendeu do pulso, batendo na parede com força. Mas, ao invés de quebrar, o acessório cresceu e se transmudou até atingir o tamanho e o formato de uma espada. Era dourada e imponente.

O brilho do sol refletiu-se nela e cegou o monstro por um momento, suficiente para o resto dos clientes correrem para fora do estabelecimento e Francine levantar-se para pegar a espada.

— Que horas são mesmo, Francine? — perguntei.

— Eu não sabia! Minha mãe que me deu esse relógio. Ela disse que era presente do meu pai.

— Claro que foi presente do seu pai.

A cegueira do monstro não durou muito, mas agora éramos só nós três. Cercamos a criatura e a ficamos rodeando. Ela rosnou para mim, revelando dentes podres e um hálito de chorume. Quase vomitei ali mesmo.

Na sua mão surgiu outra bola de metal, e eu me joguei para o lado e observei o chão explodir onde eu estava segundos atrás. Francine aproveitou a guarda baixa do monstro e o golpeou nas costas, abrindo um talho enorme que onde saiu um monte de pó dourado. Isso realmente enfureceu a coisa. Agora ela tinha duas bolas em cada mão.

— Acho que ela não vai fazer malabarismo com isso, né? — comentei, um tanto assustado.

— Você realmente tem que fazer piada o tempo todo?

— Vamos morrer com alegria, pelo menos.

O monstro atirou duas bolas de uma vez em minha direção, e eu consegui desviar das duas. Mas não tive tanta sorte na próxima rodada. Vacilei e dei um passo em falso, caindo no chão. O mundo ficou em câmera lenta enquanto uma bola de metal voava em direção à minha cabeça. Fechei os olhos, esperando o impacto, esperando o mundo ficar silencioso, mas não aconteceu. Eu segurava a espada à frente do meu rosto, e ela reluzia em uma aura vermelha. Duas metades de uma esfera estavam uma em cada lado do meu corpo. Levantei-me e parti para cima do monstro com uma energia renovada. Ele ficou estonteado um momento com minha audácia, mas quando decepei um de deus braços deformados, ele voltou a ser a fera demoníaca de sempre.

Mas, de repente, a aura da minha espada se apagou, e com ela foi-se a energia e a determinação. Hesitei só por um momento, mas foi o suficiente para o monstro me golpear com toda a força no peito. Eu voei até a parede e caí no chão com uma dor excruciante.

A criatura olhava para mim com ódio em seus olhos vermelho-sangue. Então a espada de Francine atravessou o corpo dela, fazendo-a explodir em um monte de pó dourado. Francine correu até mim.

— Quebrou alguma coisa?

— Acho que não. Não dói tanto assim.

— Tem certeza?

— Tenho.

Ela olhou para mim com olhos negros preocupados.

Atrás dela, o monte de poeira reencarnava no monstro horrendo de antes, agora mais furioso e mais feio. Francine soltou um grito e investiu na criatura, mas levou um golpe rápido e voltou voando, do mesmo jeito que eu. O monstro olhou para nós, e parecia haver diversão em seus olhos vermelhos. Uma bola surgiu em suas mãos. Ele soltou um rosnado de puro júbilo antes de atirá-la. Eu abracei Francine.

Mas um vulto preto surgiu das sombras da lanchonete bem na nossa frente. Era uma cadela preta, só que do tamanho de uma Hilux. Com a cabeça, ela rebateu a bola de metal, que perfurou a barriga do monstro perplexo, como nós, e o fez explodir mais uma vez em um monte de pó.

Subam em mim, eu vou levar vocês para o Acampamento.

Procurei ao redor pela fonte da voz que ouvi.

— Você ouviu isso também? — perguntei. Francine assentiu.

Então percebi que a cadela olhava para mim intensamente.

— Você fala?

Não, idiota. É sua vó que está falando de dentro de mim.

Francine caiu na risada. Eu a empurrei para o lado, e ela deitou de barriga para cima, ainda rindo.

— Você é uma cadela muito grossa.

É Sra. O’Leary para você.

Ψ

Estávamos um de costas para o outro, cercados por monstros.

Tudo aconteceu muito rápido: descemos do navio, todos fizeram uma formação estranha, então um corredor se abriu e um menino veio correndo e abraçou Anne. Todos ficaram calados. Parecia que ele abraçar aquela menina em especial era algo errado, desconexo. Nós não entendíamos o que estava acontecendo. De repente, alguém gritou “monstros” e a situação virou um inferno. Alguns corriam com feridos em cadeiras de roda e macas para dentro do Acampamento. O resto se preparou para a horda de monstros que vinha em direção a nós. Milhares de criaturas medonhas apareciam no horizonte.

— Jack, onde está a sua espada?

— Eu deixei no compartimento. Eles devem estar levando para dentro do Acampamento.

— Qual é a nossa primeira regra, Jack?

— Eu sei, eu sei. Nunca andar desarmado. E, aliás, onde está a sua espada, Mille?

— Eu deixei no compartimento.

Sorri.

— Jackson, Millena! — alguém gritou perto de nós, e espadas vieram voando em nossa direção.

— Lembra do treinamento? — perguntei.

— O que você só ficou me beijando ao invés de lutar ou o que você rasgou minhas roupas com a espada?

— Os dois, querida. Pensei na espada como uma bala que você controla.

Os monstros avançaram, e nós também. Quando matávamos um, chutávamos o monte de poeira que se formava, como ensinado.

— Quatro horas, Jack!

Desviei na direção especificada por Millena, mas não rápido o suficiente, a espada me deixava lento. As garras de uma harpia com rabo de cobra gigante fizeram três grandes cortes no meu braço direito. Por sorte, eu era canhoto. Devolvi o golpe e a minha sogra se desfez em pó.

Continuamos nesse ritmo, e os monstros estavam cada vez menos presentes, mas estávamos ficando cansados. Então, aos poucos, fomos falhando nos golpes. Eu já estava cheio de cortes, assim como Millena.

— Mille, seis horas! — gritei, e ela tentou desviar.

Mas não antes de um centimano atravessá-la com sua espada. Eu gritei e decepei sua cabeça com um único golpe.

Ajoelhei no chão e retirei a espada da barriga de Mille, que arquejava e cuspia sangue. Ela levantou a mão e tocou meu rosto.

— Millena…

Ela pôs um dedo em meus lábios. Eu levantei sua cabeça e a coloquei no meu colo. Ela sorriu.

— Prometa para mim que você vai ficar vivo. Que vai ajudar a salvar o mundo.

Lágrimas escorriam pelo meu rosto e pousavam na farda camuflada do exército dela. Seus cabelos cor de bronze caíam delicadamente na minha coxa.

— Você é o meu mundo. E eu não tenho como te salvar.

— Eu te amo, Jack.

Um filete de sangue escapou de seus lábios, e seus olhos ficaram vazios, parados.

Uma sombra enorme me cobriu, mas eu já não me importava. Minha namorada estava morta em meus braços.

— Sai daí, Jack! — alguém gritou. Mas parecia vazio, distante.

Ψ

Aparecemos na margem de um rio, em frente ao que parecia ser uma cidadela cercada por uma muralha de pedra e com centenas de pessoas vestindo camisas roxas e laranjas, empunhando espadas, lanças, arcos e flechas e os mais diversos tipos de armas.

Acima de nós, havia o pé de um gigante.

Francine me puxou de cima da cadela e corremos para longe do humanoide com a altura de um poste. Estávamos tão preocupados com ele que não vimos o garoto ajoelhado com uma garota inconsciente em seus braços. Ele estava chorando, o que significava que ela estava morta.

E ele também estaria se a Sra. O’Leary não tivesse mordido o pé do gigante, levando consigo dois dedos e um pouco da carne dele. Sangue dourado escorria do pé mutilado do monstro.

Então ele e a cadela entraram em uma espécie de briga de colossos. Ela pulava na perna dele e tentava abocanhar alguma coisa, mas o gigante a golpeava com um soco e ela caía no chão.

Percebi que a areia estava mais dourada que o normal, então me dei conta de que não era areia, era pó de monstro. Toneladas de pó de monstro. Além da moça morta nos braços do garoto, outros corpos jaziam no chão, sem vida. Ocorreu uma verdadeira guerra aqui.

Então, finalmente, a cadela conseguiu morder a panturrilha do gigante, e ele caiu de costas no rio, gerando uma onda que molhou todo mundo e chegou até a muralha, levando consigo o pó dos monstros. Esses aí não voltariam à vida tão cedo.

Com o gigante caído no chão, todos gritaram e correram até ele, bradando suas armas e golpeando até que só restasse pó, levado pela correnteza.

Depois, alguns campistas — como meu pai havia se referido a eles — foram até a Sra. O’Leary e investigaram suas feridas.

Alguém tocou em meu ombro, e eu levantei o olhar. Elas estavam lá. Beatrice, Mariah e Luíza.

Eu me levantei e abracei Mae e Luy.

By me olhou com aqueles olhos doces e profundos. Ficamos nos olhando até que finalmente um de nós criou coragem para um abraço. Ficamos colados pelo que pareceu uma eternidade. O cheiro suave dela enchia meu nariz, e eu percebi o quanto sentia a falta dela.

Por fim, nos separamos, e eu notei que faltava uma pessoa.

— Cadê o Nal? — perguntei.

Elas desviaram o olhar. Luíza balançou a cabeça em negativa. Eu assenti, triste.

— Venham, tenho que conversar com vocês — chamei. — Chamem os líderes dos Acampamentos grego e romano. E chamem Dylan, Lucas e Mason. Eu preciso contar uma história.

Ψ


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