Aquele que Perdeu a Memória escrita por Ri Naldo


Capítulo 23
La peau blanche, les cheveux noirs




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Estávamos agachadas atrás de um tronco, esperando o animal aparecer.

A floresta era úmida e quente, de modo que estávamos encharcadas de suor debaixo de nossas capas pretas. O tronco atrás do qual nos escondíamos estava completamente envolvido com um musgo verde e pegajoso, e nossos pés descalços afundavam no chão lamacento.

Após alguns minutos, um grande cervo vermelho e marrom apareceu, cheirando o caminho em busca de alimento. Era um animal magnífico: sua galhada cinzenta tinha quase o seu tamanho, e seus olhos completamente negros brilharam ao encontrar um arbusto de amoras. Quando o cervo perdeu a atenção com as frutas, fiz um sinal para Talassa ao meu lado. Ela saiu de trás do tronco e andou lentamente até uma árvore próxima sem fazer nenhum barulho. Fiz o mesmo para o lado contrário.

Cercamos o bicho, que ainda não havia notado a nossa presença. Talassa jogou um graveto próximo aos pés dele, que parou imediatamente de comer e olhou ao redor, agitado, sentindo um novo perigo. O animal resolveu sair dali, e veio diretamente na minha direção. Quando ele estava próximo o suficiente, me revelei, assustando-o. O cervo virou de costas e disparou para longe de mim, mas minha irmã o esperava com uma faca em suas mãos, transformando-o em história logo em seguida.

— Quem vai carregá-lo?

— É sua vez, Talassa.

Ela deu de ombros e tocou no cervo com uma das mãos. Um  fio de energia negra se prendeu à sua mão, e o animal começou a flutuar como um balão, preso à ela.

— Isso não é justo. — reclamei.

— Estou carregando, não estou?

Carregamos lenta e calmamente até o chalé abandonado onde morávamos. Abri a porta, e com um aceno, mesmo com os fios de eletricidade cortados, as luzes se acenderam, revelando um local pouco mobiliado, empoeirado. Talassa usou magia para limpar a mesa, mas eu usei da mesma para sujá-la de novo. Ela olhou para mim, aborrecida.

— O que foi isso? — reclamou.

— Mamãe não te ensinou a não usar magia para tudo que você precisa fazer? Deixe de ser preguiçosa e pegue uma flanela na gaveta.

Talassa me imitou com uma voz afinada, mas pegou o pano e limpou a mesa com as próprias mãos, depois fez o cervo parar de flutuar em cima dela. Ela trouxe também um facão, de modo que não perdeu tempo em decepar a cabeça do pobre bicho. Começou então a tirar suas estranhas e sua pele. Coloquei um pequeno balde no pé da mesa pelo qual escorria o sangue.

Fui até a estante e peguei um livro de magia aberto. Peguei alguns troncos pequenos de madeira, saí do chalé e montei uma fogueira lá fora, acendendo-a manualmente com duas pedras. Enquanto o fogo se espalhava, sentei por perto e iniciei minha leitura diária. O sol já estava se pondo, de modo que as nuvens estavam coloridas de laranja e o horizonte parecia com a fogueira à minha frente: em chamas.

Quando os últimos raios de sol estavam indo embora, Talassa saiu do chalé com um cervo perfeitamente esfolado em uma tábua.

— Você deveria ser açougueira — comentei, levantando os olhos do livro.

— Tem razão. Se eu não fosse um bruxa filha de uma deusa.

— Você fala isso como se fosse algo ruim.

— “Isso” já me matou uma vez. Ah, não, espera aí, foi você quem me matou. Quanto tempo vai demorar até eu morrer de novo?

Revirei os olhos.

— Você estava fora de controle. Achava que a magia era alguma brincadeira de criança e que podia ficar usando-a sempre que quisesse, em todo mundo que desejasse. Eu te disse que Gabriel, Edward e Anastasius tinham que ser libertos. Era parte do plano. Mas você preferiu descumprir meus pedidos e tentar ficar com seus bonequinhos. Era preciso te ensinar uma lição. E devo dizer que funcionou muito bem.

— Você planejou todos os últimos três anos só para derrotar Atena? Se você já sabia das intenções dela, por que não a impediu você mesma?

— “Só para derrotar Atena”? Ela quer dominar o mundo. E que chance tenho eu contra uma deusa? Pense um pouco.

Ela abriu a boca para rebater algo, mas senti uma pontada no meu peito e pus a mão lá, deixando o livro cair no chão e soltando um pequeno grito de dor. Talassa pôs a carne no chão e ajoelhou-se ao meu lado, abraçando meus ombros. Apontei para a fogueira, e ela assentiu.

Correu para dentro do chalé e voltou com o balde que continha o sangue do cervo. Não hesitou em jogar todo o conteúdo na fogueira, cujo fogo aumentou em dois metros de altura. Nas chamas, era possível ver uma cena:

O Navegador de Mundos, navio dos semideuses, atravessando o portal que separava o plano mortal do Acampamento Júpiter. Pensei ter visto Lucas desacordado no convés destruído.

Respirei um pouco e esperei a dor passar até falar.

— Aproveite essa noite. É a última que passaremos aqui.

Ψ

Eu, Eric e Kevin estávamos saindo dos quartéis. Havíamos limpado as paredes, varrido o chão, polido as armas e as organizado por ordem crescente de tamanho, separando-as em categorias.

Nosso turno finalmente tinha acabado, agora estávamos rumando em direção ao refeitório, nossas barrigas roncando severamente.

O refeitório ficava logo em frente pela Via Principalis, que dividia as casas de banho e os quartéis da Principia.

Sentamos em uma mesa vazia e imediatamente espíritos trouxeram o que desejávamos comer, vi meu prato encher-se de salada, arroz e carne grelhada enquanto um enorme hambúrguer aparecia no prato de Eric.

— Muito saudável para o filho do deus da medicina. — Febo sabe que você anda comendo isso no almoço? Parece até classe média americana.

— Só porque você é filha da deusa da agricultura fica se achando porque come coisas saudáveis? Você vai é morrer seca. — ele respondeu.

Um hambúrguer surgiu automaticamente no prato de Kevin, o que era normal, já que sua mãe era Invidia, deusa da inveja.

Percebi de repente que mesmo cheio de gente, o lugar estava estranhamente quieto hoje. Ninguém falava muito. Num dia normal, quase não dava para ouvir as pessoas da sua própria mesa devido ao barulho.

Imaginei que o motivo disso era a aura de tensão que irradiava do fato de que os semideuses gregos poderiam chegar aqui a qualquer momento.

Honestamente, eu estava com um pouco de medo. Nem os deuses sabem o que vai acontecer quando o navio deles chegar no Pequeno Tibre. O que os campistas vão fazer. Quais serão as ordem de Claire e Adam. Vamos prender todos? Matar todos? Sermos amigáveis? Pensar nisso me dava um pouco de ansiedade.

Quando percebi, alguém estava estalando os dedos na minha frente. Era Kevin. Voltei à realidade.

— Terra chamando Tina — ele disse, rindo. — Você tá pensando nos gregos?

— É.

— Relaxa. O mundo tá acabando para todos. Não é como se fosse ter um massacre ou algo assim. Ia ser pior pra gente, mesmo se vencêssemos. Nós precisamos nos unir a eles, Claire e Adam sabem disso. Só temos chances contra Minerva juntos.

— Eu sei disso. Não espero um massacre. É só que toda essa tensão me deixa ansiosa. Eu queria que eles chegassem logo pra acabar com tudo isso.

Eric levantou o punho fechado.

— Quando eu contar até três, eles vão chegar. Um, dois… — ele levantou um dedo a cada contagem, e parou um pouco para dar suspense — três.

Quando ele levantou o terceiro dedo, Adam apareceu na porta do refeitório.

— Peguem suas armas e vão até a margem do Pequeno Tibre. Os gregos chegaram.

Silêncio absoluto. Eu e Kevin ficamos olhando para Eric, horrorizados. Ele não estava diferente.

Um a um, os campistas se levantaram e marcharam em direção ao quartel para pegar suas armas. Não que fosse haver um combate. Era apenas tradição romana receber seus convidados com as armas em punho.

Peguei minha espada em meu compartimento no quartel e esperei Eric e Kevin pegarem as deles. Quando chegamos na margem, a maioria dos campistas já estava em formação.

No horizonte, era possível ver um navio. Muitas pessoas se aglomeravam na parte de trás do convés, porque a parte da frente estava completamente destruída.

Ψ

De longe já era possível ver a formação quase perfeita dos campistas romanos. Eles estavam com as espadas empunhadas ao lado do corpo e a postura absolutamente ereta, nos esperando.

Algumas pessoas me ajudaram a abrir um buraco no convés e descemos até o nível inferior para socorrer os que estavam na ala hospitalar, enquanto os outros iam buscar o que tivesse restado dos pertences de todos. Felizmente, a queda do mastro não havia danificado a rampa de desembarque do navio, então não teríamos problema na evacuação.

Descobrimos que a porta da ala estava bloqueada por um pilar que caíra. Com um pouco de tempo e esforço, conseguimos desbloquear a porta e abrimos caminho para os semideuses que foram guiados até o convés superior para desembarcarem. Procurei Julieta, e quando a achei sentada em uma maca, segurando a barriga, abracei-a e plantei um beijo em seus lábios.

— Por que você não saiu daqui ainda? — perguntei, preocupado.

— Eu pedi que os feridos tivessem prioridade.

— Pelos deuses, Julieta.

— Eu fiquei com tanto medo. Aconteceu do nada.

— Eu sei. Eu também fiquei. Mas estou aqui agora. Estamos juntos — eu a abracei novamente.

Ajudei-a a se sentar em uma cadeira de rodas que estava sobrando e levei-a até o buraco que fizemos, onde uma escada improvisada foi montada. Com um pouco de ajuda, conseguimos levantá-la.

Já havíamos chegado na margem e o barco havia parado sozinho, em frente à formação dos romanos. A rampa foi abaixada e a evacuação já tinha começado. Palani estava lá embaixo, organizando os campistas em uma formação respeitosa. Notei nesse momento que eu não tinha visto Hellen desde ontem à noite, na tempestade. Ela deveria estar ajudando também.

Quando o último subiu pela escada, falei com Anne.

— Você viu a Hellen?

— Não. Eu também estava procurando-a. Também estão faltando dez filhos de Atena.

— Meu deuses. Lembra do que Lucas disse, sobre um traidor?

Anne arregalou os olhos.

— Você acha que…

— Eu não sei. Mas aparentemente ela não está em nenhum lugar do navio. Deve ter saído quando a tempestade começou.

— Como ela saiu do navio? Todos os botes ainda estão no lugar.

— Eu não sei.

Esfreguei a mão no rosto. Eu estava muito estressado.

— Vamos, temos que falar com os romanos — chamei, finalmente.

Desci a rampa ao lado de Anne e abri caminho pelos campistas. Na frente, Anastasius, Gabriel, Edward, Palani, Jake e Mirina nos esperavam. Todos os líderes, exceto Hellen. Louise também estava lá. Ela queria ser a primeira a ver Dylan pessoalmente.

À frente dos romanos, um garoto e uma garota de armadura esperavam pacientemente. Quando chegamos, o garoto falou primeiro.

— São todos? — não havia hostilidade na voz dele.

— Sim — respondi. — Não sobraram muitos de nós.

A garota ordenou algo em latim para o esquadrão, e todos deram um passo para o lado a fim de abrir um corredor entre eles, revelando um garoto magro, extremamente pálido, com os cabelos bagunçados, ao lado de uma mulher que lembrava muito alguém.

Era Dylan.

Ψ

Quando os soldados romanos abriram um corredor à minha frente, eu pude ver os não mais que oitenta semideuses do outro lado. Esses eram os gregos? Eles pareciam devastados. Eu também deveria parecer devastado.

Nove pessoas estavam à frente deles. Entre eles, a garota dos meus sonhos.

Reconheci a pele branca, o cabelo preto. Era ela, eu tinha certeza.

Não sei o que aconteceu depois. Meus pés se moveram sozinhos. Minha mente se encheu da certeza de que nos braços dela tudo ia ficar claro. A dor iria acabar. Lá era meu refúgio. Era ali que eu pertencia. Eu a amava.

Ninguém tentou me impedir quando eu corri em disparada para abraçá-la.

Ψ

Era ele. Ele estava lá. Mais magro, mais pálido, mas lá. Vivo.

De repente, ele começou a correr na minha direção, com um sorriso no rosto. Meu coração se encheu de felicidade. Ele me reconhecera.

Dylan estava mais perto a cada segundo. Ele viria me abraçar. Eu iria novamente sentir seu cheiro, apertar o corpo dele contra o meu. Queria dizer tantas coisas a ele. Queria dizer que eu o amava.

Mas tão rápido quanto levantara, meu mundo desabou.

Ele abraçou Anne.

Ψ




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