Aquele que Perdeu a Memória escrita por Ri Naldo


Capítulo 22
Funéraire




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By estava ao meu lado, segurando minha mão.

Luy se postava sentada perto de nós. Ela tentava não demonstrar qualquer emoção, mas percebi de imediato quando olhei de relance que seus olhos estavam marejados. Havíamos lutado contra os telquines. Os ciclopes que enfrentamos na Califórnia pareciam brincadeira de criança comparados a eles.

Nós três estávamos seriamente machucadas. Bandagens cobriam mais partes do meu corpo do que eu gostaria. Beatrice teve que cortar o cabelo porque um golpe que abriu fendas relativamente profundas no seu pescoço também arrancou grande parte dele, que agora estava na altura da orelha. Luíza não aguentava ficar em pé ou andar por mais de dez metros, o que a fazia ficar sentada praticamente o tempo todo.

Mas foi Ronald quem levou a pior. A cena ainda passa por meus olhos como um trovão sempre que eu tento fechá-los. O convés do navio um caos. Eu e By tentando neutralizar um telquine particularmente maior que os outros. Luíza lutando com dois ao mesmo tempo, uma de suas facas em cada mão. Ela conseguiu golpear um deles, mas vacilou e caiu no chão. O outro estava em cima dela, rosnando, preparando o ataque. Foi quando Nal se jogou no bicho, tirando-o de cima de Luy. O golpe da minha espada não veio antes que a criatura abocanhasse o pescoço dele, abrindo cortes que até o mais leigo perceberia: irreparáveis. Tentei correr até ele, abraçá-lo, confortá-lo, mas foi quando o campo de força apareceu ao nosso redor, impedindo nossos movimentos, prendendo meus gritos e meu desespero. Depois, houve luz. Mas não adiantou, estava tudo escuro.

Agora Ronald estava ali, em um dos vinte e dois botes que foram deixados ao mar, enrolado em um lençol branco e com uma pequena vela presa ao seu leito. Estávamos todos no mesmo convés onde havia acontecido a luta. Era pôr do sol, de modo que a luz alaranjada sobressalente refletia na água e pintava os botes, dando um tom melancólico a tudo aquilo.

Ninguém falava nada. O único som que ouvíamos eram as ondas, e até elas estavam estranhamente quietas.

Por algum motivo, olhei para trás. Talvez para desviar o olhar das dezenas de corpos flutuando nas águas.

No horizonte, nuvens cinzentas se aglomeravam. Vi pássaros voando em nossa direção. Uma tempestade estava a caminho.

Olhei para os botes novamente. Quantas pessoas haviam perdido amigos, irmãos, amados?

Não, a tempestade já estava aqui.

Ψ

Estávamos sentados em um círculo, como eu havia pedido.

Não pude, entretanto, deixar de apreciar a genialidade dos arquitetos que projetaram o navio. Estávamos no convés secreto, um compartimento de conhecimento apenas dos líderes do Acampamento. Aqui faríamos discussões e votações que deveriam ser de total sigilo, mas não o havíamos utilizado desde que saímos do bunker. Deduzi que este seria o lugar mais seguro para nos reunirmos, já que os líderes ou estavam desacordados na ala hospitalar, ou estavam prestando respeito no convés principal, no funeral. Nada mais eficaz que a morte para desviar a atenção das pessoas.

Todavia, eles não demorariam muito para notar a minha ausência, ou a de mais dez filhos de Atena.

— Irmãos! Estou aqui para esclarecer tudo a vocês. Desculpem a demora, mas eu tinha que esperar o momento perfeito para realizar essa reunião. Escolhi vocês a dedo, porque julguei que seriam os mais leais à nossa causa. — olhei todos profundamente nos olhos, procurando algum sinal de hesitação. Nenhum. Perfeito. — Todos vocês, a essa altura, já sabem que estão acusando nossa mãe de coisas terríveis. — levantei-me, andando ao redor dos dez. — Dizem que ela quer acabar o mundo, matar os outros deuses e escravizar todos, mas isso não é verdade. Atena já existia antes do primeiro humano nascer, e existirá também depois que o último humano morrer. Ela acompanha desde o início as atrocidades, as crueldades e a perversidade humana. Ela conhece mais que ninguém as negligências que os deuses cometem com o homem. Ela observou a escravidão surgir, a morte aflorar, o poder e a riqueza prevalecerem perante a bondade e o bem-estar comum. Ela vê todos os dias como nós destruímos a natureza que nos foi dada. Acreditem em mim, meus irmãos: nossa mãe quer, como todos nós, um mundo melhor. Sob o governo dela, não existirá mais barbaridades. Só a deusa da sabedoria conhece o verdadeiro caminho que devemos seguir, e ela cansou de esperar, começou a agir. Quantas visitas vocês acham que os campistas recebem dos outros deuses? Uma a cada quatro, cinco anos? Nenhuma? Os Olimpianos não dão a mínima para nós! Mas a nossa mãe é diferente. Ela atende quando pedimos. Ela se importa conosco. Eu, Hellen Oak, tenho a honra de dizer que fui a escolhida para representar os desejos de Atena. Eu ajo conforme a vontade dela, e essa vontade, irmãos, é que nos unamos. Vocês, aqui e agora, serão os responsáveis pela criação de um novo mundo.

Levantes as mãos, e aplausos percorreram o grupo. Murmuros de confirmação ecoavam no recinto parcialmente iluminado por uma lamparina que eu trouxera do meu quarto.

Sorri.

— Ótimo.

Fui até minha mochila e peguei dez pingentes feitos à mão iguais àquele que eu usava no meu pescoço: um cordão de prata com uma coruja minimamente detalhada. Entreguei a todos os presentes. Quando todos colocaram o acessório ao redor do pescoço, os olhos das corujas acenderam, trazendo um brilho dourado consigo.

— Atena tem grandes planos para nós. — pedi para todos darem as mãos e fechei os olhos.

Quando os abri, não estávamos mais no navio.

Ψ

HORAS DEPOIS

A tempestade parecia não ter fim.

Já estava chovendo há três horas. Todos os campistas que tinham condições voltaram ao convés após o funeral para tentar controlar a água. Nem o sistema de drenagem meticulosamente projetado era capaz de dar conta dessa chuva. Todos tivemos que pegar baldes na despensa e começar a jogar a água para o mar nós mesmos. Após dois minutos ao ar livre, eu já estava encharcada.

Percy já havia feito muito hoje, mas ainda assim continuava ajudando como podia, impedindo as ondas de baterem em nós e expulsando grandes quantidades de água no navio. Ele parecia exausto.

A voz de Louise estava abafada pelo som da chuva, mas eu ainda conseguia escutá-la.

— A gente não consegue um dia de paz, né, Mirina?

— Louise, somos semideusas. Nós já vimos monstros, fantasmas, bruxas e um cara imortal. A gente já morreu e voltou à vida. Você deixou de existir e voltou de repente. A gente nunca vai ter um dia de paz sequer em nossas vidas, aceite isso.

Ela olhou para as ondas um pouco, como se estivesse digerindo o que eu dissera. Depois, deu de ombros, como se aquilo não significasse nada.

Perto de nós, um filho de Apolo encostou na amurada e vomitou ao mar.

— O mar não é pra você, hein, gostoso? — Louise falou, sem mais nem menos.

— Louise! — exclamei.

— O que foi? Ele começou.

Quando o garoto se virou, reconheci o rosto dele. Era o mesmo cara que tinha nos salvado de uma horda de monstros, quando ainda estávamos no bunker. Louise falou algo sobre morrer e ele chegou gritando “Hoje não, gostosas”.

— Jake, não é? — perguntei, remexendo minha memória em busca desse nome.

Ele assentiu, limpando a boca com a manga da camisa encharcada.

— Se a vida fosse justa, eu quebraria seu nariz e diria “nunca mais me chame de gostoso” — percebi que o nariz dele era um pouco angulado para a esquerda, presente especial de Louise.

— Que vida? — Louise perguntou, como ela fez antes.

— Para com isso, vai me dar déjà vu.

— Meus deuses, vocês são bem depressivas, né? — Jake falou, enchendo seu balde com água e jogando para fora do barco.

— A maioria dos mortos são.

— Mas vocês não estão mortas.

— Já estivemos.

— Tá, mas e daí? O que importa é que vocês não estão mais. Se viverem a vida toda só remoendo feridas, então não estão vivendo de verdade. Vocês deveriam se dar um pouco de alegria de vez em quando.

— Ah, é, sr. Otimismo? — Louise não parecia nem um pouco tocada pelas palavras dele. — Que tal um pouco de alegria, então?

Ela encheu o balde com água e jogou na cara de Jake, o que não fez muita diferença, mas ele ainda ficou surpreso.

— Tá bom, eu só queria ajudar um pouco, mas já que você quer assim. — ele encheu o balde novamente, mas não jogou. Segurou-o em suas mãos, com os olhos fechados. Quando percebemos o que ele estava fazendo, já era tarde demais.

Louise se sobressaltou quando a água quente atingiu seu corpo, causando um choque térmico. Ela grunhiu e avançou na direção de Jake, preparando o pulso para quebrar seu nariz novamente, mas um som de madeira partindo nos impediu.

Era o mastro secundário, à nossa frente. O vento estava tão forte que as bases da coluna de madeira estavam se quebrando.

— Era só o que faltava — falei.

Então, um raio branco passou pela escuridão e se postou ao meu lado. Eram os cabelos de Lucas. Ele parecia um velho com aqueles cabelos brancos. Estava muito diferente de quando eu o encontrei, aos dez anos, na imitação fracassada da arena de Sparta.

E estava muito diferente de hoje de manhã, morto na maca. Foram precisos cinco minutos de respiração boca-a-boca e massagem cardíaca para ressuscitá-lo. Já estávamos perdendo as esperanças quando ele acordou de repente, golfando o que parecia ser uma tonelada de ar.

E agora eu lembrava: foi Jake o curandeiro que havia revivido Lucas.

— Ah, então foi você quem me beijou? — Lucas analisou o físico de Jake. — Até que você não é nada mau.

Jake estava confuso entre desviar do ataque de Louise e franzir o cenho para Lucas.

Mais sons de madeira quebrando, e o mastro começou a torcer.

Meu irmão estendeu as duas mãos na direção do mastro, e uma força invisível pareceu segurar a coluna no lugar. Pessoas pararam de jogar água no mar para observar o feito. Palani abriu caminho pela multidão.

— Lucas, tem certeza que deveria estar invocando magia? Você já morreu hoje.

— Sim, senhora. Mas não vou aguentar pra sempre. Se você pudessem parar de olhar e…

Lucas caiu no chão, gritando, de joelhos. Sangue escorria pelo seu nariz.

Eu me ajoelhei ao lado dele, segurando seus ombros.

— Você tem que parar! Deixa o mastro cair!

— Se o mastro cair, a gente não vai ter como consertar. Não vamos para lugar nenhum.

— Lucas, por favor! Você vai morrer!

A vazão de sangue tinha virado um fluxo contínuo, agora saindo das duas narinas. Dava para ver o coração dele pulando no peito.

— Não. — ele disse.

— Então desculpe por isso.

Concentrei minhas energias nas pontas dos meus dedos que seguravam o ombro dele. Lembrei das algemas na casa das harpias, das barras da prisão em Columbus, e lembrei de mim mesma virando pó. Então a carne de Lucas virou pó embaixo dos meu dedos.

Ele desfez a magia e pôs a mão no ombro, gritando e esperneando de dor.

Louise correu até mim e segurou minha mão.

— Mirina! Você ainda pode fazer isso? Por que você fez isso? Nunca mais faça isso! — ela gritava. A multidão estava boquiaberta de horror, sem entender nada.

— Não se preocupe, Louise. Minha força vital não é mais natural. Eu não vou virar pó de novo.

A magia de Lucas havia cedido, mas o vento não. A base da coluna se partiu por completo, e o mastro começou a virar.

Para a surpresa de todos, o vento continuou a empurrar o mastro, que, ao invés de cair em direção ao mar, mudou sua trajetória e estava prestes a cair por toda a extensão do navio.

O que se seguiu foi um pandemônio. Semideuses correndo para todos os lados, gritando, avisando os outros. Jake ajudou Lucas a se levantar e gritou para que eu e Louise o seguíssemos.

Corremos até o fundo do navio e observamos de lá o fim do mundo. O mastro caiu, destruindo tudo em seu caminho, incluindo o leme e metade do convés inferior. Foi pura sorte a ala hospitalar estar mais um nível abaixo. O barulho lá deve ter sido ensurdecedor, mais do que foi aqui. Logo, logo haveria tumulto por lá também.

Isso se eles conseguissem perceber o que estava acontecendo a tempo. O barco estava virando. A distância entre a amurada e água ficava cada vez menor enquanto o navio fazia um giro de noventa graus e pessoas desesperadas tentavam se segurar em tudo que podiam.

Jake tentava segurar em um buraco no convés que ele havia feito com a espada, mas a madeira cedeu e ele se soltou. Louise tentou segurá-lo, mas a mão dele escorregou e ele caiu em direção à água.

Então tudo congelou. Os gritos cessaram, Jake paralisou no ar, as ondas não bateram e o barco parou de virar. De repente, o luar foi tampado e minha visão ficou completamente escura, como se estivéssemos passando por um túnel sem luz.

Um ponto claro minúsculo se materializou no horizonte, crescendo até ocupar todo o céu: a luz do dia. O mundo descongelou e Jake caiu são e salvo no convés do barco, agora em seu ângulo normal, mas ainda com a parte da frente completamente destruída.

Todos se levantaram, estupefatos, e correram até a amurada para entender o que havia acontecido.

Não havia mais tempestade. O mar estava calmo e claro. Era possível ver os peixes nadando embaixo de nós. O navio estava miraculosamente navegando sem problemas em direção à terra firme.

E, na costa, era possível ver o Acampamento Júpiter.

Ψ


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