Aquele que Perdeu a Memória escrita por Ri Naldo


Capítulo 16
Port




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/649766/chapter/16

Estava uma correria dentro do navio. Semideuses iam para lá e para cá a fim de ativar o mecanismo de movimentação manual. A coisa era complicada, então praticamente todos tinham que participar, mesmo que fazendo pequenas tarefas. Julieta por exemplo, estava na cozinha, fazendo sanduíches para os trabalhadores, carregando aquela barriga estufada para todo lugar.

— Com quantos meses você está mesmo? — perguntei, passando o presunto e o alface para ela.

— Oito. Quase nove. Então se prepare, você vai ser meu assistente pessoal de parto.

— Eu? Não, obrigado. Tenho uma repulsa por sangue. Quanta sorte desse beber nascer no meio de uma guerra. E, nossa, passamos tanto tempo em alto-mar?

— Sim. Foi bem calmo, até. Não acha estranho? Um navio enorme cheio de semideuses só atraiu alguns monstros marinhos incluindo uma cobra gigante com uma carapaça dura como aço que você matou com uma lança. Tem certeza de que não é filho de Ares, Mason? Espere… Boa ideia! Acho que vou chamar o bebê de Ares.

— Nem pense nisso — disse Louise, do outro lado da cozinha, lavando os legumes. Era um pouco estranho vê-la fazendo trabalho doméstico, mas, para o bem do meu nariz, eu não disse nada. O boato que corria era que ela estava ficando mais fraca com o tempo, e que já não aguentava mais nem levantar algumas caixas. Eu esperava que fossem só boatos, mas algo na aparência extremamente pálida dela me dizia que era verdade. — E você esqueceu de mencionar que ele ficou um dia e meio desacordado depois disso. Deve ser filho de Hipnos.

— Gente, por favor, se meu pai/mãe não me reclamou até hoje, depois de quase três anos, então nunca vai me reclamar. O acordo de Percy com os deuses diz que eles devem reclamar seus filhos até os treze anos. Eu devo ter uns quinze, então parece que sou órfão.

— Ou, caro amigo, você já foi reclamado. Antes de perder a memória, sabe? Dylan não achou você em Los Angeles? Aposto que é filho de algum deus romano estranho que controla as pessoas — Mirina fez garras com os dedos cheios de sabão e uma careta em direção a Louise, fingindo que estava sendo controlada por mim.

— Ha-ha, muito engraçado. Para sua informação, eu evito fazer isso. Só não consigo controlar quando estou triste ou com raiva. Mas vocês são as melhores irmãs do mundo que sempre fazem o que eu quero e nunca me desapontam.

As três reviraram os olhos. Eu ri.

— Vocês lembram da mansão de Edward, Gabriel e Anastasius, lá em Columbus? — perguntou Julieta, depois de um tempo.

— É, como esquecer o lugar em que eu morri? — respondeu Mirina, sem olhar para ela. — E como esquecer o lugar do primeiro beijo, não é, Louise?

Ela jogou uma cenoura em Mirina, que foi rápida e agarrou-a centímetros antes de cortar-lhe o rosto, depois deu uma mordida, mastigou e riu, com os dentes alaranjados.

Pelo que me falaram, Mirina era uma pessoa muito introvertida antes de Dylan — isto é, antes de morrer. Só falava quando fosse necessário, e ainda com ironia. Mas no que eu vi, ser trazida de volta dos mortos é um bom jeito de melhorar o humor, porque ela brinca com todos agora, e está alegre e sorridente. Como uma pessoa normal. Na medida do possível, contando a nossa situação atual.

A cozinha era um lugar incrível. Tinha dois lados, separados por um balcão de mármore preto, onde Julieta estava montando os sanduíches. Na parede do lado esquerdo havia vários armários brancos que guardavam os alimentos não perecíveis e os enlatados. Logo abaixo tinha cinco pias lado a lado também de mármore preto. Mirina estava lavando louças em uma delas, e Louise estava lavando as verduras em outra. No lado direito havia uma mesa de jantar bem grande com mais ou menos vinte cadeiras distribuídas ao redor. Eu estava sentado em uma delas, cortando fatias de um pão de forma caseiro. Havia duas portas no lugar: uma na esquerda levava à dispensa, onde a maioria dos suprimentos estava guardado — não seria esperto colocar tudo no mesmo lugar, mas acredite, era muita coisa —; e a outra na direita levava ao corredor principal do navio. E estava aberta, com Annabeth parada no batente. Os olhos cinza nos analisando como se fôssemos palhaços de um circo.

— Há quanto tempo você está ouvindo? — Julieta perguntou, constrangida.

— O suficiente. Vim avisar que já está tudo pronto, e que provavelmente vamos precisar de você, Mason.

— E o que eu posso fazer? Certamente não sou a pessoa ideal para puxar uma âncora — respondi, guardando o pão e a faca.

— Ah, não. Você vai gostar.

Ψ

Parecia que um gigante tinha pegado uma furadeira, feito buracos no navio, amarrado barbante nos buracos e conectado todos em uma âncora.

As aberturas no navio onde ficavam os canhões de bronze celestial serviram como apoio para correntes com mais ou menos cem metros de comprimento por um de largura. Eram seis correntes no total, três de cada lado. Todas levavam iam para a frente no navio e se encontravam fundidas em uma âncora de três metros. Essa âncora tinha várias hastes de metal dobradas, para que as pessoas pudessem agarrá-la e arrastá-la.

E foi o que aconteceu. Mais de vinte filhos de Ares se agarraram à âncora com toda e força que tinham e a arrastaram pelo mar, levando o navio. Eles soltavam grunhidos e gritos tamanho era o esforço que faziam, mas passo a passo a embarcação avançava pela água, contando ainda com a ajuda de Percy, que criava ondas ao nosso favor.

Ao longe, na cidade, um rugido estrondoso soou. Eu virei para trás, e notei um dragão agarrado ao topo de um prédio.

Cutuquei Annabeth ao meu lado, que observava vidrada a proa do navio — ou, melhor dizendo, Percy sem camisa.

— Annabeth, não vamos fazer nada a respeito daquilo? — apontei para o prédio em ruínas.

Ela franziu o queixo, como se fosse algo natural.

— Anne já está por lá. Um campista que estava com ela voltou para nos notificar. Parece que ela achou um grupo de humanos que pode ver através da névoa. Saberemos disso melhor mais tarde. Por enquanto se preocupe com a sua tarefa.

Ela tinha me explicado a tarefa enquanto caminhávamos nos corredores até a saída do navio. Eu resisti um pouco, mas a filha de Atena me convenceu, ressaltando o quanto seria importante e tudo mais.

Permaneci calado pelo resto da “viagem”, o que levou mais ou menos duas horas. No nosso destino final, o Porto Internacional de San Francisco, os filhos de Ares soltaram a âncora e desabaram na água, exaustos. Outros semideuses os pegaram e levaram de volta para dentro do navio.

Palani virou para nós e fez um sinal de beleza. Annabeth virou para mim.

— Agora você entra.

— Eu tenho mesmo que fazer isso?

Ela olhou para mim com severidade. Eu bufei e fui caminhando até a entrada do porto.

Era uma construção grande, azul, com uma outdoor na frente no qual havia uma âncora desenhada e as siglas SFIH (San Francisco International Harbor). No decorrer dos cento e cinquenta metros de extensão, vários barcos de tamanhos variados estavam ancorados em vagas com aproximadamente trinta metros cada. Algumas pessoas estavam desembarcando de uma embarcação preta chamada Fevre Dream, e um transatlântico chamado Ozymandias soou seu apito, indicando para todos os passageiros subirem à bordo.

O lugar cheirava a enseada e peixe frito.

Entrei na recepção e cruzei os braços em cima do balcão da secretária. Ela estava com um headphone atendendo uma ligação. Levantou o dedo indicando para eu esperar. Quando desligou, perguntou, com uma voz ensaiada:

— Em que posso ajudar?

— Eu gostaria de reservar uma vaga para o meu navio, por favor.

Ela olhou para mim em completa descrença.

— Ahn… Certo. Você tem o recibo de pagamento e o comprovante de agendamento?

— Na verdade, não.

— Então eu não posso fazer nada pelo senhor.

— Por favor?

— Senhor, mesmo se você tivesse mais de dezoito anos, o que claramente não tem, eu não posso fazer nada sem os dois papeis que comprovem que sua embarcação tem lugar agendado no porto. Sinto muito.

Suspirei.

— Na verdade, eu que sinto muito.

Fechei os olhos e concentrei minhas forças. Imaginei a secretária ligando para o oficial náutico e pedindo alguns homens e máquinas para transportar o navio até a vaga mais próxima.

Quando eu reabri os olhos, ela estava comunicando ao oficial exatamente o que eu tinha pensado.

— Ah, e avise que estamos com um buraco e que vamos precisar da equipe de reparos.

— E a equipe de reparos também. Os melhores homens, oficial. Sim, é um navio importante. Obrigada — ela encerrou a ligação e voltou a olhar para mim com um sorriso no rosto. — Mais alguma coisa, senhor?

— Você tem algum chocolate por aí?

Ela abriu uma gaveta, tirou de lá um Twix de caramelo e me entregou. Eu dei uma mordida.

— Obrigado. Tenha um bom dia.

— O senhor também.

As pessoas sentadas na recepção olhavam para mim curiosas. Eu acenei para uma senhora boquiaberta e saí.

No fundo eu me sentia mal por ter usado minha habilidade, mas o chocolate tinha um gosto tão bom que me fez esquecer.

— E então? — perguntou Annabeth.

— Daqui a pouco a cavalaria deve chegar.

Ela apertou minha mão e sorriu para mim.

— Desculpe, eu sei que é difícil para você. Obrigada.

Pisquei o olho para ela e sentei em um banco ali perto.

Não demorou muito até a equipe chegar: uma dezena de homens e mulheres saradões vestindo uma camisa branca com uma âncora na frente. Alguns deles se dirigiram ao segundo andar, onde estavam as cabines que controlavam máquinas de diversos tipos. Uma delas era um gancho que, com a ajuda dos que subiram, foi encrustado na proa e puxou com facilidade o navio de mais de cinquenta metros até um ancoradouro especial, maior que outros, para onde foi outro grupo, que parecia ser o de manutenção. Em instantes o rombo na quilha estava sendo drenado, secado e limpado.

Perto de onde estávamos, na frente do ancoradouro, uma mulher segurava uma prancheta e fazia anotações. Ela usava uniforme azul e branco, com uma boina preta. Deveria ser a oficial náutica.

Algo no rosto dela me era familiar, e despertava uma sensação calorosa no meu peito.

Cutuquei Annabeth novamente.

— Você já viu aquela mulher? — perguntei, ainda olhando para a oficial.

— Não acho. Por quê?

— Não sei. Sinto que a conheço.

Ela olhou para nós, e a prancheta caiu no chão com um baque surdo. Tirou a boina da cabeça, revelando cabelos ruivos cacheados e volumosos. Então eu soube.

Correu até mim, e nós nos abraçamos fervorosamente, enquanto Annabeth observava, intrigada.

Era o momento mais estranho da minha vida. Ou pelo menos da vida que eu lembrava.

— Mason — disse a mulher, esfregando meus cabelos. Eu podia sentir as lágrimas dela caindo pelo meu rosto. Em algum momento eu também cheguei a chorar.

— Mãe — falei, com toda a certeza do mundo.

Annabeth soltou uma exclamação em voz alta e levantou-se, mas não disse nada.

E então minha memória voltou.

E eu vi coisas horríveis.

~Ψ~


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Aquele que Perdeu a Memória" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.