Aquele que Perdeu a Memória escrita por Ri Naldo


Capítulo 15
Escalier




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Acordei mas não abri os olhos. O travesseiro embaixo da minha cabeça estava muito fofo, e o som das máquinas de colheita do meu pai era aconchegante. Então um solavanco me deu um susto e eu abri os olhos para ver que o som na verdade vinha do trem, e o travesseiro na verdade eram os seios de Francine.

Levantei a cabeça instantaneamente e agradeci aos deuses por ter acordado antes dela.

Uma senhora com um carrinho de doces passou pelo nosso vagão, gritando.

— Bombom de cupuaçu! Bombom de cupuaçu!

— Isso é algum tipo de produto químico novo? — perguntei, sonolento.

— Não, criança — ela respondeu, com desdém. — É uma fruta, mas é claro que você não conhece, é muito nacionalista para isso. Tome, é só um dólar.

Ela me ofereceu um bombom. Eu tirei um dólar do bolso de trás da calça e entreguei a ela.

Abri a embalagem amarela e coloquei o doce inteiro na boca. Mastiguei, e então percebi o meu erro. Era muito gostoso. Levantei para comprar mais bombons, mas a senhora já estava longe, e, nesse momento, Francine acordou.

— Merda de vendedores ambulantes — ela falou, com a mão no rosto. — Só sabem gritar no ouvido da pessoa. Onde nós estamos?

Olhei pela janela embaçada e vi planícies cobertas de grama curta e florestas ao fundo. À distância, podia-se ver um lago enorme.

Já havíamos passado uns belos dois dias e meio no trem, e, a cada estado que cruzávamos, um locutor nos informava pelos alto-falantes todas as informações básicas: nome, geografia, população, clima, demografia… Como se ligássemos para isso. Então, eu não me surpreendi quando o vagão se encheu com a voz monótona falando sobre o estado de Ohio, respondendo a pergunta de Francine.

— Demora muito para chegar em Columbus? — ela perguntou, com os olhos inchados de sono.

Tirei meu celular do bolso e abri um aplicativo.

— Na verdade, é só uma estrada reta, então estaremos lá em mais ou menos uma hora e meia. Bem, pelo menos é o que diz no Google Maps.

Então nós ficamos uma hora e meia sentados, conversando sobre o nosso passado. Eu contei a ela como tinha conhecido a Beatrice, e ela me contou como tinha dado um pé na bunda de todos os caras que já tentaram se envolver com ela — ou seja, basicamente, ela nunca tinha beijado. Eu ri um pouco, e tomei um soco na orelha por isso. Não conversamos mais depois, só ficamos olhando as pessoas saírem a cada cidade nova em que parávamos, até que nós desembarcamos — infelizmente com a maioria das pessoas do trem — em Columbus.

Falando a verdade, eu só tinha saído da Califórnia uma vez, para visitar uma tia doente no Texas. Uma experiência horrível, porque tudo que eu comia envolvia pimenta. Saí de lá cheio de feridas no céu da boca.

Columbus ficava bem no meio de Ohio, então não tinha o mesmo cheiro de oceano que São Francisco. Mas, apesar disso, era quase tão glamourosa quanto. Depois de mostrar o bilhete dos meus pais a um funcionário e perguntar onde deveríamos descer, saímos do trem em uma praça que aparentemente ficava no centro da cidade. O lugar tinha árvores, bancos de onde as velhinhas jogavam milho para os pombos, uma ciclovia onde vários ciclistas uniformizados e tudo o mais apostavam uma corrida, e era banhado no lado direito por um lago. Ao longe, dava para ver prédios que mesmo no fim da tarde já brilhavam.

— Vamos, já vai anoitecer — Francine me puxou para um ponto de táxi. Eu li o endereço com dificuldade para o taxista. Ele nos olhou estranho, mas deu de ombros e começou a dirigir.

Em algum momento da viagem, eu comecei a falar.

— Por que você veio comigo?

— Porque eu quis.

— Sério. Por quê?

Ela deu de ombros.

— Era chato lá em casa.

— Você não gosta de ficar com sua mãe?

— Tá bem difícil ficar com ela nesses últimos dias. A cabeça dela parece estar em um lugar distante. Eu falo e ela demora para responder. Eu a chamo e ela tá sempre ocupada. E ela sai o tempo todo. Diz que tem que trabalhar até tarde. E em breve eu vou ter que voltar à escola, aí vai ficar tudo seis vezes mais entediante. Uma viagem seria boa, para variar.

— Onde ela trabalha?

— Não sei exatamente. Quando eu pergunto ela diz que é secretária em algum lugar no centro da cidade. Era pior antes, quando ela tinha que ficar uma semana por mês em Nova York para uma “reunião de negócios super importante no Empire State”. Eu ficava com uma mulher chamada Safira. Era o demônio em pessoa. Não me deixava sair de casa e nem usar o computador por muito tempo. Até que um dia eu decidi fugir, e ela foi atrás de mim. Quando me alcançou, me pegou à força e foi me arrastando até em casa. Assim que ela me soltou eu dei um soco que fez o rosto dela ficar parecendo uma ameixa. Processou minha mãe e eu por agressão física. Tivemos que pagar um absurdo, mas depois disso eu nunca mais a vi, e acho que a dona Mellanie perdeu o emprego, porque nunca mais foi para Nova York.

Ela parou para respirar um pouco. Depois continuou.

— Se me pedissem para dar um palpite, eu diria que é por causa do merda do meu pai e da minha irmã morta. Acho que ela tenta mascarar toda a tristeza se enchendo de trabalho para fazer, e, como sempre, sou eu quem acaba sofrendo com isso. Às vezes eu acho que seria melhor para ela se eu nunca tivesse nascido.

— Ei…

Cobri uma mão dela com a minha. Ela, por reflexo, tentou afastar, mas eu segurei.

— Eu posso não conhecer vocês duas bem, mas eu sei que ela te ama. Acredite ou não, você é o motivo por ela ainda estar de pé, lutando. E se ela te deixa mal, não é de propósito.

Ela olhou para mim, como se estivesse me calculando, vendo se era plausível confiar em mim. Francine poderia me fulminar e eu não perceberia porque aqueles olhos me deixavam hipnotizados. Eles eram negros como breu, e eu sabia que lá dentro ela havia guardado muitas mágoas, rancor e tristeza.

Então, de repente, ela puxou a mão de debaixo da minha, cruzou os braços e olhou para frente, de volta com a expressão carrancuda de sempre.

Alguns minutos mais tarde, o taxista nos deixou em uma encruzilhada escura e molhada.

— Só posso levar vocês até aqui. O carro não passa pelas ruelas. O que vocês vieram fazer aqui, afinal? Quer saber, não me fale. Não quero saber. Só não me envolva com a polícia. Nem precisa pagar.

Ele foi embora em alta velocidade. Isso nos economizou bastante tempo, porque eu não tinha dinheiro para pagar.

Mas ele estava certo. O lugar era realmente estranho. À nossa direita, uma estradinha de paralelepípedos deformados levava à uma construção enorme, mas abandonada, rodeada de vegetação que não era cuidada há anos. No início da estrada havia uma placa onde podia-se ler “Presídio Central de Ohio - Entrada Proibida”.

Eu tremi. Algo sobre aquele lugar causava um pânico dentro de mim. Era como se algo muito ruim tivesse acontecido lá.

À esquerda, uma estrada de terra levava a um aglomerado de ruelas e casas no estilo favela. No começo de cada rua havia cartazes desbotados com o nome da mesma. Já era noite, então Francine teve que tirar uma lanterna da mochila para que pudéssemos ler os nomes com clareza, e o estado dos papeis não ajudava muito.

As casas tinham realmente uma péssima aparência. Muitas delas poderiam ser consideradas casebres. Ao passarmos, algumas janelas se abriam e revelavam pessoas de aspecto amedrontador olhando para nós. Algumas vezes eu até achei que iam pular e nos assaltar com uma faca, mas elas só fechavam a janela de novo e puxavam as cortinas. Em certas casas dava para ouvir o barulho do telejornal anunciando os crimes cometidos no dia; em outras, ouvimos casais brigando em voz alta, as crianças chorando. Francine teve vontade de arrombar uma casa onde ela ouviu o marido estapeando a esposa, mas, apesar de também ficar com raiva, segurei o braço dela e disse para não arrumar problemas. Ela cuspiu na porta da casa e seguiu em frente bufando.

Já tínhamos percorrido umas sete ruas quando vimos o cartaz que batia com o papel que eu tinha na mão. Era uma rua diferente das outras. Parecia mais… decente. Era mais larga, tinha menos casas, e não era tão suja como as outras. Nós a percorremos até achar a casa número 11, como meus pais escreveram.

Ela não pertencia ali de jeito nenhum. Era, na verdade, um casarão. Antigo, mas bem cuidado. À noite, refletia o brilho espectral da lua nas janelas, e os pilares da entrada formavam uma sombra em forma de seta na porta, como se nos convidasse a entrar. Era totalmente preto e magistral, quase como uma miniatura de um castelo. No lado direito tinha uma quadra de vôlei que parecia inutilizada há muito tempo.

Caminhamos até a porta e eu bati. Ninguém respondeu, então eu bati de novo. Ainda sem resposta, Francine perdeu a paciência e resolveu empurrar a porta, e percebemos que ela estava aberta.

Por dentro o casarão era ainda mais bonito. Móveis lustrosos estavam por toda a parte, o chão estava impecavelmente limpo, e nas paredes adornavam quadros incríveis.

— Parece que não tem ninguém aqui — Francine falou, admirando tudo.

— A porta estava aberta, deve ter alguém. E não acho que erramos de casa. Esse lugar é bem suspeito.

— Olhe — ela apontou para um quarto que tinha a porta aberta. Era diferente do resto da casa, porque estava sujo.

No criado-mudo do quarto havia quatro porta-retratos. Um tinha a foto de um menino alto com cabelos castanhos em forma de capacete. Outro mostrava um menino loiro sorridente. No próximo tinha um garoto sério, alto, pálido e com cabelos pretos. Ele parecia não ter nenhum motivo para sorrir na vida. O último continha uma foto dos três juntos, com os dois meninos fazendo caretas para o de aspecto sério.

A cama era o que tinha de mais estranho. Estava coberta de poeira. Não, não era poeira. Era uma espécie de pó dourado. Peguei um pouco de pó com as mãos, mas uma voz inesperada me assustou, e eu soltei imediatamente.

— Não, nós não podemos! — o grito veio lá de baixo, do porão.

Olhei para Francine, e ela assentiu. Saímos rapidamente do quarto para procurar alguma escada ou abertura que levasse ao porão.

Ouvimos mais gritos vindos de lá, e os seguimos até que encontramos uma porta escondida atrás de uma prateleira que dava para uma escada de pedra escura. Descemos sem fazer muito barulho, e nos deparamos com uma espécie de reunião. Oito pessoas estavam sentadas ao redor de uma mesa circular. Entre eles, meus pais.

— Nós não podemos deixá-los se exporem ao perigo! São nossos filhos, pelo amor dos deuses! — um homem falou com a voz elevada, e eu o identifiquei como o que tinha gritado.

— Você não entende? É o destino deles. Sem eles, essa guerra estará perdida — retrucou uma mulher.

— Mas…

A mulher calou o homem com um gesto, e apontou para a escada, onde estávamos.

— Tem alguém nos observando.

A porta no topo da escada fechou com um estrondo, e meu pai se levantou da mesa e veio até mim, com uma adaga em punho. Antes que ele me esfaqueasse por acidente, eu me revelei.

— Calma, pai! Sou eu.

A expressão no rosto dele mudou de preocupação para alívio. Minha mãe também se levantou da mesa e veio me abraçar.

— O que o filho de vocês está fazendo aqui? — disse o mesmo homem. — E por que ele trouxe uma semideusa?

Olhei para Francine.

— Semideusa? — perguntei, atônito.

— O que é semideusa? — ela perguntou, perplexa.

— Ela não sabe? — o homem pareceu surpreso. — Você não sabia, Peter?

Dei um passo para trás, até que encostei na parede.

Todos olhavam para Francine, e ela olhava para todos, confusa.

~Ψ~


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