Aquele que Perdeu a Memória escrita por Ri Naldo


Capítulo 14
Clair


Notas iniciais do capítulo

Eu sei, eu sei. Demorei uma eternidade para escrever. Me desculpem por isso, mas prometo que não vão se arrepender com o que está por vir.



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— Impossível. — sussurrei, para que ninguém ouvisse.

Era Lucas. Ele estava vivo.

Ela sabia disso?

Sabia. Ela que me fez trazer os semideuses até aqui, e nada passa por ela.

Então por que não me disse?

Deve ter algum motivo. Sempre tem um motivo para ela fazer qualquer coisa. É tudo muito planejado e racional.

Mas o que mais eu não sei?

Calma, Hellen. Mantenha-se sob controle. Não comprometa o plano, e tudo vai ficar claro.

Ψ

Assim que atracamos o navio e descemos para terra firme, eu me senti muito mais confortável. Afinal, como filha de Deméter, a terra sempre foi meu lugar. Cansei de tanto vomitar em alto-mar. Mas não permiti que minha alegria durasse muito, porque eu sabia que teríamos que voltar ao mar aberto cedo ou tarde. Ainda não havíamos chegado ao nosso destino.

Dei um pulo para sentir que a terra embaixo de mim era mesmo firme e sólida, e me estiquei. Nesses meses todos eu enjoei de tanta água. Literalmente.

A maioria da tripulação havia ficado no navio arrumando as coisas, analisando o tamanho do buraco, cuidando de assuntos náuticos ou simplesmente porque não quiseram sair, mas eu, Colin, Hellen, Palani e outros campistas saímos para dar uma caminhada.

Andamos na areia por um tempo, e eu me dirigi a Colin.

— Consegue imaginar que é outro oceano que está banhando nossos pés?

— Na verdade, não tem muita diferença de um oceano para outro, é a mesma quantidade de íons, ácido carbônico, algas multicelulares, etc. Só pode mudar na concentração do cloreto de sódio na solução de…

— Tá, entendi. Cale a boca. Só pense na ideia, não nessa química toda. Você sabe que eu odeio química.

— Humanos podem nos ver? — Palani perguntou, interrompendo a conversa.

— Não enquanto estamos tão perto do navio, creio eu — respondeu Hellen, quase imediatamente. — Por quê?

— Porque tem uns cinco ali olhando diretamente para nós.

Olhei para onde ela apontou, e realmente cinco humanos estavam nos olhando.

Mas um deles era diferente, tinha o cabelo branco e… um cajado.

Assim que eu percebi, corri o mais rápido que pude.

Em alguns segundos, eu já estava abraçando-o, com os olhares pasmos dos humanos que o acompanhavam.

Ele reagiu levemente ao meu abraço, com não muito entusiasmo. Separei-me de Lucas e pigarreei.

— Onde diabos você estava? O que aconteceu? Quem são esses? O que você está fazendo aqui? Você sabe o que está acontecendo? Você sabia que o Dylan…

— Sim, Anne. Eu sei tanto disso tudo quanto você, acredite. Também estou atrás de respostas. Eu já não sou o que eu costumava ser.

— Lucas, quem é essa? — perguntou uma menina de cabelos loiros cacheados. Ela parecia carrancuda. Gosto assim.

— Luíza, tudo será explicado muito em breve, confiem em mim. É uma velha amiga minha.

O resto do meu grupo chegou, tão pasmo quanto o de Lucas, exceto Hellen.

— Anne, quem é esse? — Colin perguntou.

— Como assim, quem é esse? Você não lembra dele?

Colin ficou confuso, e todos nos entreolhamos por um momento, sem entender nada do que estava acontecendo.

Então Lucas me lançou um olher frio, severo e penetrante. Ele, por algum motivo, queria que as coisas ficassem como estavam.

— É aquele amigo de infância do qual eu te falei, não lembra?

— Ahn, não…

Forcei uma risada.

— Bem, não culpo você por isso. Eu também não ligo muito para as histórias chatas dos outros.

Hellen não parecia confusa. Ela lembrava porque foi na missão conosco. Mas tampouco negou minha desculpa esfarrapada.

Colin franziu o cenho.

— E como ele sabe do Dylan?

— Bem…

— Nós, desde que Anne saiu de Sacramento, mantemos contato via mensagem de Íris. Como você vê, eu e meus amigos — ele abriu os braços acolhendo todos os outros quatro — somos capazes de ver através da Névoa.

— Essa história está realmente muito mal contada.

Abri a boca para retrucar, mas uma explosão cobriu minhas palavras.

Todos olhamos para a cidade, e um prédio quase tão grande como o Empire State estava soltando fumaça. Alguns segundos depois, blocos de concreto caíram do topo, e pontos pretos que deveriam ser pessoas caíram junto com eles. A estrutura começou a entrar em colapso. O prédio estava desabando. Alguma coisa soltou um rugido tão alto que até nós escutamos, e logo depois se revelou.

Eu mal acreditei no que estava vendo. Era um dragão.

Ele estava escalando o prédio, quebrando janelas e soltando fogo dentro delas, causando mais explosões e mais desabamento.

— Santo Monte Olimpo — um campista exclamou, aterrorizado.

— Os monstros estão atacando o mundo dos humanos? — perguntei a Lucas.

— Eles não são humanos? — outra menina perguntou, dessa vez uma de cabelos castanhos.

— Agora não é hora de perguntas! — Lucas gritou, e todos nos calamos. — Vamos logo antes que não tenha mais ninguém vivo lá.

E corremos em direção ao prédio.

Ψ

Eu sangrava de tantos pontos diferentes que teria que virar uma múmia para poder fazer pressão em todos. Meu pai me avisou que isso poderia vir a acontecer um dia, mas santo Deus, por que hoje? Eu estava a um passo de conseguir minha vaga no III Comando de Exército da Califórnia, o primeiro degrau para atingir meu objetivo de fuzileiro naval.

Tirei um bloco de metal que estava me esmagando de cima de mim, e tateei o chão à procura do pé, mão, ou qualquer parte do corpo de Millena. Por fim, encontrei um parte fofa e macia, para depois perceber que essa parte era protegida por um sutiã.

— Agora não, Jackson — ela disse, arfando. — Não dá para ver que estou quase morrendo?

— Foi sem querer, infelizmente. Algum ferimento muito grave?

— Só meu coração partido. O cara estava a alguns segundos de carimbar o nosso visto, e isso acontece do nada? Onde está ele, afinal?

Lembro que a janela do lado esquerdo da sala explodiu repentinamente, e que eu agarrei Millena pela cintura e me joguei dentro de um armário com ela. Após isso, ouvimos um barulho ensurdecedor e então o teto começou a cair em cima de tudo. De fato, até o teto do armário — feito de metal, por sinal — caiu em cima de nós, o que resultou nesses machucados todos. E um pouco de falta de ar.

A porta do armário era um pouco levantada, o que me permitiu ver a situação do resto do lugar. Deitei no chão e fechei um olho. Com o outro, vi uma cabeça esmagada separada do corpo, também esmagado, seguidos de uma poça de sangue escorrendo até a saída do gabinete do General.

Virei a cabeça para Millena e passei o dedo indicador pelo pescoço. Ela bufou, sabendo que provavelmente teria que esperar outro General ser nomeado para sequer pensar em se inscrever de novo. E só a parte da inscrição dura alguns meses. Quinze, para ser mais específico.

Sorte dela que não precisaríamos de quinze meses para entrar em um exército.

Voltei a olhar pela fresta da porta, até que ficou tudo preto. Pensei ter desmaiado, mas assim que tirei meu rosto do chão, vi a mesma cara emburrada e linda me encarando.

— Por que essa cara de bunda?

— Parando para pensar, se a minha cara for só um pouco parecida com a sua bunda, então eu deveria seguir a carreira de modelo. E tem um bloco de concreto bloqueando a porta do armário. Dos grandes.

— Ideias?

— Esperar os bombeiros e paramédicos?

— Sério? — ela disse, revirando os olhos.

— Tenho cara de Incrível Hulk?

— Só os músculos. Um pouco.

— Receio que não é o suficiente.

— E que tal por cima?

— E o famoso “agora não”?

— Você só pensa nisso, não é, idiota? Estou falando do teto, poderíamos sair por lá.

— Tenho cara de Homem-Aranha?

— Está mais para Venom, porque sua língua, meu Deus…

— “Você só pensa nisso, não é, idiota?” — eu a imitei, rindo depois.

— O prédio desabou nas nossas cabeças e aqui estamos nós, fazendo piadas. Perfeito.

— Mais um dia normal no nosso relacionamento.

Eu me arrastei para frente e pus a mão no pescoço dela, puxando-a para um beijo, mas o barulho de mais janelas quebrando interrompeu nosso momento de melação.

— Você parou para pensar — Millena ponderou, séria — que desabamentos não quebram as janelas primeiro?

— Agora que você mencionou…

E lá estava eu, com o rosto no chão de novo.

— Amor…

— O quê?

— Você acredita em mim se eu disser que tem um dragão na janela?

Ψ

Abri os olhos.

Escuridão completa.

Silêncio.

Solidão.

Fechei os olhos. Uma cena apareceu de repente na minha mente, afastando todos os pensamentos e sensações ruins. Era eu. Eu não reconhecia o rosto, nem o corpo, ou qualquer traço daquele ser, mas minha consciência dizia que era eu. E uma mulher, completamente estranha, diferente de qualquer coisa que eu já tinha visto na minha vida. Mas, novamente, minha consciência dizia que ela era importante para mim. Uma das pessoas mais importantes que já existiram.

Abri os olhos novamente, mas a escuridão continuava lá, inerte.

Onde eu estava?

Fiquei alguns minutos deitado, com todo o corpo doendo, sem pensamento algum chegando à mente, até que meus olhos se adequaram à escuridão, na medida do possível. Eu já podia discernir algumas formas na parte de cima da construção, figuras humanas, imóveis, que pareciam estar congeladas em um passo de dança. À minha esquerda, havia mais figuras daquele tipo, mas já não eram humanas, eram animais, monstruosidades, que traziam à minha mente sentimentos de terror e loucura. À direita, havia muitas figuras humanas, centenas, talvez milhares, e elas pareciam estar travando uma batalha horrível e sangrenta.

Minha cabeça doía como se todos aqueles homens tivessem dado uma marretada nela ao mesmo tempo.

Na minha frente tinha uma porta. Era completamente enfeitada com desenhos na madeira feitos à mão, que eu não pude saber quais eram.

Meu instinto me dizia para levantar, sair pela porta e correr o mais rápido e o mais longe que eu pudesse, mas eu não tinha forças nem para virar a cabeça e saber o que tinha na parte de trás. E, quando eu tentei, senti uma dor horrível no pescoço, como se alguém estivesse o abrindo e vendo a cor da minha carótida. Soltei um grito, o que só piorou a dor, e me forcei a ficar calado.

Depois de algum tempo a dor passou, mas ela trouxe junto consigo uma sensação de medo. Parecia que havia alguém me vigiando, rindo de mim, tirando sarro de como eu estava fraco, ferido e perdido.

Fechei os olhos com força, desejando que tudo aquilo passasse, e passou. Um único pensamento afastou tudo que mal que me acometera, e trouxe paz e harmonia.

Era uma garota. Era linda. Na verdade, era magnífica.

Sua pele era branca, quase pálida, e, mesmo sem poder tocá-la, eu sabia que era macia como a neve.

Então o pensamento foi embora, e eu fiquei cego novamente. Mas dessa vez não pela escuridão, mas pela luz. Alguém tinha aberto a porta, encharcando meus olhos com a luz do sol.

Levou o dobro de tempo para meus olhos se acostumarem com a claridade e pararem de lacrimejar, e mais alguns minutos para que eu pudesse abrir os olhos sem fechá-los dois segundos depois, e então eu vi que tinha uma mulher sentada ao meu lado.

Olhei para cima e para os lados, e vi que as figuras eram estátuas de gesso, mas na forma que eu descrevera, fazendo exatamente o que eu descrevera.

— Eu sei que dói — ela disse, sorrindo para mim. Ela tinha a mesma pele que a garota que eu vira.

Eu assenti, com esforço.

— Meu nome é Mellanie. Eu lhe explicaria tudo, mas você está muito fraco e doente. Você lembra de alguma coisa?

Balancei a cabeça para os lados.

— Você sabe qual é o seu nome?

Balancei a cabeça novamente.

— Beba isso. — ela me ofereceu uma tigela com um líquido transparente, meio esverdeado.

Quando encostei na boca, cuspi imediatamente. Tinha um gosto horrível.

— É, eu sei, mas você viraria pó com só uma colher de ambrosia, então chá de pata de fauno é tudo que nos resta. Você quer que a dor pare, não é? Então tem que beber.

Não entendi, mas respirei um pouco e pus o líquido na boca todo de uma vez, ela segurou minha mandíbula para que eu não cuspisse e eu engoli.

Ela passou a mão nos meus cabelos, como uma mãe.

— Vai ficar tudo bem.

E eu acreditei.

~Ψ~


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