Aquele que Perdeu a Memória escrita por Ri Naldo


Capítulo 13
Mère




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Ficamos olhando um para o outro por um tempo até que a mãe da menina estranha nos expulsou da casa dela, resmungando algo sobre adolescentes e suas paixões.

Lucas tinha enlouquecido. Havia tirado uma adaga da manga e começado a rabiscar o chão de asfalto descontroladamente, desenhando símbolos realmente estranhos dessa vez.

Tentei chamá-lo três vezes, mas ele não pareceu ter escutado, e qualquer um que chegasse perto correria o risco de ser esfaqueado.

— O que esse cara tem, Mae? — perguntou Nal.

— Por que você está perguntando para mim? — rebati.

— O que esse cara tem, Luy? — ele perguntou de novo.

— Vai se ferrar — ela respondeu.

Nal se calou.

Lucas escreveu mais e mais no chão. Escreveu por quase dois metros. Ele gritou quando terminou, encharcado de suor e ajoelhado.

— Lucas… — começou Nal, mas a mão de Lucas se levantou, um sinal claro de que ele deveria calar a boca.

Afinal, os símbolos não eram tão estranhos assim, porque eu já os tinha visto no bunker. Era a “equação” — como ele gostava de chamar —, e, pelo jeito, ela foi acabada, e brilhava em verde no chão de neve.

Ele pediu um pedaço de papel.  Eu abri a mochila e tirei minha agenda de lá, junto com um lápis, e entreguei a ele.

— Aquela menina era rude — ele falou, focado no papel.

— Você a viu?! — exclamou Beatrice. — E a deixou passar?

— Por que eu a impediria?

— Ela sabe onde o Peter está!

— Minha querida, temos assuntos mais importantes para tratar do que o seu namorado no momento.

Beatrice pareceu que iria explodir de raiva.

— É? Tipo o quê?

— Que tal o fim do mundo?

Ele tinha repassado tudo que estava no chão para o papel. Todos ficaram em silêncio, porque o papel brilhou também. As letras gregas viraram números que mudavam a cada segundo. Algumas delas formaram o que eu achava que eram palavras:

M. Árvore.

— Eu lembrei — Lucas disse. — Realmente lembrei.

— De quê? — Nal perguntou. E, novamente, Lucas não respondeu. Já estávamos acostumados.

— Está em movimento. Mas isso não é possível, porque é uma árvore — ele parou para pensar alguns segundos. — A não ser que...

Os números mudavam cada vez mais. Uma adaga com um raio verde começou a flutuar e girar na nossa frente. Nenhum de nós ficou surpreso. Afinal, como eu disse, já estávamos acostumados. Ela parou, apontando para o oeste, em direção ao oceano Pacífico. Então a adaga voltou a flutuar, mas para frente.

— Sigam — Lucas disse.

Nós sabíamos que o único jeito de ter respostas era fazendo o que ele diz, então nós seguimos a lâmina flutuante.

Ψ

Fechei a porta, suspirando.

Sabe o que era mais engraçado nisso tudo? O fato de eu me identificar com ela. Eu já fiquei assim, loucamente apaixonada. Duas vezes. E, nas duas, eu acabei com o coração partido.

Mas, bem, a culpa é toda minha. Eu sabia que era loucura, mas continuei mesmo assim. O calor do momento não me deixou parar.

Agora eu tinha aprendido a minha lição, e a garota só me serviu como lembrete para nunca mais repetir aquelas experiências.

Mas aquele garoto, Peter, tinha algo especial. Eu pude sentir. Bem fraco, bem instável, bem momentâneo, mas eu senti. E, com as coisas que eu já fiz, é muito difícil eu errar quando sinto algo, modéstia à parte.

Agora Francine foi embora. Eu não sei por que a deixei ir. Acho que uma parte de mim sabia que preciso dedicar mais tempo ao Acampamento Júpiter e ao que está nele. A chave para tudo. Uma parte de mim sabia que eu precisava focar na mulher do vestido dourado — para não chamá-la por aquele nome nojento.

Mas a parte de mim que era a mãe dela não a queria longe.

De repente, para me tirar dos devaneios, um círculo se abriu no ar à minha frente, uma mensagem de Íris. Era Adam, e ele parecia cansado, como sempre.

— Ele acordou, Melanie.

Ψ

OHIO, 15H, TREM 157

Era o que dizia na minha passagem, e no grande letreiro no trem 157, logo à minha frente.

“Ah, Peter, você é burro? Por que não vai de avião?”. Porque Lucas deu instruções claras e concisas de que não deveríamos de jeito nenhum viajar de avião durante essa… guerra. E eu não quero morrer, você quer?

Última chamada para o trem 157, com destino a Ohio. Senhores passageiros, por favor, acomodem-se em seus lugares de escolha, o trem partirá em dois minutos.

Segui as ordens e entrei no trem, mas alguém de fora me chamou de volta.

— Parece que alguém não vive sem mim — falei.

— Claro, como se eu não tivesse te usado só por diversão.

— O que aconteceu?

— Sua namoradinha apareceu lá em casa — ela falou, revirando os olhos.

Congelei. Como Beatrice descobrira onde eu estava? Ela foi atrás de mim? Então ela não estava morrendo de raiva sem querer falar comigo?

— Se está pensando em desistir da viagem para ir atrás dela, você vai com um olho roxo.

— Não, eu tenho que ver meus pais. Mas não esperava por isso… E por que você liga se eu vou viajar ou não?

— Não ligo. Quer dizer, não ligaria, se eu não tivesse gastado meu dinheiro.

Ela levantou a passagem e a mochila para que eu pudesse ver.

— Você vai comigo?

— Não, cara, eu vou para o Texas ver meu tio morrendo de lepra. Me poupe.

O trem soltou fumaça, e a atendente anunciou que as portas seriam fechadas. Francine passou por mim, batendo no meu ombro, e procurou um lugar lá dentro. Ela tinha deixado tudo para ir à uma “aventura” comigo? Que menina inconsequente.

Entrei no trem no exato momento em que as rodas começaram a girar.

Ψ

Quando cheguei ao convés do navio, a primeira vontade que eu tive foi de voltar e me esconder debaixo da minha cama.

Era sim algo grande.

O tamanho do monstro era duas vezes o comprimento do navio. Ele era uma mistura de peixe-boi e serpente marinha. Tinha patas do tamanho do meu quarto com garras que poderiam servir como pilares para o Partenon; corpo azul musculoso e úmido, como a pele de um sapo; crista e crina laranjas; não tinha patas traseiras, o corpo se estendia do meio para baixo como uma cobra do diâmetro de um tubo nuclear, e terminava em uma cauda laranja; a boca chegava a ser maior que o rosto, com três filas de dentes pontiagudos em cada arcada; os olhos eram azuis como o mar, porém marcados com uma fúria muito perceptível.

Quase toda a tripulação do navio estava no lado de fora, tentando nos defender do monstro. Alguns atiravam lanças contra a criatura, mas só algumas cravavam, e a maioria delas se partia e caía no mar. Os filhos de Hécate recitavam magias para criar uma proteção para o navio, mas ela segurava os golpes por pouco.

Os gritos dos semideuses e as batidas das patas do monstro eram tão frequentes que eu não escutei de primeira Colin falando ao meu lado.

— Cetus — ele disse.

— Cetro de quem? — perguntei.

— Cetus, Anne. É o nome dele.

— Então vocês já se conheciam. Por que não me apresentou? Que falta de educação.

— Não é a melhor hora para piadas.

— Então diga logo, como ele foi derrotado há alguns milhares de anos atrás?

— Perseu usou a cabeça da Medusa para transformá-lo em pedra. Você tem ela aí no bolso?

— Não, mas eu acho que posso fazer uma com a minha mão.

— Isso é possível?

— Não sei.

— Nem tente.

— Então como diabos a gente vai derrubar aquela coisa? Ele não parece ser incomodado pelas lanças.

— O corpo dele é forte. É como se você estivesse tentando jogar dardos em uma parede.

— É? Pois eu sei um lugar que não é forte. Saia daqui, vá ficar com a Julieta, tente manter o navio sob controle. Se acontecer algo, nem Percy vai fazer o mar nos segurar.

Ele assentiu e voltou correndo para dentro.

— É melhor você se preparar — falei, para a minha mão.

Corri até a borda e imaginei que a minha mão era uma lança. Então, quando eu projetei meu braço para frente, uma haste de madeira com ponta de ferro foi arremessada, mas ela só bateu no nariz duro do Cetus e quebrou. Antes de cair no mar, ela sumiu, e a minha mão reapareceu no lugar de origem. Repeti o movimento, e depois de algumas tentativas, consegui atingir o meu alvo.

A lança ficou cravada no olho do monstro, e isso o deixou com muita raiva.

— Ih, merda — xinguei.

O monstro soltou um rugido tão feroz que o ar proveniente da boca dele arrastou todos para o outro lado do convés. Com a proteção acabada, o próximo golpe dele acertou em cheio o navio, fazendo todos caírem no chão. E a julgar pelo barulho de madeira quebrando, não tinha sido nada bom.

Alguém tinha caído em cima de mim, e eu fiquei com raiva só por ele estar ali.

Ψ

— O que você está fazendo aqui, Mason? Volte para o dormitório, fique em segurança!

Eu sabia que era Anne falando, e sabia que ela estava com raiva, e eu queria discutir as dezenas de motivos para eu estar no lado de fora, mas as palavras passaram voando pelos meus ouvidos, como um sonho distante.

Estava tudo em preto e branco. Eu não saberia dizer qual era a cor da camisa de Anne se eu não tivesse visto antes. Eu não saberia dizer se o mar era feito de água ou de café puro.

Os gritos também estavam distantes. Aliás, tudo estava distante. Era como se eu simplesmente tivesse me desligado do mundo ao meu redor.

Mas uma coisa não soava distante. Uma batida. Era algo constante e ritmado, como um coração batendo.

Então eu olhei para o monstro, e vi que, apesar da minha visão em preto e branco, uma parte dele continuou colorida, com um brilho dourado. Ficava logo abaixo do pescoço, onde provavelmente ficaria o coração. Eu sentia em minhas mãos algo mole e flácido.

Não entendi. Eu podia escutar o coração dele batendo, a podia sentir a pele dele nas minhas mãos. Era como se eu estivesse lá.

Então ele levantou a cauda enorme. O monstro iria atacar com tudo dessa vez, e provavelmente o navio seria partido ao meio.

Eu não pensei, só agi.

Levantei, peguei uma lança que estava no chão e corri em direção à borda onde estávamos antes, do lado onde o Cetus estava.

— Mason, não! — Anne gritava para mim.

— Mason, isso é loucura! — eu gritava para mim mesmo, mas meu corpo simplesmente não queria parar.

Com a velocidade que eu tinha conseguido, me atirei para fora do navio e ergui a lança, morando no ponto dourado no peito do monstro. As pessoas atrás de mim gritavam, eu tinha certeza, mas tudo que eu conseguia ouvir eram os batimentos do coração dele, mais altos à medida que eu me aproximava da pele oleosa e áspera, até que a flecha se cravou no peito dele, e eu fiquei suspenso no ar, segurando a haste com toda a força.

O monstro soltou outro rugido ensurdecedor e desabou, me jogando na água com ele. Eu tentava nadar de volta à superfície, mas o cadáver me empurrava cada vez mais para o fundo. Já não aguentava mais segurar a respiração. Só precisava parar de lutar…

Eventualmente, o corpo morto virou poeira, e meu corpo começou a flutuar de volta, mas eu não sabia se iria dar tempo, porque tudo ficou preto, e eu parei de lutar.

Ψ

— Mason, seu idiota, vamos… — eu falei baixo, esperando na borda, assim como mundo, para ver se ele voltaria à superfície. Já estava perdendo as esperanças quando a cabeleira ruiva se destacou no azul da água.

— Graças aos deuses.

Todos pareciam que iriam morrer de alívio. Mas ele não estava consciente, e provavelmente não estava respirando.

— Alguém vá buscá-lo antes que morra, se já não estiver morto — gritei.

— Anne — Mirina chamou. — O golpe do Cetus quebrou a hélice e o casco do navio. Se não chegarmos à costa, afundaremos em uma hora, talvez menos.

— Droga. Pelo menos já estamos na costa oeste. Certo, eu vou falar com o Colin. Garanta que todo mundo volte aos dormitórios, e peça para o Percy fazer o que puder. Chegou a hora de irmos à terra firme.

Ψ

A adaga estava parada agora, mas ainda apontava para o mar.

Lucas sentou-se na areia, e nós sentamos ao lado dele, esperando uma coisa que não sabíamos o que era, e nem se iria chegar, escutando o barulho das ondas e das gaivotas.

Até que, no horizonte, um navio apareceu.

Lucas levantou-se e chamou um senhor de idade que estava caminhando no calçadão.

— Senhor, o que tem ali no horizonte? — ele perguntou.

— Água? — o velho respondeu, confuso.

— Mais nada? — Lucas insistiu.

— Você está bem? — o homem se afastou, olhando estranho para nós.

Lucas voltou com um sorriso gigante no rosto.

— E agora, meus amigos, as coisas ficam interessantes.

~Ψ~


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