Ceci Iara escrita por ZodiacAne


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Espero que gostem! =D



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Ano 2015, crise hídrica no Sudeste, desmatamento na Amazônia, poluição, cheia dos rios e caçadores. Essas coisas colocaram os seres mitológicos brasileiros em perigo, a única coisa que os restou fazer foi fugir e passar a viver escondido entre a população brasileira nas cidades.

Iara, sereia das águas, usa as suas pernas permanentemente para não levantar suspeitas. Além de ser “humana”, ela também adotou dois meninos travessos. Um ruivo, de pele branca. O outro negro, com uma perna só. Curupira e Saci, respectivamente.

Saci usa muletas e não fuma para evitar suspeitas. Curupira pediu a Jaci, deusa da Lua e protetora, que seus pés ficassem no lugar “certo”.

A sereia sem cauda, o saci sem cachimbo e o Curupira sem pés virados. O que havia de errado? Por que eles não podiam mais viver como viveram por anos? Outras coisas os obrigaram a se esconder... Durante o dia pelo menos.

Os meninos agora são parceiros de travessuras. Iara procura algum lugar onde ela possa vestir sua cauda de novo e nadar um pouco. E cantar também.

Esta é a terceira vez que eles se mudam. E pelo mesmo motivo: Foram descobertos!

E em todas essas vezes foi porque viram Iara nadando e descobriram sua cauda. Ou então, se encantavam por sua voz. Porque ela era capaz de atrair as pessoas, era isso que ela fazia.

Os meninos, por terem aparência humana e infante, passavam ainda mais despercebidos. Pareciam apenas crianças fazendo coisas de criança.

Seus únicos pertences eram apenas algumas poucas roupas e objetos de uso pessoal. Eles não tinham muito tempo para empacotar e embrulhar móveis. Eles viviam em fuga.

Mais uma cidade nova, mais um ambiente novo e a terceira troca de escola para Saci e Curupira, que passaram a usar os nomes de Mariano e Floriano, seguindo recomendação da Deusa protetora. Iara manteve seu nome.

***

Uma longa viagem de ônibus, para o interior do Rio de Janeiro, na região dos lagos. E a sereia não conseguia parar de pensar nos problemas que causará e nos problemas que todos os outros enfrentavam. E ela não deixava de se culpar pelos três estarem se mudando de novo.

Rapidamente eles arrumaram uma quitinete mobiliada. Os meninos foram matriculados na escola pública mais próxima e Iara arrumou um trabalho como garçonete em um quiosque na praia.

Algumas semanas passaram e eles se adaptaram bem ao lugar.

Iara voltou de mais um dia de trabalho e chegou exausta, depois do anoitecer. Abriu a porta, tirou os sapatos e se jogou no sofá.

–Chegou, Ceci. - disse Curupira

–Como foi no trabalho? - indagou o Saci

–Foi bem. O mesmo dos outros dias. Anota pedido, leva pedido, recebe gorjeta, coisas assim. - suspirou

–A gente podia te ajudar no trabalho depois da escola. - Floriano tentou animá-la

–O meu chefe não deixaria. E eu sei que vocês aprontariam algo. E também tem que... Vocês não merecem isso. Trabalhar não é algo muito legal, acreditem em mim. - se levantou – Eu só preciso nadar um pouco, ou, pelo menos, sentir a água nos meus pés.

A casa era próxima a praia. A sereia saiu e se sentou na areia, contentando-se em apenas sentir a brisa e cheiros vindos do mar. Ela tentava controlar o impulso de mergulhar e nadar o mais fundo e rápido que pudesse, mesmo que fosse na água salgada. Era água e ela gostava. Tinha aprendido em pouco tempo a aproveitar o que tinha. Porém, ela sabia que suas vontades levaram ela e os meninos para três lugares diferentes em menos de um ano. Nenhum humano ou criatura mitológica aguenta viver assim.

Fechou os olhos fortemente e respirou o mais fundo que pode, falando consigo mesma em seguida:

–Iara, não vai. Sei que quer, mas não pode fazer isso. Por seu bem, pelo bem do Mariano e do Floriano, seus filhos. - abriu os olhos e viu que não havia ninguém perto – Pelo menos, você pode cantar.

E ela começou uma canção na língua Tupi-guarani, a mesma língua usada pelas sereias. Uma canção que aprendera ainda bem jovem e que por anos usara para atrair os homens do mar.

E ao cantá-la, se lembrou da época que vivia nas águas dos rios, com suas irmãs sereias. Lágrimas escorreram de seus olhos, por saudades de seu passado e de suas irmãs. Maioria delas já estava morta, pelas mãos dos humanos.

E sem que percebesse, uma voz masculina falou atrás dela.

–Boa noite, senhorita.

–Ah? - virou-se – Boa noite!

–O que você faz aqui sozinha e essa hora da noite? - e depressa ela tentou secar o rosto – Ei, você está chorando?

–Não é nada! - falou escondendo-se – Eu só quero ficar sozinha. Por favor!

–Ah, não. Não vou deixar uma moça tão bonita assim desse jeito.

–Obrigada, mas não precisa. - falou com a voz meio abafada pelos joelhos

–Eu quero te ajudar. Sério! Não gosto de ver as pessoas mal assim. - sentou-se ao lado dela – Por que chora? Pode falar. Eu não vou te julgar e nem nada disso. Dá para ver que você só precisa desabafar!

–Saudades de casa e da família. Eu sempre me pego pensando no tempo em que estive junto deles e sinto falta disso.

–Acho que eu te entendo. Eu perdi meus pais na adolescência e passei a morar com meus tios desde então. Eu sinto falta deles até hoje.

Iara sabia que ele só havia se aproximado dela por causa da canção, porque a sua voz de sereia ecoava fora de seu controle. Mesmo assim, ela sentiu que ele era simpático. Saiu da prisão entre suas pernas e sorriu para ele. Ele enxugou uma lágrima na face dela e se apresentou:

–Alias, meu nome é Estevão.

–Eu sou Iara. É um prazer!

–Você não é daqui né?

–Não. Mudei-me tem pouco tempo.

–Isso explica porque nunca te vi. Eu vivo aqui desde que nasci.

–Já o lugar onde nasci é bem distante daqui.

–E onde é?

–Região norte. Amazonas.

–Isso explica seus cabelos bem escuros.

–E isso explica seu sotaque. - completou Iara rindo

–Parece que consegui te animar.

–Sim. E obrigada, Estevão. Acho que é hora de eu ir para casa.

–Claro. Quer que eu te acompanhe?

–Não precisa. É bem perto daqui!

–Tudo bem. Eu te verei de novo?

–Sim. Essa cidade é minúscula.

–Tem razão. Até mais, Iara.

Ela despediu-se dele e retornou a casa. Espera não ver Estevão de novo. Não que fosse proibida a relação com humanos, mas ela preferia se manter longe e sem intimidade, porque assim não se colocava em risco.

***

No dia seguinte, os meninos foram a escola e Iara foi para um dia de trabalho. Ser garçonete não era fácil, mas já tinha se acostumado com profissões mais agitadas assim. Era o horário do fim da tarde e o quiosque estava cheio porque a praia também estava.

E ela foi atender mais uma mesa, onde estava um homem de bermuda e óculos escuros.

–O que vai querer, senhor?

–Iara!

–Oi, Estevão!

–Você trabalha aqui então?

–Sim. Então, qual seu pedido?

–Quero uma água de coco e iscas de peixe. Por favor!

–Claro! - falou anotando

O pensamento que veio a cabeça de Iara foi: De novo não. Alguns minutos depois, a comida dele chegara. Ele ficou lá sentado até o pôr do sol, observando Iara trabalhar para lá e para cá, servindo as mesas.

O expediente acabou e Mariano e Floriano a esperavam em frente ao quiosque. De vez em quando, ele iam buscá-la para voltarem juntos. E os três saíram. E sempre conversavam e riam bastante quando estavam juntos. Próximo a casa onde moravam, as ruas estavam vazias e os meninos queriam correr um pouco.

–Nós podemos ir, Ceci? - indagou Saci

–Podem. Mas sem nenhuma travessura, apenas correr em.

–Sim, senhora. - respondeu, dando as muletas a ela

–Então, “Floriano”, quer apostar corrida?

–Você sabe que vai ganhar de mim. - riu – Mas só quero correr, então vamos. Dê a largada, Ceci.

–Um, dois, três e... Vão! Vão! Vão!

E com uma lufada de vento, que agitou os cabelos de Iara, os garotos sumiram de vista. Era um dos poucos momentos em que ela conseguia rir. Os garotos lhe davam alguns momentos simples e bobos, mas de uma alegria muito pura.

Uma voz masculina chamou Iara. Era Estevão!

–Só não me diga que me seguiu até aqui.

–Não! Eu moro por aqui mesmo. E aqueles meninos que saíram com você, quem são?

–São meus filhos: Mariano e Floriano. Adotados, é claro!

–E onde eles foram? E onde o com uma perna só foi sem essas muletas?

–Ele pulou na corcunda de Floriano e saíram correndo. Crianças... Sabe como são!

–Sim! - coçou a cabeça – Eu posso te acompanhar até sua casa hoje?

–Pode, Estevão! Vamos!

Foi uma caminhada curta onde o homem contou brevemente a sua história e Iara criou uma história para contar a ele também. Os meninos estavam sentados no portão da casa esperando.

–Agradeço a companhia, Estevão. - sorriu – E estes são o Mariano e o Floriano.

–Olá, Senhor! - falaram ambos apertando cada um uma das mãos dele ao mesmo tempo

–Mariano, suas muletas. Vão para dentro, logo entrarei também.

Eles obedeceram e não deixaram de ficar curiosos para saber quem era ele com mais detalhes.

–Eles parecem ser crianças bem... Brincalhonas. - riu

–Acredite. São mesmo!

–Eu posso te ver de novo, Iara?

–Por que pergunta isso? Você mal me conhece e não vai querer isso. Eu sou tão sem graça.

–Discordo! Você tem algo no seu olhar, não sei explicar. - passou a mão no cabelo - Bem, você quer sair comigo qualquer dia desses?

–Por mim, tudo bem. O problema é conciliar com o meu trabalho.

–Isso é mais fácil do que imagina. Eu já sei onde te encontrar, podemos combinar isso depois.

Despediram-se. Iara não deixou de sentir um medo inconsciente de poder ser descoberta de novo. Mas os seus encantos de sereia chamaram atenção de alguém mais rápido do que ela pudesse controlar. Ela entrou pela porta da sala e os garotos já vieram logo questioná-la.

–Quem é ele, Ceci? - Floriano começou

–Eu o conheci na praia ontem.

–O que fez para que ele ficasse assim atrás de você? Ele nos seguiu se não sabe. - Mariano completou

–Os meus encantos de sereia, é claro. Ele me ouviu cantando na praia e falou comigo. Nosso encontro de hoje foi mais coincidência.

–Será que teremos que ir embora outra vez?

–Não, Floriano. Eu vou fazer de tudo para evitar que isso aconteça. Ele não sabe nada sobre mim.

–Tome cuidado, Ceci. - Saci recomendou

–Sim. Tomarei! Agora, preparei o nosso jantar.

Comeram e depois foram dormir. O dia seguinte era a folga semanal de Iara, então ela foi com os meninos à praia. Sentou-se na areia e ficou olhando os dois brincando como crianças normais. Pulando na água e fazendo castelos de areia. Ela estava distraída, quando alguém sentou-se ao lado dela.

–Bom dia, Estevão.

–Bom dia, Iara. Não era para estar no quiosque essa hora?

–É minha folga hoje. Todos nós merecemos uma.

Ele riu.

–Não vai na água?

–Bem que eu queria, mas não sou a maior fã de água salgada. Prefiro bem mais um rio.

–Ia fazer piada com o nome do estado, mas tem um rio perto daqui. Dá para nadar nele. Não quer ir lá?

–Agradeço o convite, mas eu tenho que cuidar dos meninos, Estevão.

–Eles já são bem grandinhos, podem passar algumas horas sozinhos. Podemos ir após o almoço.

Iara fez uma careta. Ela queria recusar o convite, mas sua vontade de água doce era maior.

–Vamos! - insistiu ele – É sua folga.

–Tá bem! Você me convenceu.

–Eu te busco mais tarde na sua casa.

–Que tal você almoçar lá comigo e os garotos?

–Sua ideia também é boa. Aceito!

Eles continuaram sentados e conversando. Estevão contou o que fazia da vida. Ele era dono de alguns barcos que faziam passeios com turistas pela região. E falou de todas as maravilhas naturais daquela região para Iara.

–E tem as ilhas particulares. Só pessoas muito ricas tem dinheiro para comprar uma.

–Bem que eu poderia ter uma ilha para mim. - Iara soltou – A primeira coisa que faria todas as manhãs seria dar um bom mergulho.

–Você gosta mesmo de água em?

–A água é onde meu espírito. Eu sou de lá.

–O que quer dizer com isso?

–O quê? - ela caiu em si – Não é nada. Só gosto muito de nadar mesmo. Só isso!

Ele acabou caindo nessa desculpa. Iara respirou aliviada. Tinha dado um outro mole, mas conseguiu consertar.

Algumas horas depois, os quatro foram retornaram à casa e comeram. Estevão adorou o almoço.

–Meninos, eu vou sair com o Estevão. Volto antes de escurecer. Se comportem.

–Tome cuidado, Ceci.

–Pode deixar, Mariano. - piscou para ele

Foi quase uma hora de caminhada até o rio. Os olhos de Iara brilharam ao ver aquela aqui tá límpida descendo a colina. Enquanto Estevão arrumava a toalha para o piquenique deles, Iara tirou os sapatos e sentou na margem do rio com os pés na água. A sensação da água doce era diferente. Ela sentiu mais forte, talvez até com suas energias revigoradas. Só faltava dar um bom de um mergulho, com a cauda. Só que ela não podia fazer isso na frente de Estevão. Mas não era nada que ela não pudesse dar um jeito.

–Você não vem comer, Iara?

–Agora que falou: Sim.

Ela fizera uns sanduíches e também pegou umas frutas para fazerem o piquenique. Depois de comerem e ficarem sem nenhum assunto, pois conversaram o caminho inteiro, Iara começou a cantar baixinho uma canção para adormecer Estevão. O rapaz sentiu seus olhos ficarem mais pesados até que as pálpebras se fechassem de vez. Deitou-o no chão.

–Desculpe por isso, Estevão. Mas eu preciso de privacidade.

Ela tirou as roupas e pulou na água. Aproveitou alguns minutos na correnteza, até que voltou, colocou suas pernas humanas de volta. Usou seus poderes para se secar, vestiu-se e acordou Estevão.

–Ei, dorminhoco. Acorde!

Ele resmungou antes de despertar.

–Eu dormi?

–Sim. Como um anjinho.

–Desculpe!

–Não precisa pedir desculpas. Aproveitei para molhar mais os meus pés enquanto dormia.

–Parece que eu apaguei do nada. Eu não estava com sono, fiquei de repente.

–Não se esqueça que não tirou o cochilo pós-almoço. Quando paramos o sono deve ter vindo.

–É! Faz sentido. - olhou o céu – Parece que já escurecer. Melhor irmos!

Recolheram as coisas. Eles começaram a descer a colina. Ele vinha na frente, guiando. Iara acabou tropeçando e para salvá-la da queda, Estevão a segurou nos braços. E após uma troca de olhares, aconteceu o beijo. Mais pela vontade dele do que da sereia.

Quando se desvencilharam, Iara acabou ficando perplexa. Ela não esperava que isso acontecesse. Não deveria acontecer.

–Iara? - ele indagou – Tudo bem?

–Tá! Só...

–Não gostou? - fez careta

Ela ficou muda, sem saber o que responder. Estevão encarou aquilo como um sim. Eles seguiram o resto do caminho em silêncio mortal. Eles finalmente chegaram à porta da casa de Iara e o rapaz se despediu dela:

–Agradeço o passeio, Iara. E não precisa se preocupar que eu não te procurarei mais.

Iara apenas assentiu, dizendo também desculpas. Ela não havia feito aquilo por mal, mas era o melhor para ela e para os meninos.

Ficou observando Estevão se afastar, permitindo que uma lágrima solitária viesse.

***

Os dias seguintes se arrastaram. Eles nem tinham mais se cruzado desde então.

Até que em mais um final de tarde, Iara saiu do trabalho e voltava para casa. Para distrair-se decidiu cantarolar algo.

Uns minutos depois, ela sentiu um toque em seu ombro. Ao se virar, viu que era Estevão, que olhou para ela e a única reação que teve foi beijá-la. Ele já pressentiu que tomaria outro fora igual aquele dia, talvez até um tapa, e teria que se desculpar, mas não conteve o impulso que a voz de Iara lhe deu, de novo. No fim, ela sorriu para ele, dizendo:

–Desculpe ter ficado assustada naquele dia. Eu fiquei sem reação.

Colocou uma mecha de cabelo dela atrás da orelha antes de encontrar com seus lábios outra vez.

–Posso te acompanhar até em casa? - indagou depois

–Pode!

Continuaram a caminhada de mãos dadas e conversando normalmente, o acontecido ficara para trás. Estevão perguntou antes da despedida:

–Podemos sair amanhã?

–Eu trabalho, mas no dia seguinte é minha folga.

–Isso me deu uma ideia. Saímos depois que seu expediente acabar. Um jantar, que tal?

–Acho ótimo!

–Até lá então.

Mais um beijo foi a despedida. Os meninos a viram muito feliz e sorridente e perguntaram em uníssono assim que ela entrou:

–Por que feliz, Ceci?

–Encontrei com o Estevão, só isso.

–Fizeram as pazes? - indagou Floriano

–Não tínhamos brigado, não como normalmente é.

–Que bom que voltaram. Mas será que isso não é problema para nossos disfarces? - Saci questionou

–Eu estou sendo muito cuidadosa quanto a isso. - ela mudou para uma expressão mais triste – Espero que isso não seja o meu desejo de sereia.

–O que quer dizer?

–Ele foi atraído pela minha voz e uma sereia se sente atraída por qualquer “homem do mar”.

–Como faz para descobrir se é ou não? - disse Curupira curioso – Você nunca contou pra gente.

–Eu teria que dormir com ele... - eles arregalaram os olhos – Sim, nesse sentido que estão pensando. Mas ai que me vem outro medo.

–Qual?

–De matá-lo. Sereias fazem isso.

–Por isso não queria se aproximar dele. Não era só pela gente. - comentou Mariano

–Eu já matei tantos homens junto com minhas irmãs, e me arrependo disso agora. Tenho medo de não conseguir controlar essa natureza.

–Você consegue, Ceci. Você quer mudar, isso já é muita coisa. - completou Floriano

–Não fica pensando nisso. Só deixa acontecer! - Saci sorriu

–Realmente tem horas que vocês não sabem se comportar como crianças. - ela riu – Mas obrigada!

***

Como combinado, eles se encontraram após o expediente de Iara. E foram a um restaurante ali perto, onde também havia um karaokê. Desfrutaram da comida e conversaram e riram bastante. Até que ele insistiu que Iara fosse cantar na frente de todo o restaurante.

–Vai, Iara, você canta bem. Eu te ouvi cantar já.

–Eu não canto bem nada, Estevão. Isso é coisa da sua cabeça.

–Não minta. Vá logo lá!

Eles estavam discutindo em um tom alto e todos ao redor ouviram e então, todo o restaurante incentivou Iara a ir cantar. Ela não tinha opção a não ser ir a frente, no pequeno palco e pegar o microfone. A música escolhi foi Bem que se quis, que Iara conhecia porque ouvira tocar em alguns rádios enquanto nadava nos rios amazônicos.

Assim que ela cantou as primeiras palavras da música, os seus poderes de sereia agiram sob todo o restaurante. Houve um silêncio e até os cozinheiros e garçons pararam para observá-la cantar. Porém, ela se concentrava para que ninguém viesse até ela, a canção manteve todos parados. Ou quase todos. Perto do final, Estevão se levantou e foi em direção a ela. No momento em que a música acabou, ele a beijou, sendo levado por mais um impulso que a sereia lhe dera. O silêncio quebrou-se com os aplausos de todos, alguns chegaram a fazê-lo de pé.

–Vamos embora, Iara. - ele disse

–Para onde?

–Não sei! Qualquer lugar onde possamos ficar sozinhos.

Pagaram a conta e entraram no carro de Estevão para voltarem. Iara sabia bem como aquela noite acabaria. O pouco que sabia sobre humanos já era o suficiente para perceber isso. Usou o celular para mandar uma mensagem aos garotos dizendo que só voltaria para casa no dia seguinte e que eles lhe desejassem boa sorte.

Os dois estavam consumidos de desejo um pelo outro e acabou acontecendo o que a Iara mais temia. Ela passou a noite junto dele. Adormeceram depois.

O Sol alcançou os olhos de Iara e ela despertou. A primeira visão que teve foi de Estevão deitado de bruços na cama. Foi ai que ela foi tomada pelo pior instinto da sua espécie: matar o parceiro depois do acasalamento.

Os olhos dela ficaram profundos e sem vida, as garras começaram a tomar lugar das unhas delicadas e se aproximavam do pescoço do rapaz. Só que ele se mexeu, resmungando algo. Então, Iara assumiu o controle de novo, porque ela pensou bem no que dissera aos meninos.

Sua aparência retornou e ela respirou fundo. Estevão acordou em seguida e nem soube do que houve.

***

Os dias foram passaram, Iara e Estevão se encontravam todos os dias. Passeavam sempre que dava. Ele até levara ela e os meninos para dar um volta em um de seus barcos.

E cada vez mais eles ficavam próximos e se apaixonavam mais. Maioria das noites passavam juntos e sempre, Iara tinha que se conter para não matar Estevão.

Os dias viraram meses e os dois estavam namorando oficialmente. Iara estava tentando deixar o seu passado sombrio para trás e se redimir ficando com um humano.

Só que em uma manhã, ela passou mal. E na seguinte também. Na outra também. Não conseguia comer direito, ficava sonolenta durante o trabalho, entre outros sintomas.

Iara nunca tinha se sentido assim, mas sabia muito bem que tipo de sintomas eram esses que sentia. Nunca noite, os meninos foram conversar com ela:

–Ceci, você está realmente bem? - perguntou o ruivo

–Sim, Floriano. Só um pouco cansada, só isso.

–Tem certeza? - indagou o das muletas

–Tenho sim. Eu vou nadar um pouco e logo fico melhor. Tem dias que não vou a água. Deve ser isso.

–E o Estevão?

–Tem uns dias que não o vejo, ele mesmo teve que assumir algumas das excursões de barco essa semana.

–Deveria fala com ele sobre isso. - recomendaram os dois

–Não quero colocar mais preocupações na cabeça dele. Eu vou lá no mar. Logo volto!

Iara sabia bem o que se passava com ela. Viu mulheres e suas irmãs ficarem assim. E ao se ver nessa situação, ainda mais namorando um humano, ela decidiu ir ao mar pedir conselhos de duas que conhecia: Iemanjá e Jaci, deusas do mar e da lua, respectivamente.

Caramuru, o dragão do mar, parecia revoltado naquela noite, o mar estava com uma tremenda ressaca. Contudo, aquilo não era problema para a sereia, que tirou suas roupas, vestiu sua cauda e nadou até uma pedra. Sentou-se lá e chamou as duas com quem queria conversar.

Ambas vieram imediatamente, uma dos céus e outra do mar, com cabelos escuros, uma com vestes azuis e pele clara e a outra morena, usando algumas pinturas indígenas avermelhadas no corpo.

Elas conversaram com Iara e a aconselharam. Despediram-se e nadava de volta a praia. Próxima a margem, ela viu que Estevão encontrara suas roupas na areia e também a vira. Imediatamente, mergulhou atrás dela. O rapaz era rápido e alcançou-a logo. Nervosa, ela esqueceu de tirar a cauda.

–Iara, você é louca? - ele brigou – Por que veio nadar sozinha nessa ressaca? O mar está muito agitado e perigoso.

Ela nem teve tempo de responder, um outro sintoma a atingiu e ela teve um desmaio. Só restou a Estevão pegá-la e levá-la a área seca. Ele sentiu algo estranho enquanto a levava e teve sua resposta assim que alcançou as areias. Ele viu a cauda de Iara, com todas as escamas e ficou sem reação. E foi exatamente neste momento que a sereia voltou a si. Viu Estevão impaciente e depois a sua cauda.

–Iara! O que significa isso? - abaixou-se perto dela – Você é uma sereia?!

–Sou!

–Eu... Eu não sei o que dizer. Como pode mentir para mim? E por tanto tempo? Achei que o seu nome ser esse era só coincidência, mas você é a sereia das lendas que ouvi e que matou tantos homens. Iara...

–Estevão, eu não faço mais isso. Eu tive que sair da minha casa. Eu perdi muitas irmãs pelas mãos dos homens, era o mínimo que eu merecia. Perdoe-me por esconder isso de você, mas era necessário.

–Não quero discutir com você agora. Eu tô com a cabeça quente. Fico três dias sem te ver, vou a sua casa depois de um dia cansativo, os garotos disseram que estava aqui, corri preocupado e descubro isso.

–Eu posso explicar!

–Não quero ouvir agora. Acho melhor conversarmos sobre amanhã. Preciso absorver isso tudo. Só vou te levar em casa.

Iara trocou a cauda por pernas, vestiu-se e Estevão a deixou em casa. Ela entrou chorando e os meninos ficaram preocupados com ela. Ela nem pensou duas vezes, pegou a mala embaixo da cama e começou a colocar seus pertences dentro.

–Ceci, o que está fazendo?

–Arrumando as malas. Partimos de manhã! Façam a de vocês também.

–Por que?! - gritou Saci – O que aconteceu?

–Briguei com Estevão. Ele descobriu tudo. - sentou-se na cama – Eu fiz tudo errado de novo, meninos. Desculpa!

Eles apenas a abraçaram.

Na manhã seguinte, Iara entregou a chave da casa a dona, que foi complacente e abonou o mês de aluguel. Iara também pediu a dona que entregasse uma carta que escreveu a Estevão. Assim, os três entraram no primeiro ônibus que conseguiram.

Estevão foi atrás de Iara, mas ela não estava. Apenas encontrou a proprietária, que lhe entregou a carta. Ele foi para casa, para ler com mais calma. Ela dizia o seguinte:

Querido Estevão,

Primeiro preciso te pedir desculpas, por tudo o que eu não te contei sobre mim.

Realmente sou a Iara das lendas e sim, por muitos anos eu cantei para encantar marinheiros e matá-los em seguida. Agora que eu vejo o quanto isso é errado.

Com as crises em diversos lugares do país, incluindo a floresta amazônica, tive que abandonar meu lar. No começo fugia com algumas irmãs, mas elas foram sendo descobertas e mortas, uma a uma. Até que eu fiquei sozinha. Um dia, encontrei duas crianças mitológicas precisando de ajuda, porque também estavam em fuga. São Mariano e Floriano que você conhece, que são, na verdade, Saci e Curupira. E seguimos os três em fuga, sendo protegidos por Jaci, a Deusa deles.

Sem minhas irmãs, acabei ficando muito triste. Os meninos me trouxeram de volta um pouco da alegria que tinha com elas.

A sua cidade é o terceiro lugar para onde fomos neste ano, porque eu sempre vacilava e era descoberta. Eu sinceramente, não esperava te conhecer naquela noite. Tentava controlar um impulso de ir nadar, queria evitar problemas pros meninos de novo. Mas acabei me envolvendo com você, uma pessoa tão incrível e tão atenciosa. Você trouxe de volta o resto de alegria que me faltava e eu gostava disso. Mas eu tenho medo, muito medo ainda dentro de mim. Porque eu sou um ser diferente. Realmente fiquei receosa de te contar, porém acabou descobrindo da pior forma possível. Perdoe-me por isso! E por tudo!

Estou fugindo de novo, por medo do que poderia acontecer. Não faço ideia do que pensou sobre o que houve ontem a noite e nem tive coragem suficiente de saber.

Por muitas vezes, controlei os meus instintos e não te matei depois de nossas noites juntos. Mesmo que minha vontade fosse cortar sua garganta, algo dentro de mim dizia que não. Porque algo em mim te considera talvez o homem mais importante da minha vida.

Eu saio daqui com um presente que você me deu, um que eu já vi muitas vezes chegar para humanas e sereias, mas nunca para mim. Obrigada, Estevão!

Eu estava sem mais nenhuma razão para continuar vivendo, mas você me deu uma. Pode ter certeza que cuidarei bem dela.

Outra coisa que quero que saiba é que eu te amo. De verdade! Achei que sereias não se apaixonassem, mas como me disseram as Deusas: os tempos são outros.

Espero que possamos nos encontrar de novo, Estevão.

Com amor,

Iara.”

Só restou a Estevão chorar depois da leitura.

***

Iara, Mariano e Floriano chegaram algumas longas horas depois em uma cidade do interior de Minas Gerais. E meses depois, Iara deu a luz a Wenda em um lago perto de sua casa, com ajuda das mesmas deusas com quem conversou na noite de ressaca. Saci e Curupira ganharam uma irmãzinha. Iara já era Ceci dos garotos, mas era Ceci da menina agora também.

Seu coração mandou-a enviar uma foto da criança para Estevão, que ficou muito feliz.

Iara passou a não causar mais nenhum problema para eles. Ter sua filha a fez mudar de postura, agora ela era bem mais cuidadosa e aproveitava as noites para nadar com a filha no mesmo local onde ela nasceu. A cauda da menina levaria uns anos para aparecer, mas ela tinha tanto alma de sereia quanto de humana.

***

Alguns anos se passaram, Estevão saia para mais uma vez ajudar os seus barcos de passeio, um dos homens lhe entregou um recado, que dizia:

Encontre-me na Praia dos Anjos no pôr-do-sol.”

A letra era a mesma daquela carta que recebera de Iara. Era ela! Ele sabia disso.

Conforme combinado, ele foi ao lugar e pode ver apenas quatro pessoas na areia. Haviam três crianças. Dois meninos, um ruivo, outro negro e de uma perna só. Uma garotinha de cabelos compridos e castanhos. Eles eram observados por uma mulher mais velha, também de longos cabelos, só que bem escuros.

Estevão tirou os chinelos e pisou na areia.

A mulher olhou para trás e ao ver que era ele, se permitiu sorrir. O homem respondeu ao sorriso, aproximando-se e sentando-se ao lado dela.

Suas mãos se tocaram, os dedos entrelaçaram-se e um beijo matou a saudade.

FIM


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Notas finais do capítulo

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