As Asas das Possibilidades. escrita por TrompeLeMonde


Capítulo 1
01 - Talvez Asas.


Notas iniciais do capítulo

Bem, tentei fazer uma singela one onde pudesse explorar um pouco de minha personagem favorita da franquia, Marin. Espero ter feito um bom trabalho. Boa leitura.

Importante: Postei essa história no Spirit também, com o nick de Harleewise, antes que digam que é plágio.



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O vento é… Admirável. Consegue ser belo mesmo na ausência de uma face. Lembra-me a bondade. Contudo, a bondade não traz consigo o cheiro de sangue e o sentimento de culpa e miséria. Compreensível. Não há o que amedronte aquele que não possui rosto. É quase uma crueldade que eu diga isso na sua presença, minha amiga. Teu sangue, assim como lágrimas, escorre morto e silencioso entre meus dedos. Lágrimas escarlate tentando voltar ao lar, um determinado coração. Lágrimas que eu não tenho o direito e nem vontade de expressar. O assassino não chora pelo sacrifício, assim como um amigo não ceifa a vida de outro. Em toda minha canalhice, quisera eu ter quebrado somente a primeira regra… Mas como sugeri, não tenho face. Por isso, não há o que chorar. A mentira não reluta ante seus semelhantes.

Observo sua máscara no chão. Estraçalhada como desde o início deveria ter sido. Ah, Shaina, como poderia lhe pedir perdão? Talvez esteja feliz com esse meu castigo. A punição pelo duplo crime, contra ti e contra mim. Porque, embora tenha matado, não tenho o espírito de um matador. Ou melhor, a força de um. Mesmo após o ato renegado, não compreendo o assassinato como boa coisa. Seu cadáver permanece melancólico e desolado, porém, os cacos de sua máscara sorriem. Estão na situação final mais moribunda, mas a possibilidade de minha desgraça mantém o sorriso em seus resquícios. O que me consola é que, diferente de mim, sua proteção e você eram coisas distintas. Você não existia anexada a um objeto. Vívida e temperamental Shaina… Talvez minhas suposições sejam somente minha consciência tentando alimentar-se de uma vazia esperança para não sucumbir à culpa do homicídio. Todavia, sou capaz de ter consciência de que realmente acredito nelas, pois são sentimentos verdadeiros. Sinto e imagino tantas coisas. E, no fim, parece que tudo se resume a nada. Um monte de vazio me ocupando. Assim sendo, confio que qualquer palavra que eu lhe diga, Shaina, soará falsa ou indigna. Que direito o carrasco tem de dirigir-se à vítima? O que sinto não importa para os outros, e agora, também já não lhe importa. Até o último momento, você creu nesta pessoa sem face. Bem, todo privilégio acaba encontrando seu fim.

Abaixo-me, sabendo que será a última vez que toco e inspiro o mesmo ar que minha antiga amiga. Inspiro, com certo pesar, o ar aromatizado por seus restos. Shaina descansa com triste e tétrica serenidade, algo que somente os mortos podem exalar. Sua máscara continua a me amaldiçoar com os respingos do sangue de sua usuária, atacando com todas as tentativas de macular ainda mais minha alma. Nada será suficientemente cruel para mim. A Armadura de Cobra ainda não a abandonou. As armaduras são… Nobres. Capazes de coisas que muitos humanos desprezam. O traje aproveitará cada minuto possível aqui, como uma mãe que zela por seu filho inconsciente, mesmo que esteja mórbido e desvairado. Não importa que todos os ossos estejam quebrados, ou que haja um buraco enorme em seu peito que ainda jorra sangue escuro. Ainda é ela. E mesmo depois que for tragada pela lúgubre terra, pelos vermes famintos e pela eterna desolação do Submundo, continuará sendo. As armaduras não esquecem. Elas mantêm. A vida e a luta por ela são suas grandes alegrias. Talvez agora, tanto a Cobra quanto a Águia que reveste meu corpo me odeiem.

Reverencio Shaina finalmente. Já que não pode crer em meu respeito, ao menos talvez seja possível que compreenda que não a desrespeito tanto assim. Talvez. É sempre talvez. Isso porque eu, Marin de Águia, não confio em nada que não tenha sua marca na verdade e na realidade. Porém, sou humana. Como posso saber de fato o que é a verdade? Não sabemos. Os deuses também não. Ora, as guerras travadas são uma amostra do ápice da ignorância. A necessidade de força surge na ineficácia do entendimento. Isto aqui é uma prova muito clara disso. O passado foi, o futuro será. Porque não temos a capacidade de querer entender ninguém senão nós mesmos. Adeus, Shaina. Eu tentei. Se eu não a compreendi, também não espero que me compreenda, velha amiga.

Levanto-me. A águia, ao capturar a cobra, devora-a por seu esfomeado instinto animal. Contento-me em levar só o sangue de Shaina em minhas mãos e seu último grito em minha memória. Bem, há muito mais dela em minhas memórias, felizmente. As marcas de seu poder estão eternizadas também em meu corpo, mesmo que tendam a sumir. Não é como se alguém fosse conseguir ceifar-lhe a vida sem sair com uma única nódoa. Meu sangue também repousa em seu cadáver, como troco e laço selado. Não é algo para se orgulhar. Suas garras e faíscas. Meu físico suportará a mesma carga que minha consciência. No entanto, novamente, ninguém se importa. Então, também não devo.

A despedida tem seu fim. A Shaina, somente a beleza fúnebre do vento. A mim, correr. Fugir como uma presa em perigo. É isso aí, a caçadora mortífera que lamentava por seu ataque transforma-se em vítima num ínfimo pedaço de tempo. Ora, só me tornei tal caçadora aqui nesta situação porque inicialmente me encontrei como mártir num extremismo derradeiro. O Santuário deseja que esta águia quebre as asas e desabe num despenhadeiro de trevas. Anseiam pela minha morte. O que fiz com Shaina pouco se compara ao desejo do Grande Mestre em ver minhas vísceras dispersas. Não é surpresa e nem algo inédito. A justiça também pode ambicionar vingança e sanguinolência, diz Ele. E o que Ele diz, é regra absoluta. Exatamente como há vinte anos.

Começo a correr. Os cosmos sedentos estão se aproximando. Minha ação é quase inútil, uma vez que toda fuga cede. Mas creio estar envolvida por um instinto humano primitivo de sobrevivência, e não sinto vontade alguma de renegá-lo. Minhas pernas doem e sangram pelos impactos de Shaina. Sua mensagem pós-morte. Não para mim, mas para seu algoz. Seria eu realmente seu algoz? Meu espírito para sempre será perturbado pela ação. Repito que não vejo felicidade no assassinato. Algozes não lamentam. Talvez seja assim. Ou então, não exista algo que algozes não façam — eles somente fazem, e o que fazem é arrancar vidas deste mundo. Uma desculpa própria aliviaria muito a situação de culpa, não é, Marin? Talvez. Sempre talvez. Felizes são os desatentos e insensíveis. Afinal, a felicidade é uma ignorância enorme; mas é a melhor e a mais ideal.

Fujo. É o que humanos sabem fazer, dizem os deuses. O pingente em meu colar bate constantemente contra meu peito, como se quisesse martelá-lo e violá-lo. É uma lembrança. Tohma… Ele pereceu na prisão dos deuses, já que entregou sua vida e verdade nas mãos manipulativas deles. Quando por fim o reencontrei, percebi que não havia realmente o que reencontrar. Foi triste e desconcertante ter que compreender que o objetivo de minha vida era um homem que se deixou ser capturado pelas garras ilusórias divinas. Porém, quando tal raiva me surge… Dou-me conta que sou uma amazona, uma guerreira do Santuário de Atena. Em que me diferencio de meu irmão…? Todos os que se envolvem com os deuses estão se jogando em prisões e escravidões. Escolhemos vender nossas almas. Por quê? Por que trocar a suposta porém bela liberdade humana pelo saber diário de ser uma marionete na mão de seres que não dão importância a nada senão suas existências? Creio que… São os ideais. Justiça. Caos. Disciplina. Fé. Tanto nós quanto os deuses só desejamos isso: que nossa crença predomine. É o combustível de nossas almas de cosmos, a motivação que nos faz guerrear sem temer. E por amarmos tanto nossas convicções, aceitamos nosso próprio sacrifício por elas. Por isso estou aqui. Por isso Shaina esteve aqui. É por isso que o Grande Mestre está lá, esperando minha cabeça. Assim também foi com você, não é, Tohma? Esteve nos céus e nos infernos porque acreditava com toda sua alma. Eu… Eu me orgulho. Orgulho porque estou certa que fora tão honrado e vívido quanto um cavaleiro da justiça. Lutamos uns contra os outros e desejamos fortemente nossas quedas; mas, no fim, batalhamos com as mesmas essências. Mesmo que meu amado irmão já tenha sucumbido à morte, reviver a consciência de algumas coisas é algo que conforta meu espírito. E quando me dou conta de meu apreço por ele mesmo após nossos conflitos e rancores, entendo bem a razão. Ele ainda existe. Tudo que começa a existir jamais para de ser. Claro, talvez. É uma verdade questionável, porém, mantenho-a no íntimo de minha alma, já que minhas experiências não a questionam. Algumas coisas são fortes demais para não considerarmos verdades. E como não há nada e nem ninguém que possa arbitrar unicamente o que é a verdade…

… Continuo correndo. Não há como descrever essa perseverança desmotivada que a fuga proporciona. Como citei, é algo primitivo, quase impossível de conciliar com a razão. Talvez eu somente deva me lembrar do motivo de tudo isso. Pacientemente, por toda minha vida, utilizei minha máscara e minha racionalidade sem jamais ceder. Mesmo assim, tenho um constante remorso de ter errado. É algo bom. Faz com que eu sinta que tenho uma face, embora não saiba realmente se desejo ter uma. É uma dualidade. Um… Talvez.

Tudo sempre começa quando o mal se alastra. O bem é a constante perfeita do universo, então se algo novo e alarmante ocorre, é uma manifestação do mal. Deve ser por esse motivo que tantos humanos, dominados pelas curiosidades, são seduzidos pela vilania. Muito efetivo. O mal é sempre o oposto do que idealizamos. Para nós, Cavaleiros de Atena, ele se concentra em injustiça, crueldade e desarmonias. Na visão de uma entidade inimiga nossa, com certeza nós, com nosso amor e paz, somos o mal. Então, temos mais um talvez altamente relativo. A maldade em que acredito está, nesse momento, sentenciando nossa justiça ao caos. É algo que realmente me entristece, uma vez que não é a primeira vez que ocorre. Poucas coisas são mais deploráveis que a repetição dos erros. Ele está no Santuário, dando ordens e reinando soberano. O mal apenas muda suas formas de se manifestar, pois no fim, consiste no mesmo: a destruição de nossas convicções. Os outros detalhes são pequenas estratégias organizadas para conseguir seus objetivos. É quase trágico reduzir as vidas a isso, porém, a guerra ensina que cada um possui sua funcionalidade condensada. O fato é que o mais justo e fiel coração foi dominado por uma manifestação maligna que saturou seu espírito por muito, muito tempo. A lâmina de trevas que perfurou seu coração naquele tempo causou-lhe um mal muito maior do que o visível. O Grande Mestre, lendário e vital… Meu discípulo. Seiya. O mal que consome cada partícula de seu espírito, originada do golpe mortal e vicioso que Hades lhe dera naquele fatídico momento de nossa “vitória” na Guerra Santa não cessa e não se satisfaz em torturar e subjugar sua pobre e heroica alma. A fome divina do Inferno por caos e destruição não soube morrer e arranjara um caminho de parasitar nosso sagrado protetor. Agora, ele deseja a destruição da Águia, e o que ele deseja, é absoluto. Ninguém dirá nada contra o grande Seiya de Sagitário. Quem seria capaz de tentá-lo?

Anunciaram minha traição e decretaram minha morte porque guardo algo incrustado em meu ser que somente a morte poderia varrer. Dói-me admitir o que se segue, mas… Também existe um talvez nessa situação. Acuso o mal apocalíptico de arruinar a alma de meu discípulo, e assim ansiar por meu cadáver; no entanto, quem garante que o íntegro rapaz não se sinta incomodado com o fato de possuir uma fraqueza que só cabe a mim, sua antiga mestra? Porque é essa a grande razão. Por mais justo que seja, ainda é humano. Os que têm poder desejam-no por completo. Então meu discípulo e quase irmão poderia sim me querer morta por saber demais. Talvez.

É chocante e revoltante pensar assim. Somente a possibilidade causa-me ânsia e tristeza muito semelhantes e grandiosas às que senti ao matar Shaina. Contudo, assim como no homicídio, não fujo das possibilidades. Não somente meus ossos se esfarelam, mas minha alma também. Não posso pensar em sentir; não consigo. Meu organismo sofre. O mal. A vontade própria. Quando se tem demais, as coisas perdem o valor. Minhas palavras soam frias. Eu não tenho face. Se pudesse, poderia chorar. Ninguém veria se eu, Marin, estivesse chorando. Nem mesmo eu. Seria bom. Iria me sentir humana. É bom que eu seja. Parece-me idiota ter lutado e sacrificado minha vida por algo que não sou.

Meus passos cedem. O fim. Engraçado como o fim associa-se intrinsecamente ao nada e mesmo assim é tão perceptível. Um penhasco. A boca do nada. Pedrinhas despencaram com meu freio súbito da corrida. O vento continua bonito, mesmo sem ter uma face. Ele agracia e consola diante das mais melancólicas situações. Não é intencional, mas faz. Sinto como se minha máscara fosse também voar livre para o abismo. Acabaria por me deixar livre, tendo uma face. E tudo, tudo encontraria liberdade; as lágrimas, as feridas, os sorrisos. Um simples ato desencadeando e desprendendo coisas tão pesadas e reprimidas. Esse é um talvez refrescante, embora eu não acredite de verdade. O vento dança sob o abismo com os dramas e esperanças que nele depositam. Posso senti-los porque sincronizo com eles. Não porque me identifico, mas porque entendo. Isso é algo… Bonito. Tantas coisas se revelam quando a mente se vê ao lado do fim. As amarras soltam, as preocupações somem. Um amoroso convite da eternidade. Olhando para ela nas trevas reconfortantes do abismo, vejo-os. Tohma. Seiya. Shaina. O mal. O vento. As guerras. As faces. O talvez e seus truques. Eu. Somente eu não estou voando e sentindo a parte mística e inacreditável do abismo. Não tenho face, mas… Tenho alma. E ela sorri. E ressoa.

- Marin de Águia, você está cercada. A mensagem final acabou chegando, como se o próprio fim, demonstrando seu lado hostil, falasse. Viro-me. Três cavaleiros prateados. Todos querem ceifar minha alma, exatamente como há vinte anos. Bem, algumas recordações, por mais aleatórias que sejam, são interessantes. Vinte anos. O que realmente mudou de lá para cá, huh?

Dou um passo à frente. Eles encaram a amazona sem rosto. Mas, mesmo que eu o tivesse. Eles não possuem os olhos para ver quem sou. Talvez eu também não possua. Mesmo com essas desastrosas possibilidades, esse maldito talvez — o último e derradeiro —, eu tenho minha crença. Creio que sou sim uma perseverança da justiça e do que a alma do Santuário de Atena conceitua como bem. Um forte de preservação da existência. Sou… Sou uma das certezas de que o bem reside nos justos e na paz, e que se o mal é evidente demais, é porque a eternidade da nossa bondade é a mais forte e imbatível fortaleza. Sou também aquela que jamais permite que asas de aliados sejam quebradas e enegrecidas, pois lá estarei sempre para que voem íntegras novamente. Mesmo não tendo face, esses são meus ideais; meus poderosos ideais e meus verdadeiros e íntimos sentimentos; minha funcionalidade condensada e silenciosa. Nisso não há talvez, meus caros adversários.

As águias, na caça ou no perecer, estão sempre de asas abertas e magnânimas, voando e reverberando com seu espírito nobre e corajoso. Eu, Marin, devo acreditar na única realidade sem talvez, que é a função de meu próprio ser na sublime e magna esfera da existência. Eu terei a mesma fúria e grandeza das águias de minha constelação. Eu… Voarei.


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Notas finais do capítulo

Obrigada pela leitura.



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