A Verdadeira História do Ouro escrita por Mahucp


Capítulo 1
Capítulo I




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Domingos encontrou a Liberdade na curva do rio.

Dourada, brilhava em pequenos pontos como os raios de Sol, que expulsavam a violenta chuva do reino dos céus, sendo o azul nobre recinto da paz.

Domingos fechou o pesado punho em torno das pepitas, sentindo a delicadeza da Liberdade contra a pele tão castigada com a chibata da Escravidão.

Domingos ergueu o rosto, fitando outros seis ou sete negros trabalhando adiante no rio, com suas peneiras, separavam o ouro da areia. A areia que desperta a ira da Escravidão e faz cair a pesada chibata, punindo por punir, por não ser o suficiente.

A água ia aos joelhos dos negros, que trabalhavam sem camisa. Somente de calças num tecido grosseiro, faziam o garimpo por horas, punidos pelo calor, pela fome, pelo esgotamento, pela Escravidão.

Mais distante ainda vinha o homem branco montado em um burro marrom, observando os negros trabalhando com o olhar superior daqueles que não respeitam o quinto mandamento.

A Fortuna, prima longínqua da Liberdade, abraçava Domingos naquele dia, não podia ele ignorar favor tão belo que fazia à sua existência. Domingos escondeu as pedrinhas na calça. Sabia que uma pepita podia comprar a Liberdade, contudo para viver precisava ele de mais.

Voltou a trabalhar, mergulhando a peneira no rio, retornando a separar o útil do inútil.

~~=*=~~

A vila ganhava vida nova diante do vento de Liberdade, como a escuridão da noite caía com o calor do fogo.

Domingos não sorria desde que fora capturado e separado da família. Sendo jogado às trevas de um navio rumo a uma terra desconhecia, para servir ao senhor Nicolau ao lado de tantos vivos que estavam mortos; pedindo a Deus que a Vingança não lhes seja insensível, pois a cega Justiça já os havia esquecido.

Livre, Domingos continuava as preces pelos companheiros. O caminho da Liberdade era amplo, permitindo tanto o esquecimento como a luta.

Usava uma camisa azul feita de linho, junto da calça com a qual se encontrara com a Liberdade.

A noite na vila vinha em uma temperatura mais amena que o dia. A lua cheia brilhava no céu, dividindo o firmamento noturno com as estrelas distantes. Junto da iluminação natural, estavam lampiões dispostos em intervalos regulares um do outro, contrastando obra humana com Divina.

A luz dos homens iluminava a ampla rua enlameada, pavimentava em paralelepípedos, cercada por casas de diversas cores e árvores carregadas de frutos.

No alto da colina havia a Igreja com as glórias e belezas que só ao Senhor pertenciam.

Dividiam a rua junto de Domingos todo o tipo de gente. Negros e negras que conseguiram a Liberdade, negros e negras que ainda lutavam por ela, gentios, homens brancos.

Sentindo a fome pedir por comida, Domingos decidiu ter a primeira refeição ao lado da Liberdade.

Domingos entrou em uma movimentada taberna. Ali havia cerca de quinze mesas, algumas ocupadas, com homens mergulhados na sorte e no azar; outras com o negro solitário tomando aguardente e ainda mesas vazias, esperando o próximo cliente.

Domingos sentou-se em uma mesa vazia e aguardou o atendimento, observando um ambiente que nunca estivera, tal qual o artista aguarda com paciência a chegada da musa para criar as mais magníficas obras.

Numa mesa perto dali, conversavam dois homens. Somente uma vela branca entre eles, com a chama amarela brilhante aquecendo o debate como o fogo roubado de Prometeu.

O primeiro homem, um jovem poeta com a beleza de Apolo, dedicava cantos à sua pastora. Usava uma camisa branca, com babados e as mangas dobradas na altura dos cotovelos e calças bem justas.

O segundo atingira a idade dos Antigos sábios. Os cabelos grisalhos apontavam um início de calvície, que revelavam pequenas imperfeições nas laterais da testa. A barba espessa cobria quase todo o rosto, apresentando algumas falhas nas bochechas e no pescoço.

Mesmo com o calor dos trópicos, o velho se vestia como nas cortes europeias, repetindo a tradição ditada pela realeza, de mesmo modo que a ninfa repetia o eco das palavras ditas por outros.

— Nobre tio meu, peço-lhe ao senhor meios para publicar escritos da futura república — falava com o idealismo dos jovens cheios de sonhos. — Compensar-lhe-ei após expulsarmos a perversa Coroa de nossas terras!

— Ingrato! Ingrato! — retrucou o velho Sebastião batendo na mesa de madeira. — Acolhi-o quando nem andar conseguia, Tomás! Mandei-o à Coimbra, às terras de nossa Rainha, Maria, a Pia. Assim agradece-me? Conspirando contra a Coroa como um verdadeiro Judas!

— Engana-se no julgamento a meu respeito, tio. Coimbra iluminou meu espírito, tal qual Delfos clareava o futuro dos Antigos — replicou Tomás. — Em meu retorno, o calor de nossa terra aqueceu-me a alma! Percebi, eu, então, meu nobre tio, que lutar para tornar esta bela terra livre e justa é a melhor forma de retribuir tudo o que me deu.

O movimento na taberna continuava. A discussão de sobrinho e tio sumia em meio a conversas e comidas.

— Chama monsieur de luta, mas chamo eu de crime! — disse Sebastião cruzando os braços. — Crime contra a Rainha, crime contra a ordem, crime contra Deus!

— Crime é o que Portugal faz conosco! — contestou o jovem cheio de energia. — Roubam todo nosso ouro, nossas riquezas. Massacram os gentios que aqui vivem, mais puros do que viveram Adão e Eva no Éden. Transformam a vida do escravo em tristeza, sofrimento e grande dor.

— Blasfêmia, blasfêmia, blasfêmia! Três vezes blasfêmia! — O velho cuspia irado, possuído pelas chamas do inferno — Diz meu sobrinho que nossa Rainha é criminosa, mas o que fazem esses selvagens pela Santa Igreja Católica? Cultuam seus demônios em segredo, achando que Deus não vê os imundos pecados que carregam. Rainha Maria, a mais pura das devotas, e monsieur acusa a ela de criminosa? Está contaminado por ideias do Diabo, meu sobrinho.

— Ora, meu nobre tio, parece-me que o senhor não houve uma boa palavra do que digo! — suspirou Tomás, com o cansaço das belas ideais mirradas pela Tradição, antes mesmo de ganharem nome próprio. — Jamais levantarei palavra alguma contra a nobre pessoa de Nossa Rainha. Ataco ferozmente, pois, a Coroa. Entra Maria, saí José, saí Maria entra o príncipe. Pouco importa a mim quem carrega o Poder real, o mal está na Monarquia. A Morte é a verdadeira Monarca de Portugal. Está ela a ostentar, orgulhosa, uma coroa cheia de sangue inocente. Não serei eu devorado pelo monstro do Leviatã.

— O Senhor deu ao monarca o divino direito de reinar sobre o povo — disse Sebastião — Heresia é contestar as vontades de Deus!

— A divina monarquia de que fala é obra do clérigo sedento por poder, querendo somente as riquezas e direitos pertencentes ao povo; limitando toda a família da Liberdade — argumentou Tomás, tendo em espírito palavras mais sublimes que os cantos angélicos. — Deus jamais interfere no reino dos homens. Dai a César o que é de César, e dai a Deus o que é de Deus, dizia nosso Salvador Jesus Cristo. Viva a Republica, terra onde homens são livres, jamais súditos! Viva a República, vitoriosa guerreira no combate contra o nefando casamento entre a Coroa e a Batina!

— Jovem iludido! A vida mal lhe ensinou a pensar e vem dizer-me asneiras como se dono da razão fosse! — criticou Sebastião. — Fosse a República desígnio de divino, Deus não teria feito de David Rei de Israel.

— Deus criou o Homem à sua imagem e semelhança — Tomás rebateu a justificativa teológica. — Se apoiasse o Senhor a monarquia, teria criado dois tipos de Homens, um superior, para reinar; outro inferior, para servir. Deus, porém, é infinito em Sua sabedoria e jamais criaria tal injustiça. Todos os homens são iguais perante Deus, e assim devem ser os homens perante o Estado! Por vontade do povo deve ser feita a escolha de seu valente representante; o contrário nada representa além de funestos privilégios hereditários, tais quais as injustiças que Portugal chama de direito sobre nossos bens e terras.

Tomás levou a mão aos cabelos dourados, colados na testa graças ao suor tropical. Os olhos verdes, antes cheios de amor à Liberdade e à República, também agora transbordavam com terna devoção à mulher amada. Pastora que fizera a predestinada flecha do Cupido cair em seu coração, mesmo antes de partir à Coimbra. Amor mais puro não há do que aquele cultivado desde a terna infância.

Vinha ela com seus longos cabelos negros, que escorriam soltos e lisos até a cintura. Com a pele castanho-avermelhada e pequenos olhos amendoados, brilhantes como lindas pérolas negras. Dona da beleza da terra que Portugal tomara para si, doce ninfa dos campos, tem a Natureza como a mais fiel amiga.

Usava um vestido azul com mangas três quartos e a saia de babados na altura dos tornozelos.

Servia ela, aos homens da taberna, comidas e bebidas, concedendo a todos com sorrisos e carinhos que vinham de sua alma, deixando oculto o pranto. Assim ia era ela, musa triste e solitária tendo o espírito formado pela poesia de tragédia próxima e distante, e da celebração de alegrias suas e remotas.

— Mais esta sujeira! É cortês com a rameira gentia, achando que pode amá-la como ama uma mulher de verdade! — condenou o velho vendo o amor brilhar nos olhos verdes. — Tantas heresias que nem mesmo Jesus Cristo Nosso Salvador as perdoaria.

Tomás socou a mesa perdendo a paciência. Enfrentava, ele, duelo mais árduo do que Hércules, nunca conseguindo eliminar a hidra, sempre aparecendo novas cabeças no lugar da decepada. Podia, o tio falar mal de sua bandeira revolucionária, jamais de sua musa. A mais bela flor do homem que morre pela Liberdade.

Fosse condenado ao inferno, não seria por seu amor à República, menos ainda pela devoção à pastora. Por um pecado desprezível queimaria.

— Faz de mim um Brutus, enquanto está longe de ser César, tio — falou Tomás, vendo que a própria família era reflexo da monarquia, com os filhos e tutelados servindo aos pais e tutores. — Nada devo ao Reino dos Céus. Minha luta e minha musa são alimentos de minha alma e espírito. Não há pecado em venerar a Liberdade e o amor. Se o senhor insiste, porém, em atirar-me aos leões, lutaremos em lados opostos da guerra.

— Guerra nenhuma haverá! — proclamou Sebastião. — Nossa nobre Rainha visa à paz, jamais incentivará tais barbáries.

Dizendo isto, o senhor se levantou retirando-se da taberna deixando o sobrinho junto à chama da vela.

Tomás nada fez para impedir ou incentivar tal ato. Insistia o tio em beber o vinho da babilônia ao lado da Coroa portuguesa, não caberia a Donzela da Sabedoria obstruir pensamento usurpador.

O jovem fez sinal, sendo atendido pelo dono da taberna. Pediu pena, papel, tinta e uma dose de aguardente, pagando por eles moedas de cobre. Escrevia agora à Isabel, pastora poemas de amor e liberdade.

O último homem a receber um prato de comida foi Domingos. Acostumado a comer depois dos porcos, perguntava-se Domingos o que haveria de distinto na Liberdade. Resposta certa não era, mas veio o prato de comida tão diferente de tudo que comera naquelas terras da Escravidão. Linguiça, couve refogada, tutu de feijão e farofa de mandioca, comida que só os senhores podiam comer.

Domingos encheu a mão de comida, levando o alimento à boca, sentindo o sagrado gosto dos manjares, direito exclusivo dos deuses.

A moça que servira Domingos sentou na cadeira frente a ele. Nunca tendo o visto ali, queria ela saber quem era. Belo, ter a força de mil homens parecia; muito além seria sábio e protetor como os anjos do Senhor. Era alto, de brilhantes olhos escuros, com charmoso nariz achatado e bonitos lábios grossos.

— Como chama? — perguntou Isabel. — Nunca o vi antes aqui.

Domingos via que a Liberdade deixava uma moça falar com ele e ele falar com ela. Não sabia quais palavras usar. A Escravidão ensinara somente a falar palavras servis.

— Domingos. Comprei minha liberdade hoje.

— Eu sou Isabel — disse a moça. — Virá mais vezes aqui, então?

Domingos confirmou com a cabeça. Será o motivo da moça falar com ele coisa da Liberdade? Quando estava com a Escravidão, palavras de carinho somente dos outros escravos. A moça conversava com ele, mas os homens ainda o viam como bicho. Escravidão e Liberdade ainda brigavam por ele.

— Venho sim — respondeu Domingos. — Preciso come.

Isabel riu graciosa. Difícil era encontrar alguém com quem pudesse conversar. Olhares impudicos sobre ela sempre caíam.

Tomás fora o primeiro que a vira com amor. Tomás, herói de todos os homens, derramará sangue pelas terras do Brasil, que jamais pertenceram a Portugal.

— Isabel gosta muito dele — comentou Domingos reparando no olhar de amor que a moça dirigia ao jovem que escrevia poesia.

Sorriu ela com a tamanha delicadeza de Domingos. Não eram todos que podiam enxergar o amor nos olhos dos outros, somente os de puro coração tinham tal dom.

— Amo-o muito — pronunciou Isabel. — Desde que o vi pela primeira vez.

— São família — A fala foi um misto de pergunta e afirmação.

Não se comportavam - Tomás e Isabel - como os outros casais que Domingos vira, contudo amavam-se mais do que estes mesmos casais.

— Não, temos somente nosso amor — respondeu Isabel. — O senhor meu pai e o senhor tio de Tomás não aprovam nossa união. Senhor Sebastião não quer ver sobrinho casar com moça sem bom dote. O senhor meu pai quer-me aqui com ele, cuidando do negócio.

Domingos viu que a Liberdade não sorria para aquela moça. Não podia ela ter a escolha de casar com o homem que amava. Não era a Escravidão que fazia isto a Isabel, outra coisa era; desconhecida a Domingos.

— Podem muda isso? — perguntou ele.

— Vamos mudar — sorriu confiante. — Vosmecê tem uma mulher no coração?

Domingos não esperava por aquela pergunta. Queria ele abraçar a pequena mulher. Não sabia se havia mulher no coração, porém libertador era ser visto como alguém capaz de amar.

— Antes de chega aqui, em minha terra, tinha esse tamanho. — Domingos fez um gesto com a mão, indicando ser menor do que a altura da mesa. — Em minha vila tinha muita criança. Uma menina bonita dizia que ia faze família comigo e eu queria fica do lado dela.

— Oh, queriam os anjos que ela esteja bem! — pediu Isabel cheia de ternura. — Tem de voltar a sua terra. Ver se a menina bonita ainda vive lá!

Nem por um dia havia deixado de desejar retornar à terra natal. Sonhava à noite com a vida lá e no dia pensava nela, tirando forças para ficar em pé. Tinha agora, Domingos, a Liberdade; podia voltar. Voltaria.

~~=*=~~

Domingos parou frente a uma barraca de doces, comprando uma cocada que uma negra liberta vendia.

Via ele os doces de goiabada, pé de moleque, paçoca, rapadura e cocada, ao lado de algumas frutas, todos atacados por moscas. Sorria feliz da vida a dona do próprio negócio.

Tinha ela o sorriso mais belo que Domingos já vira, ninguém discordar dele ousaria. Era ela grande amiga da Liberdade, mas também amiga da alegria. Os santos negros, por ela, nutriam grande carinho. Era o que diziam na curva do rio sobre Maria.

— Vosmecê vai volta um dia? — Domingos perguntou.

— Volta aonde, querido?

— Nossa terra — explicou ele.

— Minha terra é essa aqui. Nasci aqui e vo morre aqui — disse a doceira. — Não saberia o que faze em outro luga. Veio de lá, vosmecê?

— Vim sim — respondeu Domingos, terminando o doce.

— Como é lá? — perguntou a mulher.

— É como contam nas história — respondeu Domingos.

— Então é um bom luga — falou Maria sorrindo. — Pra mim isso basta. Isso eles não podem tira de nós. Nossos sonhos, nossas alegrias, nossas dores, nossa luta, nosso sol, nossa chuva, nosso vento. Ficam eles indo pra lá, indo pra cá também. E eu fico pensando que que tem na terra deles, pra eles tanto quererem vim pra outra terra.

~~=*=~~

Atrás da taberna uma granja havia. Atrás da granja encontravam-se os apaixonados. Agraciados pelo brilho da lua, torcia Diana para que o amor deles triunfasse. Para ter a Liberdade ao lado deles, teriam de lutar para conquistá-la.

O secreto amor dos amentes não bastava.

Tomás, mais íntimo da saudade, abraçou a amada musa, beijando-lhe os lábios, provando o gosto do sentimento criado pela Vênus e despertado pelo Cupido.

— Pastora de minha alma sonhadora, peço que perdoe este poeta fantoche do desespero que sou eu! Meu nobre tio vigia-me como uma gárgula sedenta por sangue inocente — desabafou exorcizando o demônio da culpa de suas palavras. — Não consigo eu ter a paz da Arcádia em meus próprios aposentos. Não pude hoje trazer-lhe a tinta e a pena para converter-lhe em discípula do saber.

— Perdoado está, meu boneco — disse Isabel com um travesso sorriso. — Hoje ensino-lhe eu! — dizendo isto a moça abre os braços tal como o anjo da revelação, mostrando sagrados objetos que escondia às costas.

Carregava as armas que vinham daquela terra. Com o tubo longo e fino, a zarabatana, com seus letais dardos decorados com plumas brancas.

Arma de Isabel mostrara a Tomás.

O jovem mostrara também suas armas à pastora. Trazia ele a tinta e a pena, mostrando a ela os infinitos caminhos que a letra levaria.

— Senhor meu pai dorme feito o glutão que é — explicou Isabel. — Esconde ele de mim a herança de minha valente mãe, roubando-a de mim como roubam de nós os mercadores. Pastor meu, lutemos juntos por nossas vidas e nossa liberdade.

Único bem da mãe que conhecera Isabel. Recebera o beijo da morte a heroica mãe, quando a moça nem falar sabia.

— Parece-me que hoje é dia em que a troça cobrirá todo o meu ser! — exclamou Tomás.

— Perece? A mim sua troça virá junto da certeza de meu riso — Isabel fez graça.

— Que pastora cruel tenho eu! — Tomás levou a mão ao peito esquerdo, encarnando a arte de Baco. — Atenta-me a alma, ao invés de elevar-me o espírito!

— Faço mais! — continuou Isabel com o riso da musa. — Quando em nossa primeira batalha, encontrar a morte ao bater a cabeça numa pedra; rirei.

Tomás riu junto da amada, como só faziam os sátiros e as ninfas da Arcádia quando brincavam juntos.

— E não contará nada a ninguém, pois minha pastora não terá mais lições de tinta e pena. — falou o jovem envolvendo a cintura da moça. — Rirá sozinha da própria anedota!

— Como é orgulhoso, o meu pastor — disse Isabel abraçando o pescoço de Tomás e tomando-lhe os lábios com intenso desejo.

— Preciso eu do orgulho, do contrário pouco digno serei de lutar contra Portugal.

— É muito digno, meu Tomás — declarou Isabel. — Se não o fosse, não seria o meu pastor. Palavras e flechas são nossas armas. Juntos venceremos Portugal.

~~=*=~~

— Conte-me mais de sua terra! — pediu Isabel a Domingos.

— Luga bonito — disse Domingos sorrindo. Nem todo o ouro da Liberdade podia comprar aquela conversa. Gostava ele de conversar com a moça gentil da taberna. Livre era, mas ao lado de Isabel tinha carinho, amor e amizade. Mais preciosa do que todo o ouro dos rios era a alma de Isabel. — Muitas cores, animais, plantas e rios.

— Que animais há por lá? — perguntou com a curiosidade dos segredos.

— Muitos, muitos animais. Muitos mais do que aqui — respondeu Domingos. — Todos os tipos de animal. Aves e peixe e animais enormes.

— Enormes?

— Sim. Muito grande. Muito maiores que um homem.

— E como são eles? — perguntou cheia de empolgação.

— São altos como árvores e grandes como pedras — explicando Domingos ia abrindo os braços, querendo trazer até ali o animal, somente com palavras e gestos. — Caminha nas quatro patas. Tem um nariz comprido, parecendo uma cobra. E chifres do lado desse nariz. As orelhas são grandes como asas de ave. Pode esmaga exércitos de homens.

— Miseravelmente falha minha imaginação nesta hora, Domingos — disse Isabel impressionada. — Consigo só pensar em um animal esdrúxulo, misturando partes de outros conhecidos. Isso existe?

— Não ele é animal inteiro, sem nada de outros. Ele é único. — respondeu Domingos rindo da cena da moça. — Como você.

Isabel sorriu com a delicada declaração. Pura em sua sinceridade, como os belos ninhos que faziam os pássaros às suas futuras amadas.

— Fico assim eu envergonhada, Domingos — falou sorrindo. — Só sou alguém que acredita no futuro de minha terra.

As pequenas mãos seguram as feridas de Domingos. Viu ele, então, que aquela terra era acolhedora. Encontrara junto dos negros, amparo e carinho, porém não eram eles daquela terra mesmo os que nasceram ali, como Maria. Com os senhores brancos, a piedade dos homens de batina era o máximo que recebia. E os outros, os gentios, os donos da terra misteriosos eram. Ajudavam uns a fugir pelas matas, outros caçavam os fugitivos; contra os invasores tribos guerreavam; ainda havia aqueles tão absortos em um silêncio passivo que nunca e jamais seriam entendidos por ninguém, sendo esquecidos por tudo e por todos para sempre.

Diferentes todos os gentios eram, apesar dos senhores brancos dizerem que iguais são. Domingos, porém, pouco contato tivera com eles. Seguia a lei o senhor Nicolau, não tendo nenhum escravo gentio. Se o anterior contado fosse maior, teria Domingos experimentado o acolhimento antes. Tinha medo, contudo, de sofrer mais desilusões, levantando em torno de si muralharas, temendo o dano que a luz podia causar. Não se arrependia ele, contudo.

Nenhum acolhimento tão doce seria como o de Isabel. Era ela o canto da liberdade, aquela que abria todas as portas para que pudessem os prisioneiros conhecer a vida e as cores.

Era ela também que dava asas à vontade de à terra natal retornar.

— Pouca vergonha é essa! — A voz do pai de Isabel quebrou a paz como um trovão de Júpiter. Com a força dos gigantes, puxou Isabel da cadeira. — Não te criei para ser rameira. Fica difamando minha honra, abrindo as pernas pra esses fedidos! É igualzinha a vagabunda da mãe. Mulher sem nenhum respeito! Não pensa nos outros. Fico mal falado na vizinhança depois!

Sacudia Joaquim a moça, como chacoalhava Netuno os mares.

Levantou-se Domingos para lutar e defender Isabel, porém os outros fregueses ali estavam para impedi-lo. Voltou a sentar. Calado diante dos abusos, como a Escravidão lhe ensinara.

Via também Isabel que quanto mais resistisse maior seria o castigo recebido. Por sina tão terrível chorava, restando somente a incoerente resistência do silêncio.

Joaquim levou a filha aos aposentos internos, retornando minutos depois. Sentado em frente a Domingos.

— Essas mulheres cada vez piores estão — disse Joaquim. — Acham-se no direito de tudo, que não tem de dar respeito pra homem. Se não aprenderem a se comportar logo, vão acabar como rameiras abrindo as pernas pra esses negros — Joaquim falava com o orgulho do pecador que atira pedras à prostituta. — Tenho de ensinar uma lição para essa vagabunda, quando ela parir filho de preto vai aprender a me respeitar. Depois, vou fazer muito dinheiro em cima dessa puta.


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