Night Visions escrita por Isaque Arêas


Capítulo 1
Radioactive


Notas iniciais do capítulo

Esse capítulo foi baseado em "Radioactive - Imagine Dragons": https://www.youtube.com/watch?v=ktvTqknDobU



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O silêncio.

A escuridão.

Meu raciocínio falhava.

Há quanto tempo estou tentando?

Meu cérebro não se comunica com meu corpo.

Um espasmo. Um movimento. Uma faísca de esperança.

Abri meus olhos finalmente. Perdi a conta de quantas vezes tentei abri-los durante todo esse tempo. Meus músculos não se movem de acordo com meu pensamento, mas meus dedos se moveram num leve lampejo. Pude senti-los ao menos por um momento. Uma faísca.

Meus dedos doem. Eles ardem e eu os sinto queimar. Sinto então meus olhos queimando e meus braços e meu peito. Meu corpo arde em chamas intermináveis. Por dentro. Dentro dos meus ossos eu sinto a energia pulsante, dançando por entre meus nervos. Sinto a glória. Minhas mãos se movem. Meus braços logo após. Finalmente consigo ver algo nítido à minha frente. Onde estou? Há quanto tempo estou? Quem sou?

Sinto a energia se perturbar e então uma onda enorme de energia atravessa meus ossos. Arrepia meus cabelos. Estraçalha meus ossos. Aviva a minha alma. Me sinto morto por acordar sem memórias. Me sinto vivo por experimentar essa sensação. O calor extravasando por entre meus dedos. Eu sinto as ondas de energia deixarem meu corpo. Cada feixe de energia.

O vidro à minha frente vibra. Ao perceber isso me foco ao objeto. As ondas de energia agora estão aceleradas dentro do meu corpo. Sinto correr por entre as minhas veias, meus músculos, minhas juntas. Como se fosse meu sangue ela se esvai. O vidro, já enfraquecido se rende à força. Deixa sua forma partindo-se em milhões de pedaços. Eu não estou mais preso agora.

O líquido que me mantinha vivo então se esvai de dentro da minha prisão e eu sou levado por ele ao chão. Estou em um laboratório. Sei que estou em um laboratório. Um laboratório escuro, úmido. Meu pulmão respira pela primeira vez. Eu inalo os produtos químicos e uma tosse seca sai da minha garganta. Há outras cápsulas vazias na sala, talvez para outros presos, mas apenas eu me encontro aqui. Olho minhas mãos e aos poucos sinto o calor voltar. Meu cérebro parece estar assimilando aos poucos tudo o que acontece à minha volta. Posso sentir as partículas de poeira pelo ar. Posso ouvir as gotas escorrendo pelos cacos de vidro restantes da cápsula. Posso ouvir meu coração batendo como se ecoasse por toda a sala. O barulho é intenso e me perturba, deixa minha mente turva.

Tento me focar apenas ao meu coração para que eu consiga me levantar. Uma vez de pé uso minhas pernas uma primeira vez em... Não consigo me lembrar há quanto tempo. O que estou fazendo aqui? Tento me lembrar e não consigo. Seco o suor que escorre da minha testa. Só consigo sentir o calor e a energia mais uma vez. Como se recarregasse meu corpo. Até que me distraio. Um barulho surge ao longe. O barulho é diferente dos demais. Uma conversa. Preciso segui-la. É minha chance de sair daqui.

Ando cambaleante por um corredor sombrio e cinzento. Concreto frio. Meu instinto me dizia que estava caminhando para a morte, mas eu o ignoro e continuo seguindo, afinal, há poucos minutos atrás eu estava morto. De que adianta viver se a liberdade não existe? Aos poucos me lembro do corredor em que estou. Flashes em minha mente. A luz fraca e um rosto desfocado surgem no além apenas. Não consigo decifrar.

Me esgueiro pela parede com medo e tento espiar o que acontece na sala ao lado. A conversa vem de uma sala cheia. As vozes me soam familiares. Novos flashes aparecem em minha mente.

“Amarrem ele”. Dizia uma.

“Não deixem que escape”. Dizia a outra.

“O braço está solto. Aperte um pouco mais”. Dizia ainda outra.

Então os flashes se alteram. Lembro de sentir dor e pânico. Lembro que senti meus ossos queimarem enquanto estava deitado em uma mesa. Lembro de implorar para que parassem, mas continuam a perfurar meu corpo injetando o fogo em meus ossos. Eu me lembro de tudo. Por que fizeram isso comigo? Por que não pararam quando eu implorei? O que eu fiz para merecer tal tratamento? O que fiz para sofrer tal punição? A dúvida dá lugar à ira. Eles pagarão pelo que fizeram. Eu destruí a jaula em que me prenderam, posso destruir seus corpos. Posso incendiá-los como eles me incendiaram. Não apenas posso. Eu vou.

Um passo de cada vez. Caminho em direção à sala. Ela é maior do que eu imaginava. Parecem não notar minha presença. Eu, de um andar superior ao deles, podia vê-los trabalhando da plataforma em que eu estava. Era uma plataforma de metal que se suspendia por toda a extensão da sala. Cada um estava em sua mesa, escrevendo seus projetos. Podia ouvir o som de seus pulmões ofegantes. Podia sentir seus corações empolgados com seus planos mortais. Ninguém ali era inocente em meu caso. Ninguém ali tentara me salvar.

Caminhei para fora da escuridão chegando à beira da plataforma. Um dos homens me olha. “Ah meu Deus!”, ele exclama. Os outros então olham para ele e voltam os olhos para mim surpresos. Agora eles deixam de fazer seu trabalho. Eu dou mais um passo para frente. Eles mais um passo para trás. A dança do medo. Uma dança que eu não pude dançar enquanto eles queimavam meu corpo. Eu sorri com o pavor estampado em seus rostos. Não sabia o que haviam feito ou porquê, mas sabia que mereceriam minha ira. Ouvi o suor escorrendo de um deles ao fundo. Antes que alguém se movimente eu tento me comunicar, mas não consigo. Minha língua está travada.

Ao me ver confuso tentando falar, um dos homens saca uma pequena pistola que guardava atrás do jaleco. Quase como por instinto eu lanço uma de minhas ondas de energia. Sinto o calor sair de meus ossos mais uma vez e vejo o homem se desfazendo em chamas na minha frente. Entro em choque. Não pela minha ação, mas porque apreciei a morte dele. Me senti vingado. A excitação me faz recuperar a fala aos poucos:

— Eu sinto...

Todos estavam muito chocados e continuavam imóveis bem à minha frente.

— em meus ossos... Queimando... O suficiente pra explodir meus sistemas... Sinto em meus ossos...

O alarme então soa. Acredito que meu rosto tomou um ar sombrio, pois detestei o barulho. O coração de um cientista na segunda fileira de mesas o denunciou. Ele deveria pagar pelo que fez. Ele deveria sofrer o que eu sofri. Sinto as ondas ficando cada vez mais fortes dentro de mim. Eu as liberto. Me deixo dominar por elas e elas se esvaem do meu corpo. Se alimentam dos meus sentimentos de ódio e vingança. Me corroem. Já não sou mais eu ali e sim a energia. Desço as escadas do segundo andar. O caos estava instalado. Atirei minhas chamas em cada um deles enquanto tentavam fugir por uma porta no fim da sala. Vi seus corpos esmaecendo em milhares de pedaços. A luz vermelha que piscava deixava tudo mais sombrio e o barulho estava me ensurdecendo e só me fazia sentir mais irritado. Era o apocalipse.

A missão não havia acabado. Eram alguns dos cientistas. Eu precisava do restante. Quando comecei a andar ouvi as portas se trancando. As trancas tecnológicas pareciam ser bem resistentes. Um cheiro estranho surgiu no ar, vinha do sistema de ventilação, era uma névoa que escorria. Meus sentidos me avisavam do perigo. Corri para a porta. A tranca já tinha sido acionada. Tentei empurrá-la, mas meus movimentos eram inúteis. A neblina se espalhava. Sinto outra rajada subindo pelos meus ossos. Eu a libero como um jato de energia.

Por mais que a porta pareça firme, ela cede diante do poder da energia tombando à minha frente. Me encontro em outro corredor escuro. Apenas a luz vermelha da outra sala pinta a minha pele pela fresta aberta. Tento não tropeçar em nada. Meus sentidos estavam confusos até eu ouvir o som de uma respiração profunda. Ah, a respiração o denunciou. Antes que eu pudesse me mover ele atira em mim. A bala entra em meu ombro e eu sinto meu músculo arder. As chamas voltam ao meu corpo. Sinto a bala se desfazer dentro de mim. Atiro nele em retribuição. Durante alguns momentos pude olhar seu rosto que era iluminado pelo clarão de meus raios. Vi seu medo. Ele estava apenas se defendendo. Não muito diferente de mim.

Continuei meu caminho até chegar à outra sala. Vazia. A pessoa que ali estava não havia deixado rastros. Eu precisava de rastros, precisava fazê-lo pagar pelo que me havia feito. Eu sentia que aquela era a sala do líder daquele projeto. Eu sentia os meus braços queimando novamente. Era uma sensação horrível. Cada vez que eu lançava a energia eu sentia a dor, mas percebia que minha pele não se queimava. Era como se ela estivesse preparada para a energia. Eu e o fogo éramos um só. Acendi a luz da sala que piscava com a falha da energia. Tentei procurar alguma pista. Percebi que as trancas não eram para que eu ficasse preso aqui, mas para que eu não o alcançasse. Ele havia fugido e eu iria atrás dele.

Procurei uma saída. Saí novamente para o corredor em que eu estava. Lançava meus raios frequentemente para que pudesse iluminar meu caminho e gritava na tentativa de aliviar a dor que causavam. Passei por inúmeros corredores. Senti que andava em círculos. Novamente a raiva tomou conta de meus pensamentos. Minha mente se fechou e eu agora só pensava em sair dali. Eu não podia ser contido assim tão facilmente. Sinto a energia sair de mim sem que eu pense. As paredes à minha volta racham e aos poucos sucumbem. A poeira sobe aos poucos. O teto se desfaz. As luzes piscam. Senti meus pés deixarem o chão.

A força dispensada era tamanha que formou-se um escudo de energia ao meu redor. Os escombros o tocavam e eram arremessados longe. Eu flutuava vendo toda aquela estrutura ruir. A luz entra por algumas frestas que se abriram no teto aos poucos. Do alto eu vejo alguns cientistas que tentavam fugir serem esmagados pelas paredes e teto. De outro lado um deles tenta atirar em mim, mas a bala ricocheteia em meu escudo de energia. Eu sorrio. Ele chora.

Flutuo até a luz e finalmente saio dos escombros. Vejo o último suspiro de toda aquela estrutura falha. À minha volta eu podia ver uma floresta. Haviam pinheiros, neve e montanhas. Parecia afastado de tudo. Algumas árvores caem com a implosão da unidade científica. Sinto a paz que há tanto tempo não sentia. Havia destruído aquele sistema que não conhecia, ou não me lembrava, mas que sabia que tinha me feito um mal irreparável. O sistema se foi.

Quando a fumaça abaixou e o prédio se definiu caído. Eu desci de minha ascensão. Meus pés tocaram o solo novamente. Me encontrava agora sob as ruínas do laboratório. O cheiro dos químicos ainda era perceptível. Andei um pouco pelo local tentando me lembrar de como havia chegado lá e quem eu era. Enquanto eu andava vi alguns corpos espalhados pelo chão, poças de sangue. Não sentia culpa. Sentia que minha missão estava completa.

Tropecei em um objeto grande que depois percebi ser uma placa. “Fox Industries” era o que estava escrito. Um flashback da placa passou pela minha mente, mas nenhum rosto ou nome, nem mesmo entonação de voz. Precisava de algo mais. Precisava de um sinal.

Andei por todo o lugar. Chequei em todos os cantos. Nada. Nem mesmo uma pista. Me sentei sob uma parede caída e então percebi que estava nu. Percebi que meus cabelos estavam maiores do que eu lembrava que eram e que agora eu tinha uma barba. Não havia reparado em minha aparência durante todo aquele tempo em que estive fugindo. Olhei uma mecha do meu cabelo. Não lembrava meu nome. Olhei meu corpo. Estava fora de forma e um pouco atrofiado. Devia ter ficado muito tempo sem me exercitar. Então caí em mim.

Eu não estava sentindo.

Eu não sabia o que sentir.

Eu estava sozinho novamente.

Eu, a floresta, os escombros e uma sombra de quem eu fui.

Senti frio pela primeira vez naquele dia. Uma dor invadiu meu peito. A dor se refletiu em lágrimas que escorriam dos meus olhos contra a minha vontade. Eu estava só. Não ali naquele floresta. Eu estava simplesmente só. Não sabia por onde começar. Não havia alguém em quem eu confiasse ali, nem mesmo havia alguém. Tudo ocorrera tão depressa e apenas agora eu assimilava. Olhei em volta tentando ver se havia ainda algum sobrevivente. Tentei captar o palpitar dos corações, mas nada. A noite se aproximava. O céu começou a se escurecer. Eu ficaria indefeso na floresta. Minhas mãos tremiam. Me dei conta finalmente do que eu havia feito. Choque. Eu havia matado pessoas. Eu havia sobrevivido. Eu havia lançado energia. Homens bons não faziam isso. Humanos não faziam isso.

A pergunta inicial havia sido “Quem eu sou”, mas na verdade precisava descobrir “O que eu sou”. O que eu sou agora? No que fui transformado? Me levantei com a certeza de que faria de tudo para sobreviver àquela noite, mas não pude deixar de pensar sobre essa questão. O que eu sou?

Eu sou energia.

Eu sou um assassino.

Eu sou um mistério.

Eu sou radioativo.


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