À espera de Heloísa escrita por slytherina


Capítulo 5
O reverendo e o médico


Notas iniciais do capítulo

"Mas sei que uma dor assim pungente
Não há de ser inutilmente
A esperança
Dança na corda bamba de sombrinha
E em cada passo dessa linha
Pode se machucar"

O bêbado e a equilibrista por João Bosco



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Sétimo dia do desaparecimento de Heloísa.


Seu Aldo foi até o Reverendo para saber sua resposta.


– Como vai Senhor Aldo? - O religioso ergueu a mão para o homem consternado beijá-la.


– Não muito bem, reverendo. Poderia me dizer se conseguiu saber de minha filha?


– Sim. Tive notícias dela. E eu as transmitirei assim que trocarmos algumas palavras mais.


– Sim, reverendo. Estou ao seu dispor.


– Sente-se!


Após ambos estarem comodamente instalados em grandes e pesadas cadeiras antigas, o religioso começou sua preleção.


– Os jovens hoje em dia são muito impressionáveis. Eles são facilmente manipulados para seguirem ideologias estrangeiras, ou heróis de hollywood. Veja bem, os filhos devem ser criados para obedecerem aos pais, aos professores e aos dirigentes do país. Essa é uma hierarquia que sempre funcionou, desde os tempos de Nosso Senhor Jesus Cristo. Seguir rebeldes, revolucionários, ou guerrilheiros cubanos, é algo totalmente errado e subversivo. O caminho que esses comunistas oferecem é cheio de mortes, injustiça, degradação, penúria e destruição. Sua filha, Senhor Aldo, foi desencaminhada dos preceitos cristãos da virtude, da castidade, da obediência e do respeito às leis que regem nossa sociedade. Cabe ao senhor levar sua filha de volta ao bom caminho, com a ajuda da igreja católica e de professores de moral ilibada e legítimos patriotas deste país. Doravante, cuide bem de sua filha, senhor Aldo, para que ela não seja presa novamente.


– Sim, senhor, reverendo.


– Sua filha foi liberada. O senhor pode levá-la para casa. - O religioso tocou uma sineta dourada. Imediatamente, uma pesada porta de madeira de lei se abriu. Um outro religioso veio empurrando uma cadeira de rodas, com uma jovem sonolenta.


Heloísa parecia envelhecida. Ela exibia profundas olheiras, seus lábios estavam tão ressecados que descascavam. Seus cabelos estavam desgrenhados e pareciam empastados. Havia escoriações em sua face, braços e pernas. Ela não usava mais a roupa com que saíra de casa, mas um camisolão de hospital. Estava descalça e seus pés pareciam sujos. Ela não elevou os olhos nenhuma vez, e se não fosse pelo subir e descer de seu peito, senhor Aldo poderia jurar que sua filha estava morta.


Senhor Aldo não sentia ódio, nem revolta. Não sentia nem tristeza, nem dor. A única coisa que sentia no fundo do seu ser era ansiedade. Se ele pudesse, arrancaria sua filha daquela cadeira de rodas e a levaria nos braços, correndo, para bem longe daquilo tudo. Sim, sua filha estava viva, e ele se rejubilava, e dava graças a Deus, mas o senso de perigo e de ameaça era tão forte que ele quase poderia tocá-lo. Essa sensação de desgraça iminente quase o sufocava e o derrubava.


– Posso ... posso levar minha filha agora, reverendo?


– Pode, senhor Aldo. Espero vê-lo na minha igreja neste domingo. O senhor e sua filha.


– Sim, senhor. Obrigado reverendo.


Seu aldo se ajoelhou diante do religioso e lhe beijou a mão em sinal de humildade e respeito, e também gratidão. Apesar de tudo, aquele homem lhe devolvera sua filha, dentre todos os outros a quem pedira ajuda.


Ele saiu empurrando a cadeira de rodas até à rua, onde pegou um táxi e foi para casa. Ao chegar lá, telefonou para um médico amigo, o Moraes, e pediu que viesse até sua casa, pois sua filha estava doente. Sua esposa, miraculosamente, reencontrou a sanidade e não fazia outra coisa, a não ser abraçar e beijar a filha, além de chorar profusamente.


Após o exame de Heloísa, o médico chamou o pai em particular.


– Trarei remédios para medicar sua filha. Diga-me, quem fez isso a ela? Foram os militares?


– Sim. Eles devolveram minha filha esta manhã, após seis dias desaparecida.


– Entendo. Seu Aldo, sua filha foi torturada.


– Foi ...?


– Daqui a algum tempo, eu lhe mandarei um relatório do que eu examinei na sua filha. Por agora, ela precisa de remédios e vocês precisam sair do país.


– Eu ... eu sei. - Seu Aldo cambaleou.


– Quando eu retornar com os remédios, o senhor e sua família virão comigo. Eu os levarei para um local seguro. Agora, vocês estão visados pelas forças da repressão.


– O que?


– Os militares, senhor Aldo, os militares. Eles abrirão um dossiê em nome de sua família. Qualquer um de vocês poderá ser considerado subversivo, de agora em diante. Vocês não estão mais seguros aqui.


– Nós não fizemos nada de mal. Somente Heloísa foi desencaminhada, mas nós a controlaremos agora. Ela não andará mais em companhia de comunistas. Ela sairá da PUC. - Seu Aldo falou alterado e nervoso.


Moraes calou-se e ficou encarando-o. A seguir deu as costas e saiu para seu fusquinha. Voltou trinta minutos depois com remédios e frascos de soro. Dessa vez veio em uma kombi.


–Precisamos ir agora, senhor Aldo. Improvisei um leito de hospital na traseira da kombi, para Heloísa. O senhor está pronto? - O médico perguntou.


Seu Aldo mal tivera tempo de se recuperar dos acontecimentos daquele dia, e a única coisa que ele queria era ficar ao lado da filha e da esposa em sua casinha. Mesmo assim, ele sentia medo. E essa foi a força que o impulsionou.


– Estou.


Seu Aldo colocou alguns pertences e documentos em uma mala. Objetos de higiene em uma bolsa a tira-colo. Fez sua esposa trocar de roupa, e separou algumas roupas de sua esposa e sua filha em outra mala. Eles embarcaram na kombi e sua filha foi acomodada em uma maca na parte de trás do veículo. Moraes seguiu dirigindo a kombi, enquanto Seu Aldo dava uma última olhadela em sua casa, cujas prestações custara a pagar. Ele teve certeza que nunca mais voltaria para ali.


Pararam em várias estalagens e postos de gasolina para fazerem higiene e refeições. Heloísa foi medicada durante toda a viagem. Alguns dias depois chegaram em uma região distante, onde as pessoas falavam espanhol. Era o Chile de Allende. A família do médico já os esperava, pois haviam partido antes. Entraram clandestinamente no país e fizeram o que puderam para permanecer anônimos ali, mas não era seguro, por causa da proximidade com o Brasil, e por causa da vocação sulamericana de pender para o militarismo. Resolveram emigrar novamente. Seguiram até um prédio imponente, onde Heloísa foi carregada no colo por Moraes, e seu Aldo ficou sabendo que era a embaixada francesa no Chile. Eles pediram asilo político, o que após alguns dias lhes foi concedido, inclusive ao médico amigo e sua família.


Um ano depois todos já estavam instalados em Paris. Seu Aldo conseguiu emprego como bilheteiro e Dona Marilda permanecia em casa com sua filha Heloísa, que ainda estava em tratamento médico para superar o que havia lhe acontecido. Moraes e sua família também haviam conseguido emprego e eram assíduos da casa de Seu Aldo.


Um dia o médico entregou um envelope ao amigo.


– Este é o meu relatório do exame sumário que fiz em Heloísa no dia de sua libertação. Achei que o senhor deveria saber o que aconteceu com sua filha.


Seu Aldo recebeu o documento em silêncio e agradeceu ao outro homem com um movimento positivo da cabeça. Ele procurou um local onde pudesse ficar sozinho e em paz. Temia que ao ler aquele documento ele entrasse em choque e ficasse mentalmente perturbado, mas não saber a verdade era pior. Mesmo estando em segurança em outo país, o passado sempre poderia voltar a ameaçar a vida dos seus. Pensando assim ele abriu e leu o documento.

Fim


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Notas finais do capítulo

Fontes de pesquisa:
Wikipédia, diversos tópicos, mais para me situar na época, nomes de instituições, e o Rio de Janeiro em 1972.
mepr.org.br (movimento estudantil popular revolucionário), sobre torturas cometidas contra mulheres nos anos de chumbo.
memoria.bn.br (biblioteca nacional), principalmente partes do livro "Dos filhos deste solo" (Miranda e Tibúrcio) sobre a morte de Sonia de Moraes Angel.
comunistas.spruz.com, sobre mulheres mortas pelas forças da repressão.
blog "conversa afiada" de Paulo Henrique Amorim, sobre Dom Eugênio Salles,
Página 6 de 1º de dezembro de 1973 de "O globo" sobre morte de terrorista,
Blog "Marie Claire" de 23/09/13 por Mariana Sanches sobre mulheres sobreviventes de tortura.
Livro "A casa da vovó" (Godoy) sobre a mentalidade dos militares, informantes e delatores dos comunistas e terroristas.



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