À espera de Heloísa escrita por slytherina


Capítulo 4
Moedor de carne


Notas iniciais do capítulo

"Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega o destino pra lá"

Roda viva por Chico Buarque



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Há algum tempo Senhor Aldo ouvira coisas, rumores. O pessoal no escritório comentara na surdina, nos intervalos do trabalho. Eles falaram sobre a crueldade dos militares. Contaram estórias tão escabrosas e terríveis, que ele custara a acreditar que poderia ser realmente verdade.


Os agentes da lei e da ordem trabalhavam de mãos dadas com os militares. Qualquer preso comum poderia ser entregue aos milicos, caso houvesse a suspeita de ser um subversivo, um comunista, um terrorista. E depois disso, ninguém ouvia mais falar nesse preso. Eles desapareciam da face da terra, depois de sofrerem horrores nas mãos de carrascos. Demônios dos infernos vestidos de farda verde.


Ninguém se salvava. Nem os ricos, nem os pobres, nem os artistas da TV, nem os políticos do Congresso Nacional. Nem os padres, nem mesmo os próprios militares, caso algum deles manifestasse tendências comunistas. Os colegas mais impressionáveis e dados a fofocas inclusive diziam que nem estrangeiros, aleijados, doentes, velhos, crianças ou mulheres grávidas. Ninguém se salvava ou era poupado. Todos passavam pelo circo dos horrores, o moedor de carne que era a polícia militar.


Até a delegacia dos militares era difente, pior do que as demais. Ela tinha o nome pomposo de Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna. Era para lá que eles levavam os presos políticos, para interrogá-los. E de lá eles desapareciam. O que acontecia com essas pessoas? Esses prisioneiros, uma vez lá dentro, indefesos, sem terem a proteção da lei ou a assistência de um advogado?


Eram ... mortos. E seus corpos ocultados ou destruídos. Nunca mais seriam vistos.


Essas coisas terríveis sempre lhe pareceram tão longínquas. Era o tipo de coisa que nunca aconteceria consigo ou sua família, pois essas coisas só acontecem com bandidos, certo? Terroristas. Assassinos. Pessoas sem moral ou consciência. Essas pessoas fizeram por merecer. Nunca ele dispensara sequer um minuto do seu dia para pensar nas pessoas que lutavam contra o governo. Elas estavam erradas. E o governo certo. Certo?


Nada estava certo quando eles apanharam sua filha também. Seu Aldo recomeçou a chorar. Ele resolveu apelar para a ajuda de Deus.


– Reverendo, eu e minha esposa estamos destroçados. Se a dor da perda de um filho pudesse matar rapidamente, o Senhor estaria vendo agora um cadáver diante de si. Eu ... não tenho mais pelo que viver. - Senhor Aldo falou tristemente com um fio de voz e o semblante abatido.


– Esse é um pecado mortal, meu filho. O homem não pode dispor de sua vida. Somente Deus tem essa prerrogativa. - O veho padre o repreendeu.


– Pecado mortal? Certamente que o inferno tem um lugar reservado para os militares que prenderam minha filha. Me disseram que os jovens politizados e engajados na luta armada são assassinados sistematicamente. Se somente Deus pode dispor da vida humana, que direito os militares têm de tirarem essa mesma vida?


– Esse é um caminho perigoso, meu filho. A instituição que governa esse país é muito severa. Eles não admitem que haja contestação de seus métodos e de seus atos. Ninguém, eu repito, ninguém está a salvo ou imune. Até mesmo no seio da igreja católica eles fizeram prisões. Não podemos contra eles, Senhor Aldo. A melhor conduta é aprendermos a conviver com eles.


Seu Aldo abaixou a cabeça e a balançou negativamente.


– Se ... se minha filha estiver morta ... reverendo, eu não terei mais nenhum interesse em continuar convivendo com essa ... instituição de assassinos. - Seu Aldo começou a tremer de emoção.


O reverendo colocou as duas mãos nos ombros do homem inconsolável à sua frente. Fechou os olhos e começou a rezar baixinho. Seu Aldo esperou que isso o consolasse, mas a resignação não veio, apenas mais revolta. Arregalou os olhos para o padre, e pensou em agredi-lo, mas desistiu desse comportamento, pois ele sabia que isso não traria sua filha de volta.


– Eu vou ver o que posso fazer, Senhor Aldo. Dê-me dois dias para tentar localizar sua filha, aí então falaremos. - O padre apresentou a mão para ser beijada, segundo o costume católico e se retirou.


6º dia do desaparecimento de Heloísa. Seu Aldo achou melhor não contar à esposa sobre a confirmação da prisão de sua filha. Ele esperou pacientemente que Léia entrasse em contato, mas isso não ocorreu. O prazo que o padre lhe pediu, para que intercedesse por sua filha, ainda estava por vencer. Ele resolveu então pedir ajuda novamente a seu patrão.


Ao chegar no local de trabalho, ele procurou logo por seu chefe em sua sala.


– Senhor Guilherme, o Senhor falou com os militares sobre ... - Seu Aldo interrompeu o que ia perguntar depois do que viu.


Senhor Guilherme tinha um olho roxo. Seu queixo estava inchado e ele andava com dificuldade.


– O que aconteceu Senhor Guilherme?


– Oh, como vai, Aldo? Isso? Essa foi a resposta que eu tive após perguntar por sua filha. Eles consideraram que atos comunicavam mais do que palavras.


– Eu sinto muito. Isso foi minha culpa.


– Não, Aldo. Você agiu como um pai zeloso. E eu lamento pela menina. Infelizmente, sem querer eu coloquei um alvo sobre mim e minha família também. Vou colocar a empresa à venda e me mudarei para os Estados Unidos. Você entende, isso é pela segurança de meus filhos. Você e sua esposa poderão vir com a gente, se quiserem.


– Eu ... hah, eu não poderia ir sem minha menina, mas obrigado assim mesmo, Senhor Guilherme. Sou eternamente grato pelo que fez por mim e minha filha. Boa viagem!


Seu Aldo se afastou lentamente, cabisbaixo. Fechou a porta devagarinho e foi embora para nunca mais voltar. Estava agora desempregado.


Ao chegar em casa, sua esposa estava sentada na sala, assistindo TV. À primeira vista parecia calma, mas a uma inspeção apurada, ele percebeu a camisola de dormir suja e o cabelo desgrenhado. A casa estava desorganizada e a pia cheia de louça suja. Era como se sua esposa não se importasse mais com nada.


– Venha ver TV comigo, Aldo. Heloísa já deve estar chegando da faculdade. - Dona Marilda sorriu morna para o marido e então voltou os olhos sonhadores para a televisão. Ela não estava mais ali, mas num outro universo tranquilo e feliz. E com Heloísa a seu lado. Seu Aldo sentou-se junto a esposa e a abraçou. Ela encostou a cabeça em seu peito, e ele lhe acariciou os cabelos, enquanto as lágrimas lhe escorriam pela face.


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