Espiral escrita por Gaia


Capítulo 2
E as cores




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I

Quando já sabíamos multiplicar e tínhamos aulas diferentes de educação física, as vozes dos meninos começaram a mudar e eu não perdia a chance de pegar no pé deles toda vez que desafinavam. Sasuke me mandava calar a boca e Naruto apenas ficava extremamente ofendido. Mas eles se vingavam quando eu tinha que usar uniforme esportivo ao criticar os caroços que estavam crescendo no meu peito e as minhas coxas, que estavam ficando gordas.


Cedo ou tarde, éramos pré-adolescentes em puberdade, todos espinhentos e com pensamentos confusos sobre o que era todos aqueles pelos e sentimentos. Os garotos começaram a me olhar diferente e eu virei uma mulherzinha, como minha mãe me explicou.

Ela também explicou que eu teria sentimentos diferentes pelos meninos e que devia aprender a me maquiar, me depilar e comprar roupas que combinassem mais com o meu corpo. Quando eu fiz 14 anos, ela me deu um sutiã que era obviamente largo demais para mim e que eu odiava usar.

Eu não entendia a importância daquilo tudo, eu ainda gostava de fazer as mesmas coisas de sempre. Jogava video-games, brincava de esconde-esconde e ainda encontrava Naruto e Sasuke atrás da árvore perto do parquinho para conversar sobre coisas que ninguém mais sabia e jogar baralho.

As raízes já não nos servia de esconderijo, mas eram confortáveis para encostar, tinha se tornado um ótimo lugar para ler e fazer trabalhos da escola. Eu sabia que muitos alunos queriam sentar-se ali no tempo livre, mas ninguém ousava, porque era tão nosso como a nossa própria casa e as pessoas tinha um entendimento silencioso sobre isso.

Conforme os anos passaram, Sasuke e Naruto se tornaram extremamente competitivos um com o outro e pareciam querer se superar em todos os aspectos.

Sasuke, que ainda era extremamente inteligente e tirava notas excepcionais, tinha se tornado absolutamente popular com as meninas, enquanto Naruto, que continuava indo mal nos estudos, não tinha tanto sucesso. Eu percebia que a atenção que Sasuke recebia incomodava muito seu melhor amigo.

Mas o que Naruto não notava era que ele era muito mais extrovertido e tinha muitos amigos, enquanto Sasuke era mais fechado e andava praticamente só com a gente. Por isso, existiam muitos boatos sobre a sua pessoa, como se ele fosse um mistério ambulante. Inventavam milhares de histórias e isso acabou criando uma aura de “cara popular” em volta dele que era completamente falsa. Na verdade, ele era apenas introvertido e não gostava de ficar falando da sua vida, não existia nada de excepcional em seu caráter e eu sabia disso.

Muitas meninas me odiavam por ser a única amiga mulher de Sasuke, mas eu não ligava, eu não entendia o seu apelo, mesmo sabendo que ele era um dos mais bonitos da escola. Eu o via praticamente todos os dias desde que éramos crianças, então não enxergava tudo isso que elas viam.

Eu lembro como se fosse ontem do dia em que eu finalmente entendi o sentimento de todas aquelas meninas que me encaravam com lasers nos olhares por estar andando ao lado de Sasuke e todas as vezes que elas suspiravam ao vê-lo nas aulas de educação física.

Não foi em um dia especial, quando ele estava saindo de uma piscina ou alguma coisa assim. Ou quando ele fez alguma coisa extremamente fofa pra mim. Não, foi em um dia qualquer de outono, quando estávamos matando aula de matemática na nossa árvore, jogando baralho.

— Sakura, o que raios é isso que você está usando? – Naruto apontou para os meus peitos, rindo. Meu sutiã marcava minha blusa e era possível ver a estampa dele claramente por trás do branco.

— Cala a boca! – berrei de volta, me cobrindo com os braços.

— Você não precisa usar isso, não tem nada ai! – ele insistiu, enquanto eu ficava vermelha. Não sei a partir de que ponto eu me importava com Naruto olhando para os meus peitos, mas tinha se tornado mais frequente e mais incômodo.

— Pelo menos eu não tenho pelo na cara! – retruquei, apontando para os pequenos pelos que estavam crescendo no bigode do meu amigo. Eram muito loiros e quase imperceptíveis, mas eu precisava me defender de alguma forma.

— Não falei por mal! Olhe a Ino e a Hinata, por exemplo, elas sim podem usar....

Mas antes dele completar a frase, eu já tinha lhe socado no braço. Naruto era inconveniente, mas nada do que ele tinha falado era mentira, minhas amigas eram muito mais avantajadas do que eu. E elas pareciam ter uma noção muito maior do que era o universo feminino. Ino vivia me dizendo para fazer minhas sobrancelhas ou usar um pouco de maquiagem para ressaltar meus olhos verdes.

Eu simplesmente não entendia como tirar pelos do meu rosto e colocar tinta na minha cara ia fazer eu me sentir melhor ou mais bonita. Eu não me importava com isso. “Assim os garotos nunca vão te notar!”, minha amiga insistia. Mas pra que eu iria querer que os garotos me notassem? Eles eram completamente idiotas.

— Naruto, você deu as cartas errado de novo, babaca. – Sasuke falou, mostrando o baralho e eu ri com a ironia dos meus pensamentos anteriores – Me dá aqui.

Antes de dar as cartas, Sasuke enrolou a manga de seu uniforme para cima e eu encarei o seu ante braço com uma curiosidade nova. Nunca tinha o visto desse jeito, enquanto se movia e retraia, mostrando os pequenos músculos que se formavam em seu bíceps. Subi meu olhar para seus olhos e os vi se mexendo rapidamente enquanto dava as cartas com destreza, o jeito que seus olhos se mexiam eram fascinante e sua boca entre aberta me pareceu extremamente atrativa por algum motivo.

Eu não entendia exatamente o que estava acontecendo e nem porque eu não conseguia parar de encará-lo. Por que eu nunca tinha o visto daquele jeito? O conhecia faz anos e mesmo assim, nunca notei a curva de sua boca ou a definição de seu maxilar.

Anos e anos e como eu nunca tinha notado a beleza de seus olhos?

Naquele dia, quando Sasuke me encarou de volta, eu desejei estar usando maquiagem.


II

No colegial, eu tive as minhas primeiras experiências. Depois de finalmente entender o que as meninas queriam dizer com tudo que eu achava desnecessário antes, eu passei a andar um pouco mais com elas do com meus dois amigos. Ino tornou-se minha melhor amiga e me ensinou a conviver no universo feminino de uma forma que eu nunca conseguiria sozinha.

— Eu não acredito que você é amiga de infância de Sasuke Uchiha e nunca pegou ele. – ela dizia quase todo dia. A verdade é que eu não tinha esses sentimentos por Sasuke. Eu sabia que ele era bonito e eu sentia atração por ele, mas não iria estragar nossa amizade por uma paixonite de momento. Mas não importava o quanto eu falasse isso para Ino, ela simplesmente não entendia.

— Ele não é tudo isso que vocês acham... – eu respondia normalmente. E era verdade. Todas tratavam ele como se ele fosse algum deus que desceu a terra, só porque ele era educado e inteligente, mas na verdade eu sabia que ele não podia se importar menos com essas meninas que davam em cima dele.

— Eu não aguentou mais essas meninas frescas que ficam querendo dar pra mim. – ele disse um dia e eu ri, pensando em todas as vezes que Ino falou que tentou investir nele. – Eu juro que algum dia eu vou falar a verdade para elas. Dai você não vai poder me culpar por fazê-las chorar.

— Isso é muito cruel. – retruquei. – Não faz isso, elas tem sentimentos e realmente querem dar pra você, sabe?

Rimos e Naruto bufou inconformado.

— Como você pode ter todas essas meninas querendo transar com você e você não pegar uma? Se eu tivesse essa sua sorte...!

Quis dizer que uma delas, a Hinata, era realmente apaixonada por ele e iria transar com ele na primeira oportunidade. Mas eu sabia que pra ela era muito mais do que isso, que ela gostava mesmo dele, então preferi ficar quieta. Não queria fazer Naruto magoa-la ao ficar com ela e depois largar.

— Quem disse que eu não pego ninguém? – Sasuke perguntou com uma expressão de provocação. Eu sabia que ele estava brincando, mas uma parte de mim não deixou de pensar que talvez ele transasse bastante com várias meninas. Aquilo teve um efeito que eu não esperava, muito mais intenso do que eu pensava que seria.

— Que?! Quem?! – Naruto parecia extasiado e ao mesmo tempo muito bravo por não saber de nada. Sasuke riu e o amigo deu-lhe um soco no braço, enquanto eu só conseguia pensar com quais meninas Sasuke tinha ficado.

Eu já tinha beijado homens também, mas era virgem e nunca tinha amado ninguém de verdade. Foi com Sasuke que eu bebi, fumei e senti o que me pareceu amor pela primeira vez.

Costumávamos ir para baixo da arquibancada para matar aula quando estava chovendo ou tínhamos um horário apertado. Naruto tinha viajado com a sua família e faltou naquela semana.

— Olha o que eu trouxe. – ele tirou um cigarro de maconha da mochila e eu sorri. Eu confiava em Sasuke, se ele achava que era bom, eu sabia que estava tudo bem em experimentar. Eu era jovem e queria saber as sensações do mundo, conhecer e ter todo tipo de experiência que pudesse ter.

Ele acendeu, tragou e passou pra mim. Tentei, em vão, fazer como ele, mas tossi, fazendo-o rir.

— Você tem que inalar primeiro, depois soltar. – ele disse e eu tentei de novo, dessa vez conseguindo. A sensação foi boa, me senti leve, relaxada, com nenhuma preocupação e sem nenhuma noção de responsabilidade.

Ficamos um bom tempo fumando e conversando sobre coisas aleatórias da vida e eu pensei que talvez aquilo não fosse tão bom se ele não estivesse comigo.

Minha experiência com bebida foi diferente. Eu comecei a beber quando fomos a uma festa na casa da Ino, Sasuke e Naruto insistiram para que fizéssemos um esquenta antes e nos entupimos de vodka. Quando chegamos na casa dela, já estávamos muito bêbados.

O que eu lembro daquela festa é vomitar no banheiro dela, enquanto Sasuke segurava meu cabelo e Naruto desmaiava na sala. Ele quase teve que ir pro hospital naquele dia e eu nunca vi Sasuke tão assustado quanto quando ele viu o Naruto inconsciente no chão.

Depois daquela festa, maneiramos bastante com as bebidas e aprendemos a beber moderadamente em conjunto, em um acordo silencioso de que nunca mais íamos nos preocupar com futuros PTs.

No segundo ano, Naruto começou a sair com Hinata, não por intervenção minha. Aparentemente ele estava realmente a levando a sério e eu percebi que ele começou a gostar bastante dela também. Isso resultou em uma ausência dolorosa dele em nossos encontros. Apesar de gostar de sair só com Sasuke, Naruto tinha uma energia contagiante que nos mantinha juntos e fazia tudo ficar mais leve.

Estávamos nas raízes em um fim de tarde, quando Sasuke perguntou:

— Por que você não está namorando, Sakura?

O encarei surpresa, nós normalmente não falávamos sobre relacionamentos. Eu não sabia responder aquela pergunta. Eu tinha pretendentes e chances de ter um namorado se eu quisesse, mas alguma coisa parecia não estar certa, alguma coisa dentro de mim me impedia.

— Não sei. – respondi, sincera. Não sabia mentir para ele, nunca soube. – E você?

Ele deu de ombros.

— Não sei também. – disse e eu sorri. Não sabia o que eu estava sentindo, mas se ele estivesse sentindo a mesma coisa, era bom saber que tinha alguém que me entendia.

Nós nos encaramos por um tempo, pensando no que exatamente era aquele novo clima que tinha se estabelecido e porque parecíamos tão confortáveis com ele. Era estranho porque eu já tinha pensado em beijá-lo e eu me sentia atraída por ele, mas ao mesmo tempo tínhamos toda essa carga de história na nossa amizade que nos impedia de passar a linha.

Ficamos naquele imaginário, presos no cenário do “e se” por uns bons minutos, antes de eu quebrar o contato visual e falar que precisávamos começar nosso trabalho de álgebra. Ele concordou desconfortável e começamos, parando de pensar em relacionamentos.

Eu não sabia exatamente o que eu estava sentindo toda vez que ele se aproximava para me explicar alguma coisa, mas sabia que nunca tinha me sentido daquela forma por ninguém.

III

Se eu soubesse que aquele ano novo iria ser do jeito que foi, talvez eu me esforçasse mais para criar memórias boas, tirasse mais fotos, bebesse mais. Talvez eu risse mais e os fizesse rir mais. Se eu soubesse, eu não deixaria Naruto passar tanto tempo com Hinata e faria Sasuke se esforçar menos nos estudos para matar mais aula.

Mas eu nunca poderia ter imaginado. Porque apesar de termos imaginação infinita, nosso poder de auto defesa e negação ainda é maior. Apesar de ser imaginável, era impossível que aquilo fosse acontecer, aquele cenário simplesmente não passava pela minha mente.

Como se fosse uma peça do destino, foi no ano novo que tudo desandou.

Estávamos em uma praia com os nossos amigos da escola, era o nosso último ano e aquela viagem era como se fosse a nossa despedida. Iríamos fazer promessas um para os outros de não sumir, mentir que manteríamos contato e lembrar dos melhores momentos uns com os outros. Saber disso era um acordo mútuo para nos fazer nos sentir melhor ao deixar todo aquele passado para trás.

Mas eu não conseguia deixar de ficar triste por passar por aquela fase. Eu sabia que nada seria o mesmo, que eu não veria aquelas pessoas todos os dias e que eu teria responsabilidades e contas para pagar. Que nenhum pôr-do-sol seria tão lindo quanto os que assistíamos ao matar aula ou que nenhuma bebida seria tão proibida quanto as que tomávamos no intervalo. Tudo perderia sua magia e nada seria igual.

No fim de tarde do último dia do ano, Naruto estava sentado na areia, suas pernas enroscando Hinata, que estava encostada nele com os olhos fechados. Eles estavam namorando há um tempo e era maravilhoso ver que o meu amigo correspondia os sentimentos puros de alguém como Hinata.

Ino estava se agarrando com algum cara que ela tinha conhecido naquela tarde, me deixando sozinha na areia da praia, com os nossos outros colegas de classe que eu esqueceria os nomes em menos de cinco anos. Sasuke sentou-se do meu lado e colocou um braço no meu ombro, me puxando para perto de si.

Senti o odor forte de álcool e sorri para ele, feliz por pelo menos um de nós estar realmente se divertindo.

— Por que você está tão triste? É ano novo! – perguntou, alto demais. Não quis enche-lo com a minha melancolia, então apenas dei de ombros. – Não vou deixar você ficar triste! Vem comigo!

Ele tentou me puxar ao se levantar, mas fui eu que acabei o ajudando, já que ele estava cambaleando com uma garrafa em mãos. Sasuke me levou para um lugar afastado e me disse para escalar algumas pedras com ele, prometendo que ia valer a pena.

Com extra cuidado, o ajudei a escalar e fizemos uma pequena trilha juntos, até chegarmos em uma pequena praia deserta.

— Não contei para mais ninguém sobre essa praia, então não vai sair espalhando! – ele disse, mas eu tinha certeza que os donos da casa que estávamos alugando estavam bem cientes daquele lugar. Nos aconchegamos na areia e vimos o sol se por em silêncio, Sasuke já estava quase sóbrio e eu estava sentindo meus olhos lacrimejarem com toda a nostalgia que estava batendo ao ouvir as risadas e berros vindo do outro lado da praia.

— Nada vai ser igual, não é? – choraminguei, encarando-o.

Ao notar meu rosto choroso, ele se sobressaiu e me abraçou de lado.

— Não, vai ser melhor. – respondeu, mas eu não acreditei. Como seria melhor? Eu não os veria todos os dias. – Eu, você e o idiota vamos para a mesma faculdade. Vamos alugar um lugar só nosso e será como sempre.

Acenei com a cabeça, querendo acreditar que a vida podia ser tão perfeita, quando comecei a ouvir os fogos que antecediam a contagem regressiva para o ano novo. Levantei-me em um salto, puxando Sasuke comigo.

— Vamos! Temos que ir comemorar!

Mas ele parecia hesitar.

— Ah... – reclamou. – Vamos ficar mais um pouco.

O encarei surpresa, mas não relutei. Era Sasuke afinal, meu melhor amigo de infância, eu não me sentiria melhor com nenhuma outra pessoa do mundo. Fizemos a contagem para nós mesmos e vimos os fogos de cima das pedras, criando um refúgio com a minha canga.

No som da meia noite, ouvimos berros, risadas e mais fogos. Pensei em como todos estavam felizes do outro lado e desejei estar lá. Mas então, encarei o perfil de Sasuke e vi seu meio sorriso em seu rosto perfeito e seus olhos refletindo as luzes dos fogos e mudei de ideia imediatamente. Ali era exatamente onde eu queria estar.

Ele virou-se para me encarar e disse:

— Feliz ano novo, Sakura Haruno.

— Feliz ano novo, Sasuke Uchiha.

Sorrimos um para o outro e continuamos abraçados. Então, um ímpeto de coragem tomou conta das minhas ações e eu pensei que eu poderia fazer o que eu quisesse aquela hora, que eu era invencível. Era um ano completamente novo, tudo iria mudar e eu não tinha nada a perder. Me deixando levar por essa nova sensação de estranho poder, eu beijei Sasuke.

Eu o beijei com vontade, com todos os “e se” acumulados e toda a atração que eu sentia por ele desde o ensino fundamental, mas nunca admiti para mim mesma. E por um instante, tudo estava perfeito. Ele retribuiu e nos beijamos como se fosse o último beijo das nossas vidas.

E foi. Por aqueles longos minutos que se passaram, foi. Éramos aquele momento e nada mais, tudo o que importava era o nosso calor se espalhando por todo o meu corpo e os nosso lábios movimentando-se com destreza e ardor. Nada mais importava, o futuro não existia e o passado cheio de luxuria estava nos alcançando e agradecendo.

E, novamente, se eu soubesse o que aconteceria, eu nunca teria parado de beijá-lo. Eu não o deixaria atender o celular, nós ainda estaríamos naquela pedra, provando o nosso amor sem palavras.

Mas quando o celular tocou, eu disse que era melhor ele atender, porque talvez fosse o seu irmão querendo desejar-lhe feliz ano novo. Quando lembro disso, a primeira coisa que me vem em mente é quão perto eu estava de sua mão. O quão facilmente eu podia ter evitado aquela noticia de chegar.

A segunda coisa é a expressão de Sasuke, que me assombra toda noite antes de dormir. Ele não precisou dizer nada para eu perceber que alguma coisa estava errada. Depois disso, pareceu que tudo andou em câmera lenta, ele levantando-se inquieto, enquanto eu perguntava em vão o que tinha acontecido.

Ele correndo para a praia e eu indo atrás dele, com uma sensação terrível de pavor que eu nunca tinha sentido antes. Como a sua expressão, seus gritos ainda ecoam no meu ouvido como se nunca tivessem parado. Eu o vi cair de joelhos na areia e eu não conseguia ouvir, nem ver mais nada, apenas aquela pessoa completamente em pânico na minha frente, se fechando em seu mundo de dor.

Tudo aconteceu muito rápido depois disso. Eu vi Naruto correr na nossa direção e fazer milhares de perguntas não respondidas, vi olhos curiosos tentando entender o que estava acontecendo e desconhecidos cochichando.

De repente, me vi naquele gira-gira novamente. E tudo estava rodando, as cores estavam se misturando, o vento que batia no meu rosto me fazia lacrimejar e os gritos ainda eram histéricos. E eu estava tentando agarrar desesperadamente a vida real, sentindo minhas mãos escorregarem cada vez mais, enquanto encarava as faces na minha frente que dessa vez não estavam sorridentes.

Tudo rodava, rodava e rodava.

Pouco a pouco, voltei ao chão e o que sobrou foram o reflexo de três crianças, que choravam alto e acreditavam que o mundo já não era tão colorido e alegre como os fizeram acreditar no passado.

IV

Aquele dia foi quando Sasuke se perdeu. De mim, de Naruto, dele mesmo. Ele era um reflexo de sua própria imagem, um fantasma de sua essência e já não sabíamos lidar com o que ele tinha se tornado. Apenas uma existência vazia e sem cor.

Tivemos que convencê-lo a ir no enterro e ele só acabou indo porque Naruto deu-lhe um soco no rosto, o que foi uma das coisas mais assustadoras que eu já tive que presenciar.

Eram três caixões e três lápides diferentes. Mikoto, Fugaku e Itachi Uchiha. Toda a família que restava de Sasuke agora estava embaixo daquela terra, enterrados naquele lugar que não significava nada, inalcançáveis e incomunicáveis.

Eu e Naruto choramos muito e prestamos nossas condolências, dizendo algumas poucas palavras, lembrando do que conhecíamos dos pais de Sasuke. De Itachi, não podíamos falar muito, não o vimos muito e ele quase nunca estava em casa quando íamos visitar os Uchiha.

Sasuke permaneceu imóvel durante todo o evento. Não prestou nenhum depoimento, não chorou, nem falou com ninguém e quando tudo acabou, virou-se e foi embora, sem cumprimentar ninguém. Lembro de ver suas costas se afastando e pensar que a distância não era apenas física, eu o sentia cada vez mais longe, como se uma barreira tivesse sido criada entre nós, uma que eu nunca conseguiria quebrar.

— Deixei-o ir. – Naruto disse, quando eu me movi para segui-lo. – Temos que segurar as pontas aqui. E acho que ele precisa ficar sozinho.

— Ele não tem para onde ir, Naruto. – murmurei, segurando meus soluços, mas fiquei e fomos os anfitriões por algumas horas junto com os nossos pais.

— Foi um incêndio terrível. – ouvi por trás. – Um alívio que pelo menos o caçula não estava em casa naquela noite. Ainda mais sabendo que o mais velho se matou ao ver os pais mortos... Uma verdadeira tragédia.

Meu estômago embrulhou e eu quis vomitar. Não conseguia ficar mais um minuto ali ouvindo aquelas pessoas fingindo que realmente se importavam com Sasuke e sua família. Encarei Naruto com horror e vi que ele estava se sentindo da mesma forma.

— Vamos sair daqui, por favor. – sugeri e ele acenou com a cabeça. Nos despedimos de nossos pais e saímos andando sem rumo, sabendo que qualquer lugar era melhor que ali.

— Por que Jiraya não veio? - perguntei, me referindo ao padrinho do Naruto, tentando puxar um assunto inofensivo e menos enlouquecedor.

— Ele está fora do país fazendo alguma pesquisa pro livro idiota dele. – ele respondeu com amargura. Eu não sorri, não conseguia fingir que tudo não estava desmoronando.

Ficamos em silêncio e nos vimos indo inconscientemente para as raízes da nossa antiga escola, aquele lugar tão familiar que nos parecia tão oportuno naquele momento. Não sei por quanto tempo andamos ou qual foi a distância que percorremos, mas quando vimos a árvore, a luz do sol já estava fraca.

Eu me sentei e coloquei a cabeça entre os joelhos, tentando criar uma barreira entre mim e o mundo. Pensar tinha se tornado um esforço muito grande.

— Sakura... – Naruto murmurou com a voz falha. – Sasuke não chorou.

Ergui a cabeça apenas o suficiente para conseguir os olhos azuis marejados do meu amigo.

— Eu o conheço. Ele vai guardar tudo até o ponto de quebrar. – acenei com a cabeça. Eu sabia que ele era assim também. – E quando ele ceder, nós temos que estar lá por ele, promete?

Fiz que sim com a cabeça, não querendo falar nada, porque sabia que ia chorar se começasse.

— Não, é sério. – insistiu. – Isso pode durar anos. Mesmo que estivermos em lugares diferentes, temos que prometer que vamos ser fortes por ele quando tudo explodir.

Encarei seu olhar sério com apreensão, sabendo que seriedade era uma característica rara em Naruto.

— Eu prometo. – jurei, como se finalmente tivesse entendido o sentido de uma promessa e o que significava de verdade.

Então ficamos sentados com a cabeça baixa, apenas ouvindo o vento e o barulho das árvores, que continuam existindo imponentes, independente da nossa miséria. Naquela hora, eu me perguntava como Sasuke estava e como ele iria superar aquilo. Me perguntava como eu poderia ajudar e como encararíamos isso juntos, como Naruto iria reagir e como isso tudo ia afetar nossos futuro.

Foquei em sentimentos e emoções, em probabilidades e no futuro. Lembrando-me constantemente que existia um novo órfão no mundo, que procurava um lugar para voltar e não tinha.

Pensando na solidão, agarrei a minha promessa como dívida e lembrei-me dela todos os dias da minha vida, sabendo que algum dia, não importa o quanto demorasse, eu teria que cumpri-la.


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Notas finais do capítulo

Feliz feriado!! Como foi o de vocês?
Cap novo, que eu deveria ter postado na sexta, mas acabei indo viajar. Enfim, antes tarde do que nunca! ESpero que tenham gostado!!

Beijocas :*