Hunter - A caçada começou escrita por Julia Prado


Capítulo 9
Histórias de amor e uma floresta assassina


Notas iniciais do capítulo

Nos falamos lá embaixo ;*



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/641320/chapter/9

Eu estava um pouco fora de sintonia. As coisas aconteciam ao meu redor e eu nem reparava. Era como se um borrão passasse por mim toda hora. Havia muitos rostos ali, muitos olhares curiosos que eu nem importava em me incomodar. A história do homem no rio já parecia distante para mim, costumava me assombrar antes de dormir, mas durante o dia eu tinha muita coisa na cabeça para poder pensar sobre ele. Eu tinha muito Jacob na cabeça. Era quase surreal. Não havia nada declarado abertamente, nem ele e nem eu. Mas havia algo. E eu não me senti mal por isso.

O mais estranho era que eu ainda sentia o mistério rondando cada um dos quileutes quando se aproximavam de mim. Já não conseguia ver Collin e Brady com os mesmos olhos inocentes de antes. Eles sabiam de algo que eu não sabia, algo que eu estava metida, mas que eles não eram permitidos a me contar. Então eu desconfiava de todos que falavam que vinham da reserva. Desconfiava da forma como me olhavam, como falavam e como agiam. Não estava sendo fácil conciliar esses sentimentos, o de amizade e alegria com Collin, Brady; a intensidade com Jacob Black; e o fato de todos eles estarem mentindo todos os dias.

A mentira parecia quase palpável. Eu só precisava esticar a mão para o lugar certo.

Sei que assim que cheguei em La Push eu prometi a mim mesma não criar raízes, seguir com a minha vida em uma boa faculdade, de preferência em um lugar bem distante dos meus pais e suas escolhas de vida estranhas. Eram dois opostos, meu pai aqui em uma simples cidade, vivendo uma vida simples e sem ambições. E então tinha minha mãe, em um lugar ensolarado com um marido rico demais para seu próprio bem, vivendo do bom e do melhor. Ficar no meio disso não era sempre fácil. Eu tinha me virado bem durante os anos. Mas acho que subestimei La Push. Eu não acreditava que fosse encontrar muita coisa pelo o que ficar aqui, que seria uma estadia simples e sem preocupações. Mas não era exatamente isso.

E o Natal parecia estar se aproximando cada vez mais, um peso com a chegada do final do ano. O tempo em La Push só piorou depois disso, por mais que o sol saísse de vez em quando, era impossível andar sem as jaquetas de frio. Até tomar banho se tornou algo desconfortável, tirar a roupa em um ambiente no qual o aquecedor não era tão bom assim. Eu nunca passei o inverno aqui, mas já podia ver que não seria muito prazeroso. A fina chuva se tornava mais fria e mais cortante conforme o vento soprava nos cabelos, fazendo com que todos andassem de cabeça abaixada ao ir para o estacionamento.

Eu tinha conseguido acabar de ler alguns livros para o trabalho de história, mas ainda não tinha acabado o livreto. Para sem bem sincera, durante a semana eu nem li. A última história ainda corria como fogo por minhas veias, fazendo com que eu sonhasse com grandes lobos negros próximo a um cadáver no meio da floresta, quando eu me aproximava demais... Era o homem no rio. Estremeci enquanto esperava o professor de história passar na minha mesa para receber o meu trabalho final. Eu não precisei colocar nenhuma citação muito reveladora do livreto, sentia que estava traindo uma confiança depositada, mas o professor arregalou os olhos ao folhear o meu trabalho, olhando as referências.

– Você conseguiu. – ele disse em um assombro.

Não consegui evitar ao sorrir orgulhosa, tudo bem, não havia feito nada demais a não ser entrar em contato com fontes seguras e despreocupadas com toda essa besteira de segredos quileutes. O mérito era todo de Jacob, ao aceitar assinar, mas mesmo assim eu me senti orgulhosa. O professor analisou a assinatura uma série de vezes, franzindo o cenho enquanto se afastava com a autorização pregada no trabalho. Não entendi o motivo disso, mas minha nota já estava garantida, não havia mais preocupações.

A aula transcorreu com uma naturalidade quase sonolenta. Todos estavam animados por que era sexta-feira, mas isso ia só até um limite. Esse final de semana significava um peso para todos, não havia anúncios nos quadros e nem burburinho pelos corredores com planejamento de festas e saídas. Após esse final de semana as provas iriam começar. E então era só rezar e estudar muito. O clima na sala, por mais tranquilo que fosse, carregava uma tensão típica de pessoas que sabiam que não tinham feito um trabalho muito bom para História.

O sinal tocou e eu joguei minhas coisas dentro da bolsa, o professor estava recebendo os últimos trabalhos atrasados, sentado em sua mesa quando passei por ele.

– Srta. Evans, fique um minuto, por favor. – o professor pediu.

Dei de ombros para Austin e disse que ela poderia seguir para o estacionamento, lhe dando a chave do carro para não ficar esperando no frio. Ajeitei minha mochila nos ombros enquanto voltava e parava na frente da mesa do professor. Minha mente buscava por erros de estrutura do trabalho enquanto eu esperava ele levantar o rosto para mim, mas não me lembrei de nenhum. Eu tinha deixado no formato certo, com a letra certa e o conteúdo estava muito bom também, modéstia a parte.

– Algum problema com o meu trabalho? – perguntei.

– Não. Nenhum. – ele disse puxando o meu de uma pilha de tantos outros, levantando o rosto para me olhar. – Está muito bom, na verdade. Só gostaria de saber como conseguiu retirar o livro.

– Ah... – franzi o cenho. – A autorização está bem aí, professor. Pedi para Jacob Black assinar.

– Engraçado, quando pedi para ele, o senhor Black quase me deu um soco. – ele tinha um leve sorriso na voz quando disse isso, não parecendo ofendido por ter sido quase agredido. – Ele deve gostar muito de você.

Não gostei do comentário dele e nem achei pertinente para um professor. E não deixei passar.

– Acredito que não seja por isso que o sr. Black tenha autorizado a retirada do livro. Sendo um ato totalmente independente de motivos pessoais. – falei de forma fria. – E não entendo como isso poderia interessar ao senhor, professor. O resultado final está aí, qual é o problema da assinatura ser de Jacob Black?

O professor me olhou um pouco sobressaltado, mas se encostou na cadeira e cruzou as mãos no peito.

– Não quis ofender, desculpe Srta. Evans. O que eu quis dizer, e infelizmente não consegui concluir, é que talvez você tenha um parentesco quileute. – o professor voltou a encostar os cotovelos na mesa. – Entenda, Srta. Evans, é proibido, pelas leis de La Push, qualquer membro do conselho autorizar a retirada de um livro com conteúdo revelador. Membros do conselho não podem mudar essa lei.

Dei de ombros.

– Eu não sei se o senhor reparou, mas Jacob Black não parece seguir muito as leis daqui.

O professor riu, parecendo um pouco mais relaxado. Mas mesmo assim eu me mantive fria e indiferente, seu comentário anterior ainda me incomodando.

– Ah sim, a história da gangue que circula por La Push. – ele balançou a cabeça como se o fato de realmente ter uma gangue em La Push não fosse merecido de atenção. Eu sabia que tinha uma por que já tinha entrado na oficina “secreta” de Jacob Black, e se aquilo não era fruto de coisas erradas, então eu tinha um conceito entre certo e errado muito distorcido.

– Mesmo sendo quem é e do jeito que é, Jacob não poderia ter feito isso. Só quero dizer que, se você se interessou pelo o que leu, vá atrás de sua história. Talvez haja muito mais de onde isso saiu. Tenho a certeza de que você não colocou metade nesse trabalho do que leu no livro, e isso é de uma ética impressionante, eu mesmo não teria feito desse modo. Mas se você tem uma pequena porcentagem quileute correndo em suas veias, então você tem direito a saber o que acontece por aqui. – havia um tom em sua voz que dizia que ele sabia das minhas desconfianças.

Refleti se talvez, na minha escrita, isso não tenha ficado óbvio demais. Mas as palavras dele entraram em minha mente, corroendo meu cérebro. Eu estava envolvida na reserva, e ninguém parecia interessado em me contar nada. Talvez por que acreditassem que eu fosse de fora e por isso não poderia saber. Mas se eu não fosse, se tivesse alguém na minha árvore genealógica que foi quileute, então eu poderia saber de tudo isso.

– Tenha um ótimo final de semana, Srta. Evans. Nos vemos no dia da prova. – ele disse e voltou seus olhos para as pilhas de papeis para corrigir.

Assenti, mal notando que estava saindo da sala quando entrei no corredor. A ideia parecia acender algo na minha mente. E por um breve momento eu desfrutei a sensação de poder que teria se essa ideia se concretizasse. Eles teriam que me contar. Porém, um outro pensamento invadiu minha cabeça. O que eu faria se descobrisse que pertencia mais a La Push do que eu pensava? E o que eu faria se a verdade fosse forte demais para ser esquecida? E se ela modificasse quem eu era e como eu via o mundo? Havia verdades que faziam isso conosco, que nos mudavam mesmo que minimamente. E essa poderia ser uma delas.

No carro, Austin balançava sua perna nervosamente enquanto lia um livro de matemática. Ela estava se preparando para as provas com uma semana de antecedência, algo que eu deveria ter feito, mas estava com a cabeça tão turbulenta que não consegui fazer. Teria que me virar em vinte nesse final de semana para conseguir estudar para tudo. E, de sobra, ainda teria essa questão na minha mente para me manter distraída.

Chegamos em casa e fomos direto para a cozinha. Jane já estava preparando o almoço, tinha voltado mais cedo da escola nessa semana. Então nós duas começamos a estudar para inglês, nossa primeira prova. Líamos e relíamos nossas anotações, mais os resumos dos livros que lemos e um bocado de coisas extras que talvez nos ajudariam. Austin estava um pouco mais a frente do que eu, e um pouco mais concentrada também. Balancei a cabeça enquanto as linhas do meu caderno ficaram borradas, minha mente viajando para a conversa com o professor.

Eu precisava me concentrar, deixar aquilo para trás. Precisava passar com excelentes notas. Jane anunciou que iria servir o almoço, ou seja, teríamos que desocupar a mesa. Eu não queria parar de estudar, por isso me arranjei na sala mesmo, comendo ao mesmo tempo em que estudava. Não deu muito certo, o molho do macarrão respingava nas minhas folhas.

Nem vi a hora passando. Depois que coloquei na minha cabeça que teria que me concentrar, as coisas realmente começaram a fluir e eu me vi entendendo a matéria, tornando-a clara em minha mente. Eu vi John chegando do seu serviço, com o rosto cansado o casaco manchado de grandes gotas de chuva. Se havia algo que eu tinha aprendido a gostar nesse local era o cheiro de terra molhada e chuva. Traziam-me uma paz avassaladora.

Decidi dar um tempo nos estudos quando minhas costas começaram a doer e quando minha mão cansou. Retirei minhas coisas da mesa de centro, tendo dificuldade ao me levantar pelas pernas doloridas. Minha mente estava cheia de informações de inglês quando encontrei com Austin na cozinha, ajudando Jane a organizar a louça enquanto John estava sentado na cadeira confortavelmente comendo uma laranja. Rolei os olhos para isso. Ele não poderia ajudar? Tudo bem que estava cansado, mas Jane também estava. É claro que John não levantaria a bunda da cadeira para ajudar em tarefas domésticas, sexista como só ele poderia ser.

Não havia uma conversa propriamente na cozinha. John reclamava do tempo e como isso era ruim para os negócios enquanto comia, Jane escutava pacientemente, para logo em seguida se orgulhar de seus alunos do primário. Austin se mantinha quieta, sorrindo a cada cinco minutos por puro prazer de estar ali. E eu tinha parte da minha mente bem longe, dentro da bolsa que estava no meu quarto no segundo andar. Ali tinha o livreto.

Quando não tinha mais no que ajudar, subi para o quarto que dividia com Austin e me deitei na cama de qualquer jeito, olhando sem realmente ver o teto. Eu me dividia entre relembrar as anotações de inglês e pensar sobre a conversa com o professor, às vezes as duas coisas se misturavam. Puxei a mochila pela alça, espalhando algumas coisas no chão. Eu estava com muita preguiça para juntar tudo, então só puxei o livreto, me ajeitando melhor na cama.

Tirei o marca página ao abrir o livro. A letra era a mesma do que do conto anterior, então não deveria ter mudado de época ainda. Fiquei imaginando por quanto tempo esse livro passou de geração em geração para adicionar cada vez mais lendas e histórias. Era quase belo, se não fosse tão estranho.

Por que já não adicionar tudo de uma vez? Dava a impressão de que até hoje os quileutes adicionavam novas histórias.

“Há muitos relatos sobre o amor. Cada um tendo sua própria versão. Há o amor ciumento, que provoca apenas destruição; há o amor possessivo, que oprime quem ama e quem é amado; há também o amor carente, que sufoca e machuca. Mas nenhum desses amores é comparado ao nosso. Não quando há uma pessoa certa. Quando ela é encontrada, nada se pode comparar a isso.

A história do imprinting é muito difusa e misteriosa. Muitos pensam que foi o novo modo que a nova geração de Taha Aki encontrou para escolher suas parceiras. A escolha era sempre aquela que conseguia lidar com o fardo que era ter um companheiro lobo. Não era fácil, precisava de muito amor e muita paciência, de uma confiança no mundo espiritual que poucas pessoas da tribo possuíam, mesmo sendo quem eram.

No entanto, sabemos que o imprinting vem muito antes de Taha Aki. O imprinting é da época de Sahale Umi, a curandeira. Não foi intencional e sim uma recompensa do mundo espiritual por todo o trabalho e amor que Sahale teve para seu povo. O imprinting foi criado para honrar Sahale Umi.

A história do amor impossível de Sahale viaja entre as gerações, mas dificilmente é contada com veracidade. Muito se romantiza, perdendo a essência do que é o amor. O amor não é algo bonito, algo agradável e confortável. O amor é intenso, consumidor de emoções e razões. Deve ser tratado com cautela, pois sua intensidade modifica as pessoas. O amor é confronto e sacrifício.

Sahale Umi, logo após originar os primeiros espíritos guerreiros, demorou a sofrer novos ataques. Mas o fardo que carregavam por possuir uma magia muito forte ainda os acompanha, impossibilitando a estadia fixa em uma terra. Foi em uma dessas migrações que Sahale conheceu um integrante de outra tribo. Não se sabe o seu nome, sua tribo ou sua idade. O jovem foi mantido em segredo durante anos na vida de Sahale, sendo descoberto apenas quando a família exigiu o casamento da filha com um guerreiro quileute habilidoso. Vinha de uma tribo que passava por dificuldades durante os invernos do norte. A comida era escassa, não promovendo nenhuma vantagem para os quileutes, que já eram muito frágeis.

Mesmo em meio a tantas dores, Sahale nunca daria as costas para seu povo, sua família e suas regras. Mas também não se subjugaria a um casamento sem amor. Ficou decidido, então, que a curandeira não iria se casar nem com o guerreiro, nem com o forasteiro. O espírito de Sahale era livre demais para se submeter a qualquer um dos dois. E ela precisava dessa liberdade para continuar liderando seu povo, para continuar dando força e magia para os espíritos guerreiros. O povo quileute, a partir de então, não procurou se fixar na terra próxima ao amor de Sahale, para não causar dores.

A devoção de Sahale para seu povo lhe rendeu honrarias no mundo espiritual. Antes de morrer, o amor de Sahale foi dividido para seu povo e para o seu grande amor, contendo uma magia poderosa e eterna. Para aqueles que eram dignos do amor e dignos de carregá-los sem ferir ou prejudicar o amado, seria agraciado pelo imprinting. Teria a certeza que poucas pessoas tinham na vida: a do amor.

O imprinting não é um adjetivo para a o amor. Ele é a essência mais pura e simples dele. O imprinting não carrega ciumes, insegurança, medos e problemas. O imprinting carrega novos horizontes, novas emoções e uma felicidade incomparável. Uma felicidade que não é baseada no conforto de um amor seguro, mas sim na intensidade de uma paixão que transcende gerações. Um amor que não se acaba nessa vida, que continua no espírito, na alma.

O imprinting é, na mais simples colocação, eterno”.

Fiquei olhando para a página sem entender o motivo daquilo. Eu não entendia o motivo de ter a explicação sobre o amor transformada em lenda. Havia muitas lendas românticas nos mitos gregos e romanos, como nos célticos também. Mas a criação de uma lenda para explicar um tipo de amor único, que não era para todos, não era comum. Pelo menos não para mim. Eu não tinha lido nada, até agora, que me explicava o que era esse tipo de amor absoluto e tão puro.

Ao final do capítulo tinha a foto de um lobo comum, uivando para a lua em um penhasco. Era naquele mesmo formato de rabiscos onde a imagem se formava a partir dos espaços em branco. Era uma imagem muito linda, uma das poucas naquele livreto. Fiquei curiosa do motivo pelo lobo ser o comum e não aquele com dentes de adaga e olhar estranhamente racional.

Fechando o livreto e o guardando dentro da bolsa, puxei meu notebook e o liguei. Digitei na busca o significado do lobo em tribos indígenas norte-americanas. As páginas foram milhares, fui abrindo uma a uma. Até que parei. Todas diziam a mesma coisa, escrita em formato diferente.

“Para os povos indígenas, o lobo é o mais fiel dos guias animais, o símbolo do professor da tribo, encorajando-os a enfrentar novas ideias e projetos. O lobo é um explorador de rotas, precursor de novas ideias que volta para a tribo para ensinar e compartilhar a medicina. O senso do lobo é aguçado e a lua é sua aliada de força. A Lua é símbolo da energia psíquica ou o inconsciente que segura o segredo do conhecimento e da sabedoria. Banhando-se na Lua pode indicar o desejo do lobo para ligar ideias novas que estão embaixo da superfície da consciência. A medicina do lobo permite o professor dentro de nós aparecer a ajudar os filhos da Terra a compreender o grande mistério da vida. O lobo é o símbolo do amor, relacionamentos saudáveis, fidelidade, generosidade e ensinamento”.

Chegava a ser quase coincidência demais ter o lobo como símbolo do amor e da fidelidade, sendo ele também parte de uma história macabra de lobisomem-protetor-dos-mais-fracos. Fechei o notebook e suspirei. Eu deveria voltar a estudar agora, mas não via motivo para tentar colocar mais coisas na minha cabeça. Eu estava imprestável hoje. Tudo isso iria se refletir na semana de provas e eu iria me odiar eternamente, minha noção sobre isso só me fez ficar com mais vontade de voltar a estudar, mas incapaz de concluir o pensamento.

Eu não podia estudar com um monte de coisas na cabeça. Seria inútil. Então fiquei olhando para o teto, como se isso fosse limpar meu cérebro dos pensamentos que vibravam a cada momento. Quando me cansei de olhar para o teto, decidi voltar a ler o livreto. Talvez ele explicaria o motivo de ter um capítulo só para o tal de imprinting.

A letra continuava a mesma e eu estava me coçando para saber em que data tudo isso era relatado. Se era muito distante do atual ou nem tanto assim. A página iniciava com apenas um subtítulo – primeiro que vi desde que comecei a ler.

Taha Aki: A terceira esposa”.

Franzi o cenho, ao passar os olhos rapidamente pelas páginas notei que a história voltava para Taha Aki, como se alguém estivesse retomando o pensamento.

Alguns filhos tornaram-se guerreiros com Taha Aki e não envelheceram mais. Outros, que não gostavam da transformação, recusaram-se a se unir ao bando de homens-lobo. Estes começaram a envelhecer novamente, e a tribo descobriu que os homens-lobo poderiam ficar mais velhos como qualquer pessoa, se desistissem de seus lobos espíritos. Taha Aki viveu o tempo de três anciãos. Casou-se com uma terceira esposa depois da morte das duas primeiras e encontrou nela sua verdadeira esposa espiritual. Embora ele tivesse amado as outras, essa era diferente. Ele decidiu abrir mão do lobo espírito para morrer quando ela se fosse.

Foi assim que a magia chegou a nós, mas este não é o fim da história. Esta foi a história dos guerreiros espíritos. Agora é a história do sacrifício da terceira esposa.

Muitos anos depois de Taha Aki desistir do lobo espírito, quando estava velho, surgiram problemas no norte, com os makahs. Várias jovens daquela tribo tinham desaparecido e eles culpavam os lobos vizinhos, que temiam e em quem não confiavam. Os homens-lobo ainda podiam ler os pensamentos uns dos outros quando estavam em forma de lobo, assim como seus ancestrais faziam quando estavam na forma de espírito. Eles sabiam que ninguem de seu grupo era culpado. Taha Aki tentou pacificar o chefe makah, mas havia medo demais. Taha Aki não queria ter uma guerra em mãos. Não era mais um guerreiro para liderar seu povo. Ele encarregou o filho-lobo mais velho, Taha Wi, de descobrir o verdadeiro culpado antes que começassem as hostilidades.

Taha Wi levou outros cinco lobos de seu grupo em uma busca pelas montanhas, procurando por qualquer prova das makahs desaparecidas. Deram na floresta com algo que nunca viram – um cheiro doce e estranho, que ardia no nariz ao ponto de doer.

Eles não sabiam que criatura deixaria um cheiro daqueles, mas a seguiram. Eles encontraram traços fracos de cheiro humano e sangue humano no rastro. Tinham certeza de que era o inimigo que procuravam.

A jornada os levou tão para o norte que Taha Wi mandou metade da alcateia, os mais novos, de volta ao porto para contar a Taha Aki.

Taha Wi e seus dois irmãos não voltaram.

Os irmãos mais novos procuraram pelos mais velhos, mas só encontraram silêncio. Taha Aki pranteou seus filhos. Queria se vingar da morte dos filhos, mas era velho. Foi a chefe makah com seus trajes de luto e lhe contou tudo o acontecera. O chefe makah acreditou em seu pesar e as tensões entre as tribos terminaram.

Um ano depois, duas donzelas makahs desapareceram de suas casas na mesma noite. Os makahs chamaram os quileutes de imediato, que encontraram o mesmo fedor adocicado em toda a aldeia makah. Os lobos partiram à caça novamente.

Só um deles voltou. Era Yaha Uta, o filho mais velho da terceira esposa de Taha Aki e o mais novo do grupo. Trouxe uma coisa que nunca fora vista em tosos os dias quileutes – um cadáver estranho, frio e duro como pedra, que ele carregava aos pedaços. Todos que eram do sangue de Taha Aki, mesmo aqueles que nunca haviam sido lobos, puderam sentir o cheiro penetrante da criatura morta. Aquele era o inimigo dos makahs.

Yaha Uta descreveu o que aconteceu: ele e os irmãos encontraram a criatura, que parecia um homem, mas era dura como granito, com as duas filhas makahs. Uma menina já estava morta, branca e exangue no chão. A outra estava nos braços da criatura, que tinha aboca em seu pescoço. Ela podia estar viva quando eles chegaram à cena horrenda, mas a criatura rapidamente rompeu seu pescoço e atirou o corpo sem vida no chão quando eles se aproximavam. Seus lábios brancos estavam cobertos do sangue da menina e os olhos cintilavam vermelhos.

Yaha Uta descreveu a força brutal e a velocidade da criatura. Um dos irmãos logo se tornou vítima quando subestimou o poder da criatura, que o dilacerou como se fosse um boneco. Yaha Uta e o outro irmão foram mais cautelosos. Trabalharam juntos, abordando a criatura pelos flancos, manobrando melhor. Tiveram de chegar a seus limites de força e de velocidade de lobos, algo que nunca fora testado. A criatura era dura feito pedra e fria como gelo. Eles descobriram que só seus dentes podiam lhe provocar danos. Começaram a rasgar pequenos pedaços da criatura enquanto lutavam contra ela.

Mas a criatura aprendia depressa e logo estava fazendo frente a suas manobras. Pôs as mãos no irmão de Yaha Uta. Yaha Uta encontrou uma abertura no pescoço da criatura e atacou. Seus dentes arrancaram a cabeça da criatura, mas as mãos continuavam a mutilar seu irmão.

Yaha Uta dilacerou a criatura em partes irreconhecíveis, rasgando pedaços numa tentativa desesperada de salvar o irmão. Era tarde demais para ele, mas, no fim, a criatura estava destruída.

Ou assim ele pensava. Yaha Uta colocou no chão os restos fedorentos para que fossem examinados pelos irmãos mais velhos. A mão decepada estava ao lado de um pedaço do braço de granito. Os dois pedaços se tocaram quando os anciãos os cutucaram com bastões e a mãos se estendeu para o pedaço de braço, tentando se remontar.

Apavorados, os anciãos atearam foto aos restos. Uma grande nuvem de fumaça sufocante e vil poluiu o ar. Quando não havia nada a não ser cinzas, eles separaram as cinzas em muitos saquinhos e as despacharam para longe – alguns no mar, outros na floresta, outros nas cavernas do penhasco. Taha Aki passou a usar um saco no pescoço, para ser avisado se a criatura tentasse se reconstituir novamente.

Eles o chamaram de O Frio, Bebedor de Sangue, e viviam com medo de que não fosse apenas um. Só lhes restava um lobo protetor, o jovem Yaha Uta.

Não tiveram de esperar muito tempo. A criatura tinha uma companheira, outra bebedora de sangue, que foi até os quileutes para se vingar.

As histórias contam que A Fria era a coisa mais linda que os olhos humanos já tinham visto. Parecia a deusa da alvorada quando entrou na aldeia naquela manhã; o sol de repente brilhava, cintilando em sua pele branca e iluminando seus cabelos dourados, que caiam até os joelhos. Seu rosto era de uma beleza mágica, os olhos negros na face branca. Alguns caíram de joelhos em adoração a ela.

Ela perguntou algo numa voz alta e penetrante, numa língua que ninguém conhecia. As pessoas estavam aturdidas, sem saber o que responder. Não havia nenhum sangue de Taha Aki entre as testemunhas, exceto um garotinho. Ele se agarrou à mãe e gritou que o cheiro estava machucando seu nariz. Um dos anciãos, a caminho do conselho, ouviu o menino e percebeu o que estava entre eles. Gritou para que o povo fugisse. Ela o matou primeiro.

Houve vinte testemunhas da aproximação da Fria. Duas sobreviveram, só porque ela foi distraída pelo sangue e parou para saciar sua sede. Eles correram até Taha Aki, que estava sentado no conselho com os outros anciãos, seus filhos e a terceira esposa.

Yaha Uta transformou-se em lobo espírito assim que soube da notícia. Foi destruir a bebedora de sangue sozinho. Taha Aki, sua terceira esposa, seus filhos e os anciãos foram atrás dele.

De início eles não conseguiam encontrar a criatura, só a prova de seu ataque. Corpos jaziam quebrados, alguns sem sangue, espalhados pela estrada onde ela aparecera. Depois ouviram os gritos e correram para a enseada.

Alguns quileutes correram para se refugiar nos barcos. Ela nadou atrás deles como um tubarão e quebrou o casco do barco com sua força inacreditável. Quando o barco afundou, ela pegou os que tentavam se afastar a nado e os destruiu também.

Ela viu o grande lobo na margem e se esqueceu dos nadadores em fuga. Nadou tão rápido que parecia um borrão, e chegou, gotejando e gloriosa, para se postar diante de Yaha Uta. Apontou para ele com um dedo branco e fez outra pergunta incompreensível. Yaha Uta esperou.

Foi uma luta renhida. Ela não era a guerreira que fora seu companheiro. Mas Yaha Uta estava só – não havia ninguém para distrair dele a fúria da criatura.

Quando Yaha Uta perdeu, Taha Aki gritou em desafio. Ele avançou e se transformou em um lobo velho, de focinho branco. O lobo era velho, mas aquele era Taha Aki, o Homem Espírito, e sua raiva o deixava forte. A luta recomeçou.

A terceira esposa de Taha Aki tinha acabado de ver o filho morrer diante dela. Agora o marido lutava, e ela não tinha esperanças de que ele vencesse. Ela ouviu cada palavra que as testemunhas contaram ao conselho sobre a chacina. Ouvira as histórias da primeira vitória de Yaha Uta e sabia que a distração do irmão salvara a vida dele.

A terceira esposa pegou uma faca no cinto de um dos filhos ao lado dela. Todos eram jovens, ainda não eram homens, e ela sabia que eles morreriam quando o pai fracassasse.

A esposa correu para a Fria com a adaga erguida. A Fria sorriu, e mal se desviou da luta contra o lobo velho. Não tinha medo da mulher fraca e humana ou da faca que sequer arranharia sua pele, e estava prestes a dar o golpe mortal em Taha Aki.

E então a terceira esposa tomou uma atitude que a Fria não esperava. Caiu de joelhos aos pés da bebedora de sangue e enfiou a faca no próprio coração.

O sangue esguichou pelos dedos da terceira esposa e espirrou na Fria. A bebedora de sangue não pode resistir à tentação do sangue fresco deixando o corpo da terceira esposa. Por instinto, virou-se para a moribunda, por um segundo inteiramente consumida pela sede.

Os dentes de Taha Aki se fecharam em seu pescoço.

Este não foi o fim da luta, mas Taha Aki agora não estava só. Vendo a mãe morrer, dois filhos jovens sentiram tal raiva que dispararam para frente na forma de seus lobos espíritos, embora ainda não fossem homens. Com o pai, eles deram cabo da criatura.

Taha Aki jamais se reuniu a tribo. Nunca voltou a forma humana. Ficou deitado por um dia ao lado do corpo da terceira esposa, rosnando sempre que alguém tentava tocá-la, depois foi para a floresta e jamais voltou.

Os problemas com os frios foram raros a partir de então. Os filho de Taha Aki protegeram a tribo até que seus filhos fossem bem velhos para assumir seu lugar...”.

(Eclipse, pg. 185 a 188)

– Gaele? Ah... Me desculpe. – Austin disse quando me viu pular da cama de susto e cair no chão com um estrondo nada confortável.

Meu coração estava acelerado e parecia doer na minha caixa torácica. Ergui-me apoiando na cama enquanto lançava um olhar feio para ela. Eu estava tão concentrada no livro que havia me desligado completamente do mundo que me rodeava. Na minha mente cenas de um filme antigo indígena passavam conforme eu ia lendo. Novamente, a forma como era escrito não parecia deixar sombras de dúvidas sobre aquela situação.

Só que, para uma pessoa sistemática e racional como eu, algo assim estava muito longe de ser verdade e sua concepção e impressão não passavam de ideias abstratas e imaginativas demais para mim. Jacob havia dito para que eu abrisse minha mente, mas duvidava que fosse para algo como a história. Talvez ele quisesse dizer para o sentido que a história trazia. Eu só precisava encontrá-lo.

– Aconteceu alguma coisa? – perguntei enquanto voltava a guardar o livro.

– Já está na hora da janta. – ela disse franzindo o cenho.

Ah droga! Eu tinha perdido o resto do dia!

* * *

Eu mal tive tempo de voltar a leitura. A semana de prova me consumiu como eu sabia que ela faria. E, como eu também sabia, amaldiçoei todos os minutos em que fiquei mais preocupada em entender o livro do que entender a matéria de provas. Quero dizer, eu já sabia de grande parte de tudo aquilo. Mas havia um peso nos meus ombros que não estava ali antes no semestre passado. Eu precisava de boas notas. E ficar lendo um livro de contos não ia me ajudar com isso.

Mas estava acabando, graças ao bom Deus. Eu tinha minha última prova amanhã, na sexta-feira. Era a de Biologia, então eu não precisava me preocupar tanto assim. Biologia era um assunto tão fácil para mim, que estudar sobre ela era mais um hobbie do que uma obrigação.

Estávamos jantando naquele quase silencio, que era interrompido pela conversa baixa e discreta de Austin e Jane. Eu não era muito de falar enquanto comia, na verdade, não era muito de falar e ponto. Meu pai também não, mas isso não quer dizer que nos sentiamos bem assim. Por vezes nos olhávamos como quem diz que devemos-conversar-que-nem-elas. Nenhum dos dois puxou qualquer assunto.

Eu aproveitei o jantar para observar meu pai. Havia uma preocupação em seus olhos que não estava ali quando chegue, há meses. Olheiras profundas também e eu tinha a leve impressão de que não eram problemas no serviço. Os negócios de carpintaria de John iam bem e ele nem trabalhava o tanto que reclamava. Ficava mais tempo na reserva. E acredito que era de lá que os problemas vinham.

Mesmo nenhum de nós tendo tocado no assunto do cadáver em nosso jardim, o assunto pairava de vez em quando, mesmo sem ninguém dizer nada. Era como se fosse uma pergunta ou comentário prestes a ser dita, mas interrompida no último minuto.

Eu não sentia nenhuma vontade de tocar no assunto novamente, logo agora que meus pesadelos com ele estavam acabando. Sempre quando eu pensava sobre o assunto sentia vontade de vomitar novamente. Entretanto, isso parecia lincado com as preocupações de John, então resolvi tirar o tabu do assunto.

– Estão acontecendo mais mortes? – perguntei. A mesa de jantar entrou em silêncio.

Tudo bem, eu não era uma pessoa cheia de toques, todo mundo sabia disso. Mas admito que deveria ter entrado no assunto com mais calma. Meu pai engasgou com seu refrigerante, enquanto Austin e Jane me olhavam com aqueles olhos que diziam você-é-maluca-e-indelicada. John, recuperado de seu engasgue, voltou a me olhar com os olhos lacrimejando.

– Por que acha isso?

Dei de ombros, tentando fingir uma indiferença que não sentia. Lembrar daquele dia não era fácil, assim como lembrar do ataque no beco de Port. Angels ainda me deixava emotiva e tremendo. Não era por isso, no entanto, que eu ia me privar de certas coisas.

Como descobrir o que diabos meu pai faz tanto na reserva.

– Jacob me contou no dia em que achei o... Ele me contou que aquilo já vinha acontecendo há algum tempo. – engoli em seco, mas mantive meus olhos firmes nos do meu pai. Minha vontade era abaixar a cabeça e tentar não invocar as lembranças.

– Black fala demais. – meu pai disse e havia tanto antagonismo em sua voz que me surpreendeu. Ele nunca agiu mal perto de Jacob, nunca o destratou nem nada parecido. Era estranho estar revelando isso agora.

– Acho que ele está certo. – falei cautelosamente, não querendo brigar, mas defendendo meu ponto de vista também. – O pessoal da cidade não pode ficar no escuro por muito mais tempo. Logo essas... Coisas que estão acontecendo vão fugir do controle de vocês. E não será bonito quando souberem que já vem acontecendo há um tempo.

John se remexeu na cadeira, desconfortável.

– Não estou dizendo que Black está errado. – falou mal movendo os lábios. Isso me surpreendeu, meu pai era sempre tão ligado as regras daqui. – Só disse que ele fala demais. Também acho que quando as pessoas souberem da história toda, e elas irão saber, não vai ser agradável. Mas essa é a decisão do conselho e eu não vou ir contra eles.

Ergui minhas sobrancelhas pela falta de luta em meu pai. Ele acreditava em algo completamente diferente do que o conselho propagava – e isso era muito raro -, mas mesmo assim não levantava a voz para ir contra. Eu não o entendia. A falta de perseverança dele me incomodava profundamente, talvez por que eu não fosse assim, mas me indignava esse ato.

– Não é por que eles estão no poder de decidir o que acham que é certo e errado, que realmente seja, pai. – falei. – São pessoas como nós, mas com um poder maior nas mãos. Isso não faz deles deuses.

– Sei que não. Mas não vou ir contra eles, seria causar um conflito desnecessário.

– Não vai ou não pode? – perguntei, estreitando meus olhos. – Por que é que você anda tanto na reserva, pai? Achei que os quileutes mantinham uma certa distância do povo de La Push.

John fixou seu olhar no meu, havia muito desconforto e um início de irritação ali, por eu estar confrontando as atitudes dele. Meu pai era muito idaísta. Achava que por eu ser mais nova, não tinha propriedade para discutir suas ações. Eu era o oposto, não dependia da idade e sim de seus conceitos. Meu pai estava errado e eu estava certa. Bem simples.

– Temos uma boa relação, só isso.

Apoiei meu cotovelo na mesa.

– E que relação, não é mesmo? Já que eles parecem te contar tudo. – o fitei mais intensamente, observando sua reação. – Você não parecia surpreso quando chegou em casa e viu o corpo do homem no rio. – forcei as palavras a sairem. – É claro que não esperava que fosse na sua casa, mas não ficou surpreso com a morte de uma pessoa. Há quanto tempo os quileutes tem confiado tanto em você?

– Agora você já está soando maluca. Eles não confiam em mim dessa maneira, é uma relação de amizade que construi durante os anos, mas sei o meu lugar. – John disse com a voz um pouco mais elevada. Ele usava de sua irritação para causar uma briga e parar com o assunto, mas eu era boa de briga.

– Você tem parentes quileutes, pai? – perguntei de repente.

John engasgou com as próprias palavras, seus olhos se arregalando. Eu não consegui entender a emoção que passou por eles, se foi medo ou indignação. Mas ele não esperava por essa pergunta. Na verdade, nem eu esperava.

– Por que raios está me perguntando isso?

– Só há um motivo para os quileutes confiarem certas coisas a você, que não confiam no resto da população de La Push. Você ter algum descendente quileute. Se for de uma linhagem muito antiga, eles não precisam de contar tudo, mas você tem seus direitos. Agora, se for próximo, então você deve saber de tudo. – eu havia pesquisado um pouco com meu professor, logo após o término de sua prova. Eu sabia que não era uma fonte cem por certo segura, ainda mais que não me foram apresentados as referências de onde ele tirou esse conhecimento, mas decidi jogar verde para ver no que dava.

– Como você... – John estava sem palavras, parecia indignado e surpreso. Resolvi arriscar novamente.

– Acho que você deve ter sim algum descendente quileute, mas muito distante. Não mora na reserva, e essa falta de privilégio deve ser exatamente por isso. Então eles devem te contar alguma coisa, te envolver na reserva quando precisam.

– Agora já chega! – ele disse batendo a mão na mesa, sua pele morena ficando um pouco avermelhada. – Chega de ficar questionando os meus atos. Cresça e depois venha falar comigo. Vá para o seu quarto!

Rolei os olhos diante da escapada que ele sempre tinha. Retire meu prato e o coloquei em cima da pia, ante de sair me aproximei de John e disse com um sorriso malicioso.

– Bela escapada, mas eu já saquei. – então desejei boa noite a todos e subi para o meu quarto.

Eu me remoía em busca de respostas. Se meu pai era, então eu também era, o que só podia significar uma coisa: eles teriam que me contar o meu envolvimento com o maluco do Farad e com qualquer segredo que eles escondem de mim e sobre mim.

Antes de dormir fiz uma promessa, de que assim que as provas acabassem eu iria descobrir se realmente era descendente de quileute.

Acordei com um barulho estranho, pedras sendo esmagadas e o ranger alto das escadas sempre que alguém descia rápido demais. Abri meus olhos e olhei para meu celular. Estava escuro demais, nem lua servindo de luz, mas o celular dizia ser três horas da manhã. Ótimo. Um dia antes da prova e alguém decidia ir beber água no meio da noite.

Eu virei meu corpo para o lado, em busca do sono novamente, mas vozes chegaram antes. Sussurros que vinham da porta. Eu podia ouvir a voz grave de John tentando soar baixa, mas sem muito sucesso.

Bufando, joguei as cobertas para o lado e me levantei. Minha calça do pijama quase cobria inteiramente meus pés, o que era bom no chão gelado. Abri a porta para não acordar Austin, mas desci as escadas. Eu estava pronta para dar uma bronca em John e em quem quer que estivesse batendo essa hora na minha casa. Ia xingar até a terceira geração da família da pessoa, e depois jogar uma praga para que saísse logo da minha frente. Então ameaçaria que se meu desempenho na prova de amanhã não fosse bom o bastante, eu iria caçar a pessoa.

Todas as coisas negativas ficaram presas na minha boca quando dei de cara com Sam Uley, Seth Clearwater e Jacob Black na porta da minha casa, com John lá também. Todos olharam para mim, mas seus rostos estavam tensos. Pelo menos o de Seth estavam. Jacob e Sam tinham a mesma máscara de calma, mas os olhos de Sam ainda transmitiam preocupação. Os de Jacob estavam fechados como sempre. Ele parecia muito racional.

– Algum problema? – perguntei, minha voz saindo rouca por causa do sono.

– Não é nada, filha. Pode voltar a dormir. – John disse de uma maneira tão suave e gentil que de imediato eu suspeitei.

Estreitei meus olhos para ele, então olhei para Jacob. Ele não tentava me revelar nada em seu olhar, mas estava bem atento, como na noite em Port. Angels. Aquele olhar que via tudo ao redor, ao mesmo tempo que pareciam despreocupados.

A situação foi caindo aos poucos na minha cabeça. Só havia um motivo que traria dois membros do conselho na porta da nossa casa. Um motivo que estava saindo do controle de todos. Alguém havia sido atacado novamente. Quando essa concepção caiu na minha cabeça como um baque, eu senti meu coração redobrar os batimentos.

Controlei minhas feições, para que meu pai não percebesse e nenhum deles. Mas vi o movimento de Jacob, por um breve instante achei que ele iria vir até mim. Mas não o fez, apenas me olhou ainda mais atento, como se esperasse alguma reação minha. Era curioso o modo como ele fez isso no exato momento em que percebi o que estava acontecendo.

Mas eles nunca me contariam. Por isso sorri da maneira mais tranquila que consegui.

– Claro, pai. Tenham uma boa noite. – falei e voltei a subir as escadas, mas ao sair da vista deles eu acelerei meus passos.

Entrei no quarto e fechei a porta com cuidado. A vista da minha janela dava para o rio, por isso não conseguia ver os três na minha porta. Mas poderia ver as luzes de seus carros – se é que eles vieram de carro – quando fossem embora, a noite estava escura o suficiente para um vagalume se transformar em sol.

– Austin. – disse apressada, resolvendo confiar pelo menos isso nela. – Austin acorde! – falei e a balancei.

Quando ela foi exclamar, cobri sua boca com a minha mão. Ela arregalou os olhos, assustada, mas ao me ver voltou a respirar com normalidade. Soltei sua boca e fiz silêncio com os dedos.

– Aconteceu alguma coisa. O conselho bateu aqui na porta, acho que John vai ir com eles. – falei baixo.

– O que aconteceu? – ela se sentou e sussurrou também.

– Acho que alguém morreu. – falei procurando não tremer na voz. – Que outro motivo faria o conselho bater três horas da manhã aqui em casa?

Austin entrou em um silêncio tenso e preocupado, como eu. Levantei da cama dela e puxei minha blusa cinza de moletom. Vesti meus tênis da Adidas novo. Austin olhava tudo aquilo muito confusa, mas eu já tinha decidido que iria sair para ver o que era.

– Não me diga que vai sair! – ela disse depois de um tempo quando notou o que eu estava fazendo.

– E você nao?! – perguntei incrédula. – Austin, e se for alguém que conhecemos. Alguém aqui de La Push! Eles vão continuar escondendo as coisas de nós até tudo isso sair do controle. Como podemos estar seguros se nem sabemos o que está acontecendo? Eu é que não vou ficar parada aqui.

Terminei de amarrar o tênis, quando me levantei Austin estava pegando suas coisas e as vestindo rapidamente. Era claro que ela não queria ir, mas eu sentia que Austin estava pensando mais em me acompanhar do que realmente descobrir o que estava acontecendo. Eu poderia estar nos metendo em uma grande enrascada, levando-nos para a boca do perigo... Mas desde quando eu parava para pensar?

Saimos de fininho pelo corredor escuro, pisando nas madeiras que sabíamos que não faria tanto barulho assim. Ao chegar no hall de entrada, John não estava mais, escutamos o barulho de seu carro saindo da garagem com as luzes apagadas, para não chamar a atenção.

Puxando a cortina para o lado, nós duas olhamos cautelosamente a frente de nossa casa. John já estava na estrada e não parecia ter nenhum passageiro, mas minha visão não era perfeita, ainda mais a noite na rua mal iluminada de casa. Quando o vimos virar a rua, saímos de casa. Eu tinha a chave reserva de meu carro no bolso, mas chequei só por precaução... John havia levado a chave do meu carro com ele.

Provavelmente ele suspeitou da minha repentina desistencia do assunto. Bom, mal sabia ele que eu era uma garota-escoteira-esteja-sempre-preparada. Mesmo que perseguir seu pai em busca de um cadáver não fosse bem o estilo escoteiro.

Não liguei meu carro, ele faria muito barulho e a última coisa que eu queria era ser pega pela Jane. Então tirei o freio de mão, Austin e eu empurrávamos o carro, comigo segurando o volante para guiá-lo melhor. Quando estávamos razoavelmente longe da casa, entramos no carro e eu dei a partida. Comecei a dirigir e não demorou muito para ver, estacionado no estacionamento da praia, o carro de John.

Parei o carro um pouco antes dele, preocupada por John estar na praia e nos ver. Mas não estava. Olhei para o outro lado, onde só tinha a floresta. Havia uma luz tremeluzindo por ali, mal passando pela densa vegetação. Apontei para o lugar e Austin assentiu, também vendo a lanterna se afastando. Nossos passos faziam um pouco mais de barulho do que o natural, por causa das possas de água. No silêncio modorrento de La Push, isso parecia gritos.

Abri meu celular e ativei a lanterna dele, iluminando o caminho ao entrar na floresta. Fazia muito tempo em que eu não vinha. Ficava evitando sempre que pensava em passar algumas horas nas trilhas de La Push, com medo de me sentir apavorada novamente ou de encontrar com Farad. Mas todas essas impressões foram embora quando adentramos por entre as árvores e moitas. Aconteceu exatamente o oposto. Eu me senti segura e firme. Não estávamos seguindo uma trilha, o que tinha me preocupado no início, mas agora eu sabia exatamente onde ir. Era como se conhecesse a floresta como a palma de minha mão.

Austin tinha sua mão agarrada na manga de minha blusa, para se manter próxima, mas eu sentia seu corpo estremecendo de vez enquanto. Por ter sido criada em La Push, Austin aprendeu a temer a floresta e o que nela continha. Fora ensinada, desde pequena, que entrar na floresta desacompanhada de um adulto e fora das trilhas só causaria problemas. Então eu entendia seu medo, mas não o compartilhava. Cresci fora de La Push, cresci amando e admirando a floresta. Não havia como eu estremecer de medo aqui.

Era mais meu lar do que a casa de John.

Se forçassem bem a vista, era possível ver a lanterna de John balançando a nossa frente. Por isso eu mantinha meus olhos para cima, o que não ajudava muito. Eu tropeçava quase sempre e levava Austin comigo. Isso quando a mesma não pisava em meus pés e nós duas quase caíamos de joelhos. Tentávamos não fazer barulho, mas a cada vez que entrávamos dentro da floresta, mais suas raízes se intensificavam, como se quisessem deter nosso avanço, segurando em nossos calcanhares.

Achei que não ia mais parar de andar, que realmente deveríamos voltar. Foi quando escutei conversas. Eram baixas, mas no silencio da noite tudo era amplificado. As corujas estavam quietas, assim como as cigarras. Algo estranho. Quando vi a lanterna de John na frente, parei de andar. Austin tropeçou mais uma vez em mim para depois parar. Dei a volta para que John não nos visse. Havia muitas pessoas ali, eu podia ouvir o burburinho.

Fomos nos aproximando devagar, com cuidado aonde pisávamos. Mas parecia que a floresta estava do nosso lado, pois nossos sons estavam um pouco mais abafado. Havia muita luz ali também. Alguém tinha feito um semicirculo de luz para que o local ficasse mais visível.

De início tentei localizar as pessoas que estavam ali. Semicerrei os olhos para ver melhor. Havia John, colocando sua lanterna no chão e acrescentando na iluminação. Então havia Sam Uley, Seth Clearwater, Collin, Brady e Jacob Black. Havia ainda alguns meninos da reserva que eu não reconhecia, mas consegui distinguir Drew entre eles.

Eu e Austin nos entreolhamos. Não havia absolutamente ninguém de La Push ali. Era uma reunião íntima onde apenas o conselho estava... E meu pai. O que ele fazia ali?

Observei Jacob Black por um tempo, reparando em seus olhos. Ele não encarava o que estava no centro das luzes, tinha seus olhos em todos os lugares da floresta, como se buscasse por algo que seus olhos não encontravam. Por duas vezes seus olhos passaram por onde eu estava com Austin, mas ele não nos viu. Não teria como. Estávamos longe e no escuro.

Minha nuca comichou. Eu tinha a impressão de que ele havia, sim, nos visto. Mas se viu mesmo, por que não disse nada...? Tirei isso da mente. Jacob não havia me visto, eu estava no escuro, não era possível.

Austin colocou as mãos na boca, para reprimir o arfar. Olhei em repreenda para ela, mas ela não me olhava. Tinha seus olhos escuros no que as lanternas iluminavam. Estreitei meus olhos para tentar entender o que era aquilo. Parecia um montinho de roupas de cores dispares, estava espalhado como se alguém tivesse se despido enquanto caminhava.

Forcei minha vista, inconscientemente aproximando minha cabeça na direção do montinho. Com um embrulho no estomago eu notei que não era um montinho apenas de roupas. Alguém havia sido despedaçado. As partes distantes não eram só roupas, mas membros também. Virei meu rosto daquela cena, controlando meu estomago. Eu já vinha me preparando no caminho para algo assim, mas era diferente do homem no lago. Aquele pelo menos estava inteiro. Esse estava em pedaços.

Quando voltei a olhar para o círculo, todos haviam parado de falar. Sam tinha sua mão para cima, seus olhos passando por todos os cantos. Ele parecia ter silenciado as conversas para escutar melhor... Então me lembrei do arfar sufocado de Austin. Tinha sido muito longe, mas a noite estava silenciosa... Ele poderia estar desconfiando de alguma coisa.

Achei que Austin ia vomitar, ela estava com uma cara de quem ia, mas fiz silencio com os dedos para ela, e ela assentiu. Travamos nossos corpos para evitar qualquer outro barulho. Voltei meu olhar para onde os homens estavam. Jacob cochichava alguma coisa no ouvido de Sam, que tinha seus olhos passando de relance onde estávamos. Contei três vezes. Sam assentiu e voltou a abaixar a mão. Virando-se para meu pai e voltando a conversar.

Tentei interpretar as feições de meu pai. Não era medo, era ódio. E ele não pareceu notar diferença alguma nem som algum, por mais que quando Sam pediu silencio ele teria olhado ao redor também. Meus músculos do ombro estavam doendo por ficarem tão tensionados em uma posição só.

Quando Jacob afastou seus olhos de onde eu estava, relaxei os braços. Austin me puxou para trás, simbolizando que queria ir embora. Ela ia vomitar, eu sabia que ia. Seu rosto estava contraído em nojo, ficando meio esverdeado para a pele morena dela.

Assenti e começamos a recuar, mas ainda buscando pelo silêncio. Eu percebi que ela não sabia como voltar, mas, de alguma forma, eu já sabia o caminho de volta. Então voltei a nos guiar, a lanterna do celular iluminando. Quando chegamos na orla da floresta, Austin se abaixou em um canto do mato e vomitou. Eu esperei paciente enquanto segurava seus cabelos. Sabia exatamente o que ela sentia, mas eu estava um pouco mais preparada para uma situação dessas. Embora, é claro, eu não imaginava encontrar um corpo despedaçado na floresta.

De algum modo eu não conseguia sentir o nojo e repúdio que deveria. Estava curiosa demais para processar as informações de forma emocional. Eu queria saber o que tinha causado aquilo. Queria entender o motivo de tanto sigilo.

Assim que Austin terminou de vomitar, nós seguimos em silencio para o carro. Ela ainda parecia prestes a passar mal de novo, mas durante o caminho para casa não fez nada além de abrir o vidro no máximo e praticamente colocar a cabeça para fora, em busca de ar puro.

Não me incomodei em desligar o carro antes de entrar na nossa rua. O dia já estava amanhecendo de qualquer forma. Estacionei exatamente como antes, guardando a chave reserva no meu bolso. Entramos em casa em silêncio, mas agora para não acordar Jane.

Nesse final de madrugada, foi eu quem dormi com Austin. Seu choro preenchendo suavemente o quarto pelo resto da madrugada. Não foi só seu choro que me manteve acordada, minha curiosidade tinha conquistado novos rumos. Um rumo investigativo.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Genteee! Um suuuuper obrigada pelos comentários no capítulo passado. Fiquei muito feliz com o alcance dele. Beijos especiais nos corações de Lee Girlrock (super bem-vinda, seus comentários me divertem e anima), Terumy M W Lahote (que voltou a comentar!, obrigada por continuar a acompanhar, flor), Poliana Vieira (super bem-vinda, amei saber o quanto você gosta dessa fic!) e Amando (obrigada por sempre comentar!!).
Entãoooo, próximo capítulo promete uma injustiça (eu pessoalmente sou extremamente contra o que acontecerá, mas foi importante para a construção do caráter de Farad). Espero que curtam!!!
Me digam o que acharam! Logo mais tem mais cenas de Jacob-lindo-maravilhoso.
Beijos e até semana que vem!



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Hunter - A caçada começou" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.