Heróis e Vilões - Um mundo de poderes escrita por Felipe Philliams


Capítulo 23
Piloto Automático Desligado


Notas iniciais do capítulo

~ capitulo mais demorado do mundo ~
finalmente terminei esse monstro. Aqui está, sem muitas delongas



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16 de abril, 2014 (quarta-feira), Parte Um, alguns dias antes do capitulo anterior, 11h52

A apresentação começara há vinte minutos. A voz dela, que já era irritante, conseguiu ficar mais irritante ainda, na medida que o tempo passava.

E mesmo com a cabeça deitada sobre o braço da cadeira, Maria não conseguira dormir. Tinha tudo para atingir essa façanha: sono atrasado, tédio, falta de atenção e dor de cabeça. Sua habilidade de calcular previsões lógicas lhe disse que, caso dormisse, perderia informações cruciais, mas ela já não dava importância. Esse cursinho de Peacewings estava tão chato e repetitivo que até mesmo trabalhar em um shopping parecia mais atraente.

Os olhos estavam fechados, mas ela sabia que já devia estar perto do meio-dia. Sentia a temperatura ambiente aumentando conforme o tempo passava. E só esse fator já era suficiente para que pudesse raciocinar quase precisamente a hora. Considerando a temperatura, a velocidade com que esta aumentava, a ansiedade na voz daquela garota e a leve claridade que passava por suas pálpebras fechadas (levando em conta duas de seis janelas abertas) , Maria calculou onze horas e cinquenta minutos. Logo a sirene ia tocar e ela estaria livre.

Então ia acontecer tudo de novo. Como em todos os dias. Ela sairia da sala com a mochila nas costas e iria até o refeitório, onde gastaria cinco reais em um prato leve de comida. Depois disso sentaria-se na mesa que os colegas da sua classe gostavam de sentar e comeria em silêncio, olhando cabisbaixa para o prato enquanto os outros riam e conversavam. Então ela iria embora. A rotina imutável.

Cada vez que pensava nisso, mais triste Maria ficava. A vida de preparatório para trabalho, sobre a qual sempre ouvira falarem bem, revelara-se entediante. Escolhera estudar administração de empresas para ver se conseguia uma vaga no prédio Delta Star, o mais influente da cidade. Desde que era criança, Maria observava aquele prédio, vendo o número de pessoas que entravam e saíam dali, durante o dia todo. À noite, ele funcionava até às 20h. No meio tempo as luzes azuis, vermelhas e verdes iluminavam as seis faces do prédio, que tinha o formato de um hexágono no chão. O prédio mais rico da Parte Um e mesmo que não fosse o mais alto, era muito atraente. Qualquer empresário ou contador, ou administrador queria ir para lá.

Mas o sonho de entrar todas as manhãs e só sair de noite do Delta Star logo foi desvanecendo em aproximadamente duas semanas. Se trabalhar lá fosse mesmo o que estivera aprendendo, então preferia não continuar assim. Quando chegasse o final de junho, Maria já estava determinada a cancelar sua matrícula em Peacewings de uma vez por todas. Estudava naquela escola havia dois anos e ainda não gostava dela. Achava os alunos muito desleixados, os professores inconvenientes e o ensino fraco. Sem falar da segurança, que era simplesmente horrível. No mês retrasado um Vilão entrou disfarçado de zelador e matou uma grande quantidade de alunos.

As memórias disso ainda eram nítidas e Maria recordava-se do que sentiu quando viu aquela garota no chão, tentando se levantar e a amiga dela, uma monstruosidade de terra, querendo afastar o Vilão. Vendo o olhar determinado na face daquele Vilão e a pressa que ele tinha de fazer tudo ela pôde raciocinar. Sua habilidade de prever acontecimentos lógicos lhe alertara sobre uma possível chacina naquele colégio caso Maria não fizesse algo... Então jogou-se na frente daquela garota assim que o homem levantou a mão para dar uma descarga elétrica.

Acordou no Hospital UPV, alguns dias depois, com a barriga em estado perfeito. Quando questionou sobre isso uma enfermeira chamou um tal de Justino que lhe disse algo sobre a habilidade de estimular defesas naturais para agirem mais rapidamente sobre determinadas áreas do corpo (ele conseguia curar). Então ela foi liberada e tudo ficou normal. A reforma durou duas semanas e as aulas voltaram imediatamente.

Quando estava pensado sobre isso a sirene começou a tocar, anunciando o fim do horário e, no caso, da aula. Os alunos se levantaram ruidosamente, guardando seus cadernos em bolsas, começaram a ir embora. Como aquele dia foi baseado em apresentações e ela havia sido a primeira, Maria nem havia tirado o material da bolsa. Pegou sua mochila e dirigiu-se para fora. Um amontoado de alunos das outras salas saiam também. Todos tinham praticamente a mesma idade: dezessete ou dezoito anos. "Adolescentes revoltados que estão começando a entender o peso deles em uma cidade como essa", pensou Maria, dando um sorrisinho; "ou então são só despreocupados riquinhos que estão fazendo isso por fazer".

Maria olhou para a parede, pensando na vida. Decidiu que iria almoçar e ir embora. Virou-se para a esquerda, seguindo o corredor, cheio de alunos. Sua bolsa não estava pesada; carregava ela com apenas uma manga sobre o ombro direito, como sempre fazia.

No refeitório haviam várias mesas com cadeiras, e isso fazia Maria se sentir um filme escolar estadunidense. Quase todas as cadeiras estavam ocupadas, mas ela observou um lugar vazio aqui e ali. Haviam oito fileiras de mesas, cada fileira era composta por três mesas longas com quatro cadeiras, duas em cada lado e mais duas nas extremidades. Maria sabia que aproximadamente quinhentas pessoas haviam se matriculado em Peacewings naquele ano, e somente essa quantidade de assentos não caberia todos. No entanto, recordou-se que nem todos saíam ao mesmo tempo, afinal, alguns podiam estar em excursão ou em jogos inter-escolar.

Ela se dirigia à cantina quando sentiu alguma coisa se chocando contra suas costas. O impulso foi tão forte que ela perdeu o equilíbrio. Caiu com os joelhos no chão, mas, como havia se apoiado com as mãos, não foi com tanta força. No chão, confusa e assustada, conseguiu focar sua audição em um barulho que ela nunca tinha ouvido antes.

O lugar explodia em gargalhadas misturadas com vaias. Todos haviam parado suas atividades normais e voltaram-se para ela, os dedos erguidos, denunciando a ridícula situação em que se encontrava: caída, no centro do refeitório, ao lado de uma outra pessoa ainda mais desastrada que ela. A atenção ficou voltada para Maria durante alguns breves segundos e, depois disso, lentamente foram todos voltando ao normal. Alguns até lhe perguntaram se estava bem ou se tinha machucado. Maria sentia dores fortes no joelho esquerdo e na palma das duas mãos.

A pessoa que havia esbarrado nela levantou-se primeiro, oferecendo-lhe a mão.

– Er, desculpe... Eu estou com muita pressa - a voz não tinha o grosso tom de um homem.
– Ai, garota, qual a droga do seu problema?! - exclamou Maria, chamando a atenção.
– Eu já disse, tô apressada! - puxou Maria para cima, debaixo de gemidos muita força.
– Apressada pra quê, porra? Qualquer que for sua emergência não é desculpa pra parecer um touro correndo e atropelando todo mundo!

Maria ouviu vaias e gritos de incentivo. Os alunos que ainda observavam estavam incentivando uma briga. Ela não iria se rebaixar à esse nível. A garota que a atropelou parecia ter quinze ou dezesseis anos, mas Maria tinha uma leve impressão de que ela era mais velha. Ela tinha cabelos lisos e pretos, muito bem cuidados. Suas feições faciais eram bem grossas, talvez tivesse estado em uma guerra ou em confrontos. Bem bonita, mas o que mais chamou a atenção de Maria foram os olhos. Estes tinham um tom azul, profundo, claros, brilhantes, frios, hostis. Quando ela olhava em seus olhos, mesmo que a temperatura média do ambiente estivesse em 36° Celsius e a sensação de 42, tudo pareceu ficar mais frio. Junto a isso, teve uma sensação de vulnerabilidade, como um inseto preso em uma teia de aranha.

E foi aí que ela percebeu que aquela garota era mutante. Seu raciocínio lógico levou em consideração a coincidência, os olhos, o frio e todas as sensações ruins que Maria sentia quando encarou ela. E, em uma outra análise, ela percebeu que aquela garota era realmente mais velha, podia ter vinte e quatro ou vinte e três anos. A postura dela, a pressa, a preocupação e o modo como ela tentou se explicar lhe revelaram isso.

E todos esses pensamentos passaram pela cabeça dela no mesmo milésimo que a garota levou para dizer, em tom muito baixo e impaciente.

– Minha aula já vai começar! Sai da frente!
– Ah - sorriu, ironicamente - Me desculpe. - abriu caminho e ela passou correndo.

Foi só quando ela desapareceu no corredor que levava para as salas do ensino fundamental que Maria estranhou a atitude dela. Parecia ter dezesseis anos, tinha na verdade uns vinte e quatro; disse que estava indo para a aula e correu na direção das salas do fundamental. Era completamente óbvio que ela estava mentindo. Havia alguma coisa acontecendo lá, mas Maria não estava afim de investigar. Simplesmente continuou andando para a cantina para pegar seu almoço.

Sentou-se à mesa menos cheia que tinha, tão distante quanto pôde. Não queria chamar a atenção, então assumiu um semblante pensativo, observando sem interesse o ambiente, lotado de alunos, desde a parede mais distante até a mesa que Maria se sentava. Alguns estavam rindo e brincando, provavelmente contando piadas ou mencionando alguma coisa. Outros estavam mais sérios e comiam enquanto liam livros. Pareciam estar felizes, distraídos da realidade. De alguma maneira isso entristecia Maria.

A maioria das pessoas que estavam ali não tinham nenhuma consciência do mundo que estava oculto pela alienação da Leatrice. Preferiam viver suas vidas se focando em algo para não perderam a vontade de vivê-la. Maria tinha vontade de viver, mas, recentemente, ela tem se questionado, com uma despretensiosa frequência, acerca das razões pelas quais lutava. Ainda não tocara no prato, pois a máscara que colocara agora pouco revelou-se uma armadilha; ela estava pensativa, agora, não só fingindo.

Era incrível como em um lugar tão pequeno cabiam tantos mundos. "Cada um desses humanos é um mundo", pensou Maria: "E, aceite eu não, são todos um mundo de poderes. E eles podem mais do que pensam". E todos eram diferentes, mesmo que tivessem o mesmo uniforme verde de Peacewings. Tanto em aparência quanto em estado de espírito, eram diferentes. A aparência física é natural da espécie humana, mas as particularidades eram gritantes quando levava em consideração o aspecto social. Alguns riam, outros conversavam, e outros poucos, incluindo, de certa forma, Maria, sentavam-se cabisbaixos, olhando para o prato que havia diante deles.

"Não importa o quão inútil eu seja, vou fazer tudo o que tiver no meu alcance para proteger vocês..." Ela, agora, tinha um propósito pelo qual lutar; a inquietação deu lugar à fome. Olhou para o prato, segurando a colher de metal, ainda pensativa. Estaria ela tão certa do que estava prestes a fazer? O efeito durava até o fim completo da digestão. E tudo o que ela precisava era desse descanso, por oito ou mais horas.

Então comeu uma de porção de galinha frita, com uma camada de ovo por cima. Era assim que gostava de chamar as coisas que comia, pelo seu nome literal. Assim ela tinha uma melhor ideia do que ia comer. Preferia chamar pizza de "pão coberto de legumes e salada". Churrasco? O nome pelo qual ela chamava era "músculo morto e queimado dum animal". Claro que fazia isso mentalmente; a última vez que tentara introduzir esse conceito aos seus colegas, todos olharam torto para ela e foram embora. E, enquanto sentia o gosto da galinha, recordou-se o nome pelo qual as pessoas chamavam aquela refeição: frango empanado.

Terminada sua refeição, deixou o prato perto da pilha que havia no balcão de mármore. Passou pelo armário, pegou a escova e foi ao banheiro das meninas. Raramente alguém ia lá; quando ia, era mais pela manhã. Isso, de certa maneira, era ótimo. Afinal, ela não teria de aguentar a pressão que era estar perto de outros seres vivos racionais.

Sim, quase todos achava ela estranha por escovar os dentes na escola, mas certa vez a lógica de Maria previu que ela teria problemas dentários caso não tomasse medidas. Felizmente ela estava sem o poder dela até que digerisse a galinha, então não teria que se preocupar com dores de cabeça à noite.

[...]

Tendo passado dez minutos depois das 14h, Maria finalmente chegou em casa. Demorara tempo demais andando e pensando, e perdera o ônibus das 12h45min. O próximo só passaria às 13h20min, por ter uma rota mais longa; a rota que passava em frente à rua da casa dela.
E lá estava ela, cansada por causa do sol e de tudo. Sentia-se pesada, por isso caiu no sofá. Talvez tenha caído em um súbito sono de cansaço, pois acordou 30min depois, encharcada no próprio suor. A casa estava em silêncio e só haviam duas explicações possíveis: O seu pai não estava em casa; o seu pai estava jogando Solitaire. Olhou para a casa.

Era tão pequena, tão apertada e tão cheia de pressão. O ar estava abafado e, mesmo que o chão estivesse limpo, brilhando, o cheiro de mobília aquecida pairava no ar. Da brecha que havia sobre a porta ela via alguns fortes raios solares, revelando a poeira no ar. Quando olhou para o sofá, a poeira subindo e descendo, pressentiu um espirro. Mesmo molhada de suor, levou os dois dedos ao nariz e impediu que ficasse suja de muco. Entretanto, sempre espirrava quatro vezes quando o fazia, e mais três espirros, vieram, sucessivos, nojentos e secos. No segundo Maria não aguentou mais e largou a mão, espirrando livremente. Como foi um espirro antialérgico ela não expulsou muito muco, mas foi o suficiente para fazê-la ter vontade de chorar de raiva e incômodo.

Em seguida levantou-se. Ainda estava com a farda do colégio, mesmo que encharcada. A calça branca parecia mais seca e os sapatos tinham deixado seus pés tão aquecidos que era até uma surpresa que tão tivessem cozinhado. Quando tirou a camisa, tudo pareceu ficar ligeiramente mais frio, mas ela sabia que era só os últimos resquícios de uma brisa leve - tão leve ao ponto de nem uma pena carregar - que se chocara contra o suor. Não demorou muito e lá estava o calor, de volta. Talvez um banho resolvesse. Caminhou até o quarto para pegar a toalha e despir-se.
A casa era pequena, e só havia um quarto compartilhado, e este era menor que o cômodo principal. Seu pai estava lá, sentado com as pernas cruzadas, de frente para a porta. O ventilador estava ligado, a face virando para lá e para cá. Maria quase reclamou que ventiladores e dias quentes são uma péssima combinação, mas sentiu que o quarto estava com um ar consideravelmente mais fresco que o resto da casa; e mais arrumado. Haviam duas camas, cada uma próxima a uma parede, opostas. A de Maria tinha a coberta verde e um lençol, à princípio amarelo, cuja cor havia desgastado de tanta máquina de lavar roupas. A cama do seu pai tinha a coberta e o lençol vermelhos, a única diferença estava nos tons.

Do jeito que Maria achava encontraria seu pai, encontrou. Havia um quadrado de plástico onde várias cartas estavam paradas, uma adjacente à outra. O pai cuidadosamente movia uma carta para cima de outra, o rosto um poço de concentração. Quem visse teria inveja. Maria não conseguia tanta concentração assim nem que dependesse da própria vida. Provavelmente ele não percebera que a filha já havia chegado, por isso Maria aproximou-se dele.

– PAI? - chamou.

Ele pareceu despertar de um transe:

– Quem? Maria? Chegou há quanto tempo?
– Nem sei direito.
– Ué, como não? Perdeu o relógio?
– Não, é que eu não levei ele hoje e quando cheguei acabei dormindo.
– Onde?
– No sofá.
– Talvez isso explique o porquê de você estar toda molhada de suor - ele fez uma cômica expressão de repugnância - Ave Maria, que nojo, Maria toda fedendo a suor e sujeira, cruz credo! - Olhou para baixo de novo, ainda pensando no que falar.

Ela riu.

– Vou tomar um banho. Tem como a gente jogar um pouco de banco imobiliário até a noite? Tenho nada pra fazer mesmo. Além disso, aqui tá mais ventilado.
– Tá, eu vou preparar o tabuleiro. Esse jogo aqui tá perdido mesmo.

Ele cuidadosamente arrumou as cartas e foi ajeitando-as. Ele guardava os tabuleiros preciosos dele numa enorme caixa de madeira debaixo da cama. Seu pai era um pseudo-colecionador; comprava jogos de tabuleiro, mas só os que chamavam atenção. Era um viciado nisso, passava horas no quarto, focado. Às vezes chamava umas garotas de quinze anos para jogarem; se quisesse para ficar mais sério chamava garotos de dezesseis e apostavam dinheiro. O legal de fazer aquilo era que o pai dela não era pobre, ele conseguia ter uma boa quantia para usarem quando quiser. Então ele chamava só os garotos ricos, que sempre traziam quinhentos ou seiscentos. De qualquer modo, a banca sempre ficava transbordando.

Enquanto ele procurava o tabuleiro em sua caixa, Maria se despia. Olhando para o matagal preto que havia na sua virilidade, ela sentiu que devia raspar-se. Odiava quando crescia tanto cabelo assim. Pôs-se a procurar a toalha, que misteriosamente havia sumido. Ela sempre deixava a toalha na cabeceia da cama, mas não estava lá dessa vez. Depois de um tempo, quando o pai finalmente achou o tabuleiro, ela perguntou:

– Pai, cadê minha toalha?
– Ué, não ta aí na cabeceira?
– Não.
– Debaixo do travesseiro?
– Também nao.
– Então procura no banheiro.

E lá ela foi.

A tarde veio e foi, como sempre ia. Jogaram duas vezes, na primeira, ela venceu e na segunda, ele; não discutiram dessa vez, quando ela foi parar na cadeia. Depois disso, Maria deu uma lida no livro, na sessão sobre economia, sem prestar muita atenção. Quando passava das 22h30min foi dormir.

[...]

De volta à sua sala, no dia seguinte, Maria, mais uma vez, não prestava atenção em nada. Rabiscava a folha de trás do caderno, tentando desenhar alguma coisa que fizesse sentido. Nenhuma imagem clara havia se formado, mas ela conseguia distinguir algumas pessoas de palito, com as cabeças redondas e os braços longos. Não faziam nada, ficavam lá, espalhados pela folha do caderno. Tinham o mesmo tamanho, mesma cor e mesmos membros. Todos eram iguais, mas Maria achou oportuno desenhar uma face no homem-palito que estava mais ao canto. Ele, agora, tinha um semblante assustado e desesperado, com medo de tudo.

"Bem...", pensou Maria, reflexiva; "Esse sou eu, o resto é a minha sala... Ninguém se importa com o que tá triste, afinal, têm suas próprias vidas".

Fechou o caderno. Maria não queria ficar depressiva de novo e, além disso, o professor estava dando informações sobre um trabalho que ele ia passar.

– Esses dois primeiros grupos irão fazer uma tese detalhada acerca do assunto ministrado na aula anterior, com um foco especial na aplicação prática. Ambos irão tratar do mesmo assunto, mas irão abordar de maneira diferente; serão dois lados diferentes de uma mesma moeda. O dois últimos grupos irão fazer uma simulação detalhada acerca dos problemas tratados na aula de hoje. Eu não mostrei as soluções por esse motivo, Alexandre - falou ele, dirigindo-se para um aluno no canto. - VOCÊS irão trazer as soluções e eu vou avaliá-las. Lembrando que vou levar em conta cada detalhe mínimo que eu achar valer a pena apontar. São oito diferentes tipos de situações que requerem análise detalhada. Os líderes decidem quem fica com qual problema. Eu quero a apresentação e um documento com informações sobre a maneira como abordaram o assunto ou como resolveram os problemas. A entrega será daqui a duas semanas. Lembrando: as principais avaliações serão individuais; a avaliação por grupo requer outro tipo de trabalho.

"Ótimo", pensou Maria. Não era ótimo. O tempo estava razoável, dava para realizar as pesquisas em livros que haviam espalhados pela biblioteca da Parte Um. Ela iria se informar sobre o grupo dela mais tarde. No momento ela só anotou o que o professor falou. Depois dele dar os detalhes necessários começou a falar sobre gráficos. Todos os alunos anotavam o máximo que podiam em seus cadernos.

E assim o tempo na sala passou. Das 9 às 13h50min Maria resolveu prestar atenção na aula, definitivamente. Tantas porcentagens, relações, gráficos e tabelas que lentamente sua cabeça começou a doer. Os números que havia escrevido no caderno estavam flutuando pela folha inteira. Nenhum fazia sentido ou tinha relação com nada. Eram simplesmente coisas aleatórias sem representação. Ela sabia que nenhuma empresa que tinha como base o Delta Star poderia manifestar tantas coisas aleatórias. Além disso, qualquer conta que tivesse de ser feita ela podia usar um site de pesquisas ou até uma calculadora científica.

O ápice da sua desordem cerebral e lógica foi atingido quando ela ficou dois minutos olhando para uma conta de multiplicação entre duas porcentagens, com mais dois valores numéricos decimais ao lado, na fila para serem usados na operação. Quando foi finalizar a conta, sua mente estava tão cansada que mal conseguia saber porque estava lá. Aquela sala era frequentada por Maria durante seis dias da semana, mas nesse momento pareceu tão estranha, como estivesse lá pela primeira vez; e não gostasse dos arrepios que lhe subiam costas acima. Não sabia como havia chegado a esse ponto, só que queria sair de lá.

Olhou para os lados e viu seus colegas de classe com os lápis e canetas movendo-se, rápidos, contínuos, implacáveis. As operações eram resolvidas em questões de segundos. Os gráficos, as tabelas com as referidas porcentagens e, principalmente, as respostas chegavam aos montes, sucessivas e infindáveis. O professor havia passado diversas folhas com várias questões para prática de cálculos. Aos alunos isso não representava problema ou ameaça.

Maria, por outro lado, havia sido tão desgastada mentalmente que agora se sentia um lixo. Não alcançar os níveis tão altos que seus colegas passavam facilmente a fazia sentir-se incompetente e rebaixada: uma completa perda de tempo. Esses pensamentos ecoaram em sua mente durante todos os 20 minutos que restaram. O professor, então, liberou a classe, anunciando haviam terminado aquele dia de aula. Estavam todos livres.

Alguns alunos sempre ficavam mais duas horas em Peacewings. A biblioteca que haviam construído recentemente estava repleta de livros grandes e úteis. Sempre podiam ver conteúdos novos e revisar os anteriores para fixar na mente os conhecimentos. Sem falar que, às vezes, se reuniam em enormes grupos para fazerem simulações de situações reais em que enfrentavam crises econômicas em empresas ou quedas de investimento. Passavam horas lá, mexendo em papeis, gráficos, fazendo contas e estabelecendo metas estratégicas. O tipo de coisa que Maria preferia distância.

Andou com cautela pelo refeitório. Como ela havia sido liberada no horário normal - não mais cedo, como ontem - havia poucas pessoas comendo. O ensino fundamental saía uma hora mais tarde e as crianças só iam vir à noite. Isso deixava o lugar com uma em cada três mesas ocupadas, às vezes com dois ou três pessoas, em situações diversas. Tinham duas cadeiras, em específico, onde apenas uma pessoa sentava: uma estava bem no meio, com um garoto branco, magro e cabisbaixo, e a outra cadeira, muito discreta, estava no canto, e a pessoa que estava sentada...

Era uma garota com cabelos lisos e pretos, muito bem cuidados. Sua pele era branca, e o rosto tinha um certo toque de beleza. Pelo ângulo que Maria estava, era possível olhar para o rosto, mas não para os olhos, que estavam virados demais para o outro lado.

Enquanto ela olhava uma sensação de frio invadiu o corpo de Maria. A temperatura estava bem alta, mas, por dentro, Maria se sentia presa em uma sala com um ar-condicionado na mais baixa temperatura possível. Sua memória se encheu de lembranças ruins do passado, um certo tom agridoce de felicidade e tristeza onde devia haver apenas felicidade. Não sabia porquê, mas subitamente quis chorar, correr, gritar e se esconder.

Parada, no meio do refeitório, Maria lembrou-se de quando tinha oito anos. Estava no lado de fora da casa dela, dentro do carro do padrasto. A chuva havia começado desde a tarde e até a noite não tinha parado. Alguns trovões eram ouvidos à distancia, antecedidos por um relâmpagos que cortavam o céu de Lancing Lord. Ela nunca teve medo de trovões, então devia estar ansiosa por outro motivo. Dentro do carro o ar estava horrivelmente frio. A temperatura lá fora estava baixa, dentro estava pior. Não havia necessidade de ligar o ar-condicionado, mas mesmo assim seu padrasto ligara.

No lado de fora estavam ele e uma mulher, a quem Maria desconhecia - ou se esquecera de quem era. Ela só conseguia olhar sua silhueta através da janela do carro, fortemente destacada pelos postes de luz. Seus cabelos eram loiros, provavelmente pintados, e estavam amarrados em um rabo de cavalo, molhado pela chuva. Era bem magra e parecia um pouco velha e familiar. Gesticulava em direção ao carro enquanto claramente gritava com o padrasto. Sua face estava na memória de Maria, em algum lugar, mas, por mais que tentasse, não conseguia juntar tudo em uma coisa que fizesse sentido.

Ela e o seu padrasto, cujo nome há muito esquecera, discutiam acerca de alguma coisa, mas Maria não tinha como saber o que era. Estava mais concentrada em respirar e manter-se aquecida diante do pesado frio que dominava o interior do carro.

Alguém falou com ela, mandando-a de volta à realidade.

– Ei, sai da frente, porra, que diabo que tu fazendo parada aí? - uma voz masculina gritou detrás dela.
– Me desculpe, eu tô só...
– Não tô nem aí - foi embora, passando direto.

Naturalmente, Maria se recompôs, lembrando-se que ia pegar o almoço. Olhou mais uma vez para o canto, onde havia a cadeira ocupada. A garota agora olhava de volta, e seus olhos...

Mesmo de longe se destacavam em relação à qualquer outra característica. Eram azuis, brilhantes e frios. Ela estava sem expressão nenhuma, mas ainda assim Maria sentiu que era odiada, o que era um tanto estranho, visto que no outro dia ela estava muito preocupada em se desculpar depois que as duas se chocaram.

Não precisou dos poderes e nem de profundo pensamento pra Maria perceber, mais uma vez, que ela era mutante, seja para o mal, seja para o bem. Para evitar suspeitas, resolveu desviar o olhar e seguir em frente. Para a fila, sem nem olhar de novo. Alguns passos e estava prestes a pedir a comida. Não tinha muita gente lá naquela hora, então pagou seu almoço - porco, arroz e feijão - e se dirigiu para uma mesa desocupada.

Enquanto movia os olhos para os lugares disponíveis, parou, deu meia volta e fitou a garota. "Quer saber? Chega de mesmice!".

– Oi - disse Maria, sentando-se de frente para ela, colocando a bolsa na cadeira ao lado

Perto a sensação de frio atenuou-se. Ou então foi interrompida quando sua atenção voltou-se completamente para Maria.

– O que você tá fazendo aqui? Eu já pedi desculpas por ontem.
– Não vim pra te ouvir se desculpar - disse Maria, mexendo na comida com a colher e a faca.
– Então o quê? Fazer uma amiguinha? Não quero papo com você, Maria - não vacilou quando aquela desconhecida falou seu nome.
– Eu não quero fazer amizade com você - disse Maria, com a comida na boca. Sempre que falava de boca cheia tinha o cuidado de por a mão direita na frente dos lábios. - Só vim sentar aqui porque não tem outro lugar.

Ela ficou em silêncio, olhando através da sala. Enquanto mastigava, Maria fitava o rosto dela. À princípio pensou que fosse delicado, mas agora via duras marcas, quase ásperas. Dava a impressão de que envelhecera e usara uma poção para voltar à juventude, que funcionara com oitenta e nove por cento de eficácia. Isso, contudo, em nada influenciava a beleza que Maria viu. Em contrapartida, ressaltava a natureza do rosto dela, acentuada pelo cabelo, que parecia metade liso, metade cacheado.

– O que foi? - perguntou ela.
– Nada, tava só te... Olhando.
– Por quê?
– Você é bem bonita - disse Maria, levando outra colher à boca.
– Ah, é?

Ela, agora, examinava Maria de cima a baixo, com uma sobrancelha erguida. O frio havia sumido completamente e começava a dar lugar para o calor.

– Sim, meu nome é Maria, qual o seu?

Ela hesitou, ainda observando, mas respondeu:

– Ashley.
– Prazer em conhecer - não se dignou a estender a mão, apenas levou outra colher à boca.
– É, tanto faz. Ainda não entendi porquê você está aqui. Pode se retirar, por favor?
– Ual, nossa, Ashley... Sabe, não precisa ser assim, eu sou legal.
– Não me interesso se você é legal ou não, Maria.
– Mas você se importa! - ela ficou em silêncio. - Viu?
– Olha, quer saber? Eu tô indo embora! Não venha atrás de mim.

Apoiou-se na mesa para levantar-se; Maria aproveitou e agarrou o braço dela com a mão. Era frio ao toque, fazendo a mão de Maria parecer quente. A sensação natural foi de recuo, afastando a mão o mais rápido possível. "Mas o que...?", pensou ela, desconcertada. Teve o cuidado de não expressar a confusão e parecer confiante quando falou:
– Ah, não, não vai! Você parece ser legal, fica mais um pouco. Eu juro que vai ser uma interação bem... - pensou na palavra que despertasse a curiosidade dela - Poderosa!

Ela ficou subitamente hesitante, olhando desconfiada, até que se sentou de novo. Os olhos dela eram a mais óbvia desconfiança incorporada.

– O que você quer, afinal? Diga logo, ou eu vou ter que...
– Que o quê? - tornou a levar a colher à boca.
– Você vai saber se não falar logo.
– Bem, an, Ashley, eu quero uma amiguinha nova, em quem eu possa confiar para fazer minhas loucuras.
– Eu já disse que não quero sua amizade, garota.
– São loucuras que te interessariam.
– Duvido muito.
– Quer que eu te mostre?
– E você confia em mim pra isso? - o sarcasmo dela parou Maria.
– Olha, senhora, eu...
– Senhora? Eu tenho dezoito anos!
– Sério? Não parece.
– Como não parece? - ela agora pareceu subitamente assustada, o que só a denunciou ainda mais. Maria agora tinha certeza que ela escondia uma idade mais velha - Ta me chamando de velha?!
– Sério? Essa é sua melhor defesa? - Maria engoliu o bolo alimentar e preparou outra colher. A comida estava com um gosto esplêndido. - Ashley, eu não sou burra, ok? Fica calma e age naturalmente comigo. Eu sei que você não é assim. Tu não se importa em parecer velha ou nova.

Dessa vez foi tudo palpite. Maria, de fato, não fazia ideia de quem era Ashley, nunca a vira e era a primeira vez que falava ativamente com aquela garota. Nem sabia que se era garota mesmo, podia ser uma mulher com vinte e quatro anos, uma vilã infiltrada à busca de possíveis mutantes com catorze anos. Todo cuidado era pouco, e Maria não estava com nenhum. No momento, escondia o máximo possível seu pulso, mas quanto ao olhar, não podia fazer nada a não ser torcer para plantar em Ashley a dúvida quanto às possibilidades de ser ou não mutante.

– Olha, eu não sei quem você é, mas tá me assustando - o tom dela indicava nervosismo. - Você não me conhece.
– É o quê? Eu? Te assustando? Moça, toda vez que eu olho nos seus olhos eu sinto frio, sua presença diminui a temperatura do ambiente e você parece que tem hidrogênio ao invés de sangue debaixo da carne! EU devia estar assustada!
– Qual é o seu problema, garota, me deixa em paz! Me desculpa eu não cruzo mais caminhos com você. Me deixa!

Maria quis rir diante da reação de a Ashley. Considerou a possibilidade dela estar fingindo medo ou de estar assustada o tempo todo e fingir não estar; ao invés de rir, levou outra colher à boca. Sua comida estava chegando à metade.

– Ashley, dá pra você se acalmar? Entenda: eu estou do seu lado. O que você estiver querendo, eu tô também. Não vou te fazer mal e nem imagino como poderia.

Sua expressão não se suavizou nem um instante, tampouco pareceu mais aliviada. A prova disso foi o aumento de temperatura. "Um padrão bem esquisito... Aumenta quando ela tá nervosa, diminuiu quando tá sob autocontrole... Ai, que saudade do meu poder!".

– Como eu tava falando, você não tem dezoito anos. Eu sei que não. Qual a sua idade?

Ela hesitou, olhou para os lados e começou a bater no pé no chão, ainda mais nervosa.

– Vinte e cinco.
– Isso! Você me falou algo importante! Estamos progredindo! Prevejo uma longa amizade.
– Sai fora, eu tô te avisando!
– Vai fazer o quê? - toda a cautela que Maria já não tinha se transformou em autoconfiança. Aquela mulher parecia, à princípio, determinada e profissional, mas somente algumas perguntas fizeram Maria sentir-se sobre o completo controle. - Esbarrar em mim de novo? Que eu saiba o máximo que tu pode é arrumar uma briguinha à tapa no refeitório, que vai resultar em expulsão sua, quando descobrirem sua idade, e uns dias de serviço pra mim nos banheiros infantis caso eu não queira perder um curso do qual eu já nem quero fazer parte.

Ashley, agora, amarrou o rosto, parecendo completamente indefesa. Evitava olhar diretamente para Maria e balançava muito o pé. "Meu deus, ela é muito linda..." O cabelo meio liso, meio cacheado, longo, caía sobre seu ombros, até a altura dos seios, que eram bem grandes. Ela usava a farda do colégio, então o máximo que podia ver era o nome "Peacewings" curvar onde os seios se destacavam, como duas enormes montanhas. A face dela tinha os traços de uma pessoa mais velhas, mas estavam muito bem escondidos, tanto que Maria só percebeu depois de olhar profundamente, no dia que caíram. A voz dela era bem melodiosa, boa de ouvir. Sua pele branca recebia de complemento estético os olhos, com as pupilas azuis.

– Entendeu agora a ameaça que eu sou pra você, Ashley? Posso ferrar muito sua vida, então acho melhor você começar a responder minhas perguntas.
– Por favor, me deixa em paz!
– Primeiramente - Maria lançou um relance à bolsa, ao seu lado. Era sua única defesa contra o que estava por vir. - Você é Herói ou Vilão?

Um longo silêncio se instalou após a pergunta. Maria simplesmente voltou a comer, como se não fosse uma pergunta muito importante. Pra falar a verdade, era perigosa. Se Ashley fosse uma vilã, Maria estaria indefesa. Mesmo que a garota estivesse assustada com o que lhe fora dito, os Vilões pareciam se considerar superiores aos Heróis, sem motivo aparente. Muito provavelmente consideravam que ser Vilão era uma justificativa para praticarem o mal. "Cambada de inúteis desgraçados. Vou torturar psicologicamente essa garota, eu juro!".

Geralmente sua ausência de cuidado acontecia quando não tinha o auxílio do seu poder. Se tivesse pleno uso dele, poderia analisar cada detalhe da expressão facial e corporal de Ashley e assim saber as possíveis respostas da garota, até determinar se era Vilã ou não. O que fizera até ali fora puro improviso, e estava prestes a dar resultado, positivo ou não.

Quando Maria engoliu o bolo alimentar e resolveu voltar a olhar para Ashley, se deparou com duas pupilas azuis, assustadas. Seu nervosismo foi completamente abandonado quando percebeu que ELA era a ameaça, não Ashley. "Mano, se eu causasse isso em mais pessoas...".

– Sou Herói. Por favor, não me obriga a te matar, vai foder com meu disfarce.
– Me matar? Do que você tá falando?
– Eu sou umas quatro vezes mais poderosa que você. - sua voz ainda expressava medo, o que transformou a confiança de Maria em uma súbita sensação de dúvida. - Posso te fazer ficar com depressão de uma hora pra outra, a ponto de você se matar. Sei transformar cada memória feliz sua em melancolia e desespero de uma hora pra outra. Transformo suas lembranças tristes, de emocionais para físicas, e posso te levar a uma descarga emocional que pode ser fatal.

– OHO, calma aí, Ashley.

Maria, então, lhe mostrou o pulso. Uma bolinha verde flutuava em meio às suas veias, lembrando uma forma tridimensional. Recordou-se dos caras estranhos que lhe fizeram a pergunta mais importante da vida dela, quatro dias depois do seu aniversário de dezoito anos. Pareciam dois médicos, com a diferença de um era completamente oposto ao outro. Tiraram-lhe um pouco do sangue e a mandaram embora, dizendo-a então que era parte dos Heróis. A partir daquele dia sua vida mudou drasticamente. Era frequentemente perseguida nas ruas por homens e mulheres que mantinham suas faces e identidades ocultas em capuzes ou jornais. No começo Maria pensou que era paranóia, mas não tardou até que seus poderes lhes forçassem a juntar os pontos. A única confirmação que precisava veio quando um dia, antes de ir para o colégio, observou um grupo de pessoas com roupas normais, conversando ao lado de um caminhão cheio de gás de petróleo liquefeito. O caminhão ultrapassou o ônibus escolar assim que aquela menina e sua amiga loira entraram.

A mão de Ashley estava surpreendentemente quente ao toque, quando ela mexeu no braço de Maria, passando a mão por cima do seu pulso.

– Hum, me desculpe por ser tão rude - sua voz voltara ao normal, tom equilibrado e ausente de emoções - "Ela estava fingindo o tempo todo?". Maria afastou esse pensamento, com a argumento de que a temperatura ainda estava alta. - Eu achava que você era um deles.
– Vilão? - levou outra colher à boca. Estava quase acabando.
– Sim, Maria. Você chegou aqui exibindo um relatório sobre mim, mostrando minhas fraquezas, queria que eu pensasse o quê?
– Eu ofereci minha amizade e você tava cagando!
– É óbvio, né? Nesse mundo de Heróis e Vilões você sabe que a gente precisa ser cauteloso! Pelo menos setenta por cento dos mutantes não passa dos trinta-e-cinco anos. Eu pretendo viver até os oitenta! Aproveitar o tempo de vida de um mutante normal.
– E qual é?
– Cento e cinquenta anos.
– Nossa - Maria estava impressionada. Sempre achou que fosse o mesmo que humanos, afinal, o único aspecto que havia observado de diferente em relação aos humanos era seu poder de prever acontecimentos baseados em lógica.
– Sim. Você parece impressionada, já devia saber disso.
– A pessoa que me introduziu ao conceito desse mundo de Heróis e Vilões morreu em um acidente de ônibus. Dois Vilões arrancaram a carcaça para matar uma garota e aproveitaram a chance para fazer uma chacina.
– Nossa, que cruel.
– Sim. Odeio Vilões.
– O que eles fizeram comigo não tem perdão. Enquanto eu puder, vou acabar com todos os Vilões que eu ver entrar no meu caminho.
– O que fizeram?
– Posso confiar em você?
– Com certeza. Você pode até negar minha amizade, mas eu não nego a sua.
– Bem... eles... invadiram minha antiga... Casa. Capturaram meu pai, meus amigos, mataram uns outros... Na verdade, nem sei se ele ainda tá vivo. Podem ter matado ele ou torturado atrás de informações... não sei, só sei que fizeram meu irmão menor quase se matar por causa de uma garota que morreu. Sério, Maria, só a mãe dele pôde salvá-lo, e por isso sou muito grata a ela.
– Qual a idade do seu irmão?
– Dezoito. Eu até visitaria a casa onde ele morava com papai, mas é muito perigoso. Alguns dos meus antigos "amigos" trocaram de lugar.
– Heróis? Trabalhando com Vilões? Como isso procede?
– Não procede. Me parece que a alienação de Leatrice é uma farsa.
– Olha, você também chama de alienação - Maria engoliu o último pedaço do porco, com os restos de arroz. Colocou a colher dentro do prato de plástico torceu para não ter sujado a boca.
– Sim, e é uma coincidência assustadora que você também o chame assim.
– De fato. Por que você acha que é uma farsa?
– Não acontece nada com os Heróis que trocam de lugar. Não sei que diabos é isso.
– Não, Ashley, alguma coisa deve acontecer. Eu me lembro de alguma coisa assim que meu instrutor falou.
– Era homem ou mulher?
– Mulher.
– E por que você fala instrutor?
– Tô usando aquele sentido que engloba todos.
– Chama de mulher na próxima vez, ok?
– Por quê?
– Me incomoda - disse Ashley, seus lábios curvando-se em um leve sorriso.
– Tudo bem. Ela me falou alguma coisa sobre distúrbios mentais que eu não me lembro agora.
– Sério? Essa é nova, depois você pode me falar mais sobre isso?
– Posso com certeza. Mas só quando eu lembrar.
– Por falar em lembrança você me fez pensar no porquê de eu estar aqui, em Peacewings. Eu tava procurando por uma tal de Fernanda, você conhece?
– Não... Nunca ouvi falar. Fernanda de quê?
– Araújo. Me disseram que ela faz um desses cursinhos furados para engenharia, mas desde que eu cheguei aqui ela não apareceu.
– O que você queria com ela?
– É que ela conheceu um "amigo" do meu pai. Não era amigo tão profundo quanto o outro, mas ainda era. De acordo com minhas escassas informações ela foi ajudar naquele conflito entre gangues que resultou na morte de um pessoal na Parte Três.
– Aquele perto do prédio comunitário?
– Sim, esse mesmo. De acordo com o que eu li ela foi com o amigo do meu pai, mas nenhum dos dois voltou. Na busca por corpos a polícia achou os reféns e alguns bandidos, mas nenhum corpo de mulher cuja identidade fosse Fernanda.
– Me desculpe, Ashley, mas eu nunca ouvi falar dela. Você já perguntou pros amigos de classe, não?
– Já, mas ninguém sabia muita coisa sobre ela. Me disseram que ela até vinha para as aulas antes, mas ficava isolada no canto da sala.
– Devia tá triste.
– O mais provável...

Quando nenhuma delas falou mais nada por um bom tempo, Maria ficou pensativa, até que teve uma ideia:

– Eu posso te ajudar com isso e tals, se você quiser.
– Ah, não, me desculpe - disse Ashley, calmamente; - eu trabalho sozinha.
– Trabalha? Quanto você tá ganhando?
– É uma expressão - seu tom indicava obviedade. Levantou uma sobrancelha - Qual a sua... o seu poder?
– Agora, agora não tenho como te mostrar, eu comi galinha ontem. Mas eu tenho a capacidade de "prever o futuro".
– Não existem videntes.
– Não foi isso que eu quis dizer, porra. Eu sei ligar acontecimentos lógicos e organizar em uma série de eventos.
– Como assim?
– Tá vendo essa colher? - Maria ergueu a colher na frente de Ashley; - Vamos fingir que eu jogo no meio da sala. Com minhas habilidades, eu saberia usar a influência da resistência do ar, o melhor ângulo para lançar, a força e tudo mais para fazer ela acertar o alvo que eu quero.
– An... - ela não parecia muito impressionada.
– E tem mais! Se eu tivesse com meu poder agora, poderia ampliar minha capacidade tátil pra medir a temperatura da sala e como isso afetaria o temperamento das pessoas e tudo.
– Tipo uma... detetive?
– Sim, exato. O problema é que eu sempre fico com muita dor de cabeça porque eu não tenho completo domínio e às vezes eu começo a pensar nisso involuntariamente. Por isso comi a galinha ontem.
– Maria, você tem dezoito anos, já colocou o selo e ainda cima esteve presente quando Vilões fizeram investidas. O que você quer dizer com "não tenho completo domínio"?
– Eu já disse, meu instrutor... minha instrutora morreu naquele ônibus. Ela simplesmente sabia a história, mas não como controlar os poderes. Ela tinha outra habilidade.
– Qual?
– Alguns sentidos dela eram mais aguçados. Não tem nada haver com lógica e essa loucura toda. Por favor, moça, eu acabei de te conhecer, mas você parece ser legal pra caramba. Minha vida tá um saco e eu me sinto ociosa! Eu quero exercer meu papel como Heroína, vai, me aceita.

Ashley olhou para Maria durante alguns segundos, parecendo analisar todas as possibilidades antes de tomar uma decisão. Subitamente, quis desejou a fundo que ela aceitasse para ver se mudava um pouco o rumo da vida. Já estava sobrecarregada de tanta uniformidade e uma rotina medíocre. Ela era uma Heroína, seu dever era combater a ameaça ao bem-estar e não ficar se acabando de estudar para conseguir um emprego ainda mais monótono.

– Eu não posso andar com uma garota que não domina os próprios poderes, Maria, mas eu posso te ajudar a melhorar isso aí. Eu conheço um amigo que manja desses assuntos.
– Sério? - ela começou a ficar tomada por uma felicidade extrema.
– Sim, ele pode te ajudar a ter melhor controle, mas não cem por cento, ele não é um professor.
– Existem professores, tipo, treinados para isso?

Ashley riu, os olhos azuis fitando Maria com um fascínio novo:

– Garota, você ainda tem muito a aprender. A gente se vê de novo, mais breve do que você pensa.


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Notas finais do capítulo

a edição da historia tambem ta em andamento, mas eu receio que a frequência de postagem continuará baixa.
qualquer novidades, to anunciando na página do facebook; até n.n/



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