Heróis e Vilões - Um mundo de poderes escrita por Felipe Philliams


Capítulo 14
Fernanda sente as vibrações


Notas iniciais do capítulo

Aeeeeeewwwww terminei finalmente esse capítulo, mesmo depois de mais ou menos um mês ;-; trabalhei duramente nesse capítulo e eu espero que a tensão dele não lhes afetem na vida, ok, meus amores? Serio, cara, amo muito cada um que está aqui.



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A professora nova até que era interessante. Parecia ser do tipo que ministrava a aula dando exemplos que fariam qualquer um entender, mesmo que a matéria fosse aquela considerada mais chata do colégio: geografia. Eram poucos os alunos do novo ano que gostassem disso, e Fernanda definitivamente não estava entre os que aprovavam. Ela não tinha interesse em ficar estudando mapas e coordenadas, muito menos as características das bacias hidrográficas que circulavam Lancing Lord para o norte.

Só havia UMA pessoa na sala inteira que gostava dessa matéria: Erica Anne. Ela era o tipo de aluna que tiraria dez em todas as matérias somente para ter o prazer de olhar os outros nos olhos e dizer: "que pena", de uma maneira sarcástica, talvez até desdenhosa. Usava um óculos pequeno, destacando as feições de seu rosto, macias e rechonchudas. Seu cabelo era sedoso, causava inveja, e estava sempre amarrado num coque com duas pequenas mechas caindo pela direita e esquerda. Ela não parecia forte, não pelo menos até você vê-la jogar queimado.

Fernanda achava Erica uma pessoa interessante, que daria uma boa amizade, mas a garota era orgulhosa, e pessoas orgulhosas não se davam bem. Erica até que ensinava bem a aula, mas isso não despertava o interesse de Fernanda, que simplesmente rabiscava o caderno. Aliás, o porquê dela estar recebendo aulas de geografia ainda era desconhecido. Se a memoria estivesse boa, Fernanda estava fazendo um cursinho de Engenharia, não de geologia.

Quando bateu o horário intervalo, Fernanda Araújo foi até Joel, o gamer, e perguntou suas dúvidas. O cara respondeu todo enrolado e nervoso, como se Fernanda o assustasse, mas ela entendeu que o professor deles estava resfriado e não pôde vir. Isso a deixou mais calma.

Quando a professora voltou, Fernanda estava com uma dor de cabeça que aparentemente surgira do nada, e pediu pra sair. Com a dor latejando brutalmente ela conseguiu caminhar até a coordenação, onde ligaram para Luzia, pedindo por confirmação para liberarem Fernanda, e a mandaram ir.

À tarde a dor não passou, mas diminuiu mais. Sua mãe não havia ido ao serviço hoje, o que a fez ficar e aplicar panos húmidos quentes sobre a testa de Fernanda, que cochilou um pouco. Ela acordou quando eram seis horas. A televisão estava ligada no canal de filmes e estreias. Estava passando um filme clássico, não estreia, e Luzia estava ao lado da filha, com um lençol que cobria ambas. O pano havia ficado frio e relaxante.

A mãe de Fernanda sorriu quando viu a filha fechar os olhos, relaxada.

– Boa noite, Fernanda. Tá melhor?

A dor não havia passado, simplesmente estava mais fraca.

– Sim.
– Consegue levantar?
– Posso tentar.

Saiu de debaixo do lençol e forçou-se a levantar do emaranhado de pano. A dor a atingiu e ela gemeu, levando a mão aos olhos.

– Não, não tá melhor. Fica aqui, vou chamar Mariana - disse Luzia.
– Não, mãe, não precisa - disse Fernanda. - É só uma sensação, vai passar.
– Fernanda... - a mãe a olhou com aquele semblante de "tem certeza?".
–Não, mãe, ta... tudo bem... sério, não tem com o quê se preocupar.... - havia muito com o que se preocupar, mas Fernanda não queria encher a mente de sua mãe com tantos problemas. Claro, Luzia poderia saber de tudo, apenas se lançasse um olhar.
– Minha filha... - Luzia olhou fixamente nos olhos de Fernanda por alguns segundos, e uma lágrima brotou de seus olhos. - Fernanda, prometa-me que vai fazer de tudo o possível para estar sempre ao meu lado...

Antes de ela sequer falar o que havia pego da mente de Fernanda, a garota já sabia. As imagens da última luta de Marcela ainda estavam vivas, e eram esmagadoras. Os flashes, os gritos e o pavor esculpido no rosto de alguém experimentando seus últimos momentos de vida. Seu semblante ainda provocava pesadelos em Fernanda. Ela estava gemendo, com os olhos abertos fixados no vazio, olhando para Fernanda, mas ao mesmo tempo não olhando, a dor tomando-lhe o corpo e mantendo-a imóvel no chão... Mas ninguém se mexia, ninguém esboçava nenhum sinal de que iria ao socorro dela.

Havia alguma coisa estranha naquele lugar. Uma espécie de força dominava a todos, impedindo qualquer um de se aproximar dela. Fernanda se lembrava de lutar contra seus músculos, contra seus ossos e contra seus instintos para tentar chegar perto de Marcela, mas quanto mais força punha no ato, mais forte era a repelia. Todos os mutantes, Heróis ou Vilões, ao redor dela tentavam alcançá-la, lançando projéteis de fogo, eletricidade e até mesmo alguns objetos que eles conseguiam levantar, mas assim que chegava perto de Marcela, tudo desvanecia, como se fosse alguma ilusão. Estavam todos colocando suas forças ao limite, então Fernanda não teve como se culpar. Na hora ela, desesperada, soube que não podia fazer nada, exceto assistir e ficar, quieta, inútil e imóvel, olhando enquanto a vida de sua amiga, sua conselheira, rainha, escrava, plebeia, amiga, irmã, esvai-se junto às memorias que ela tinha.

Outros fragmentos da luta já começavam a vir à mente de Fernanda, mas os olhos da mãe piscaram continuamente e ela despertou do transe do pensamento.

– Sim, mãe. Prometo.

Então Luzia abraçou Fernanda tão intensamente que o conforto proporcionado pelos braços da mãe quase a fez esquecer Marcela. Quase. Isso e o fato de estar fazendo uma promessa vaga a fez se sentir psicologicamente pior.

[...]

Quando Luzia tentou ver o guia de programação na televisão o relógio estava indicando as 19h23. Fernanda havia assistido um filme de animação ao lado de sua mãe fazia uns minutos, mas estivera inconsciente de tudo o que lhe acontecia. Seus pensamentos estavam vagando longe, para além de uma tela que exibia atores. Sua vida estava vagando na realidade, a verdade onde vivia, o mundo onde os humanos jamais poderiam viver.

Um mundo de poderes. Um mundo inconscientemente desafiado por humanos que estão o tempo todo limitando seu conhecimento a coisas materiais. O lugar que prova os limites de um ser capaz de morrer ou nem isso. O mundo dos mutantes. E era lá que ela vivia, era lá que tudo acontecia e fazia a luta pela vida ser mais intensa.

Fernanda ergueu-se do sofá. Sua cabeça ainda estava com os mais fracos resquícios de dor e isso fez sua visão balançar um pouco. Caminhou até a cozinha, abriu a geladeira e pegou uma garrafa de água. Os goles desceram suave e deliciosamente pela garganta, saciando sua sede. Quando voltava para a sala, ouviu o toque do telefone. Fernanda não soube o que, nem como, mas alguma coisa lhe avisou que devia atender àquele telefonema. Talvez fosse impulso, ou as forças voltando. Apressou o passo e antes que sua mãe se levantasse, Fernanda falou:

– Alô?
– Fernanda? - a voz soava estranhamente familiar.
– Sim, quem é?
– Aqui é o Albert.

Fernanda demorou um pouco para se lembrar de quem era Albert, o terceiro líder do Refúgio Mutante. Albert trabalhava administrando o local ao lado de Gustavo e Gary. Albert não estava lá no dia em que Marcela e Fernanda foram introduzidas ao local, mas algum mutante havia falado quem eram os líderes. A voz de Albert era ligeiramente aguda, mas predominava grossa. O telefone chiava um pouco, mas, por Fernanda estar acostumada, conseguia entender algumas palavras.

Fernanda lançou a sua mãe um relance.

– Fala, Iolanda.
– Fernanda, você tem que vir pra cá AGORA. É uma emergência, venha para cá, depressa! - ele deve ter entendido o que Fernanda quis fazer, por isso não perguntou o porquê da Iolanda.
– Sim, claro, se mamãe deixar.
– Se ela não deixar, vamos cuidar disso, mas venha agora!
– Sim, claro - Fernanda apertou o botão mute do telefone. Agora ela poderia falar qualquer coisa e Albert não escutaria. - Mãe, posso ir na casa da Iolanda? Ela quer ajuda no trabalho de casa.
– Mas tu não tava cheia de dores aí? E tem mais, quem é essa Iolanda? Você ainda não me falou sobre essa.

"Deve ser porque ela não existe", pensou Fernanda.

– É que eu esqueci... Eu conheci ela hoje, antes de voltar pra casa. Ah, mãe depois eu falo mais, por favor, vai ser legal. O trabalho é sobre matemática.

Fernanda percebeu que havia falhado. Não teria como ela saber sobre o assunto de um trabalho porque ela havia ficado em casa. Além disso o professor não havia ido naquele dia. Tarde demais para concertar o erro, ela só pôde conter a cara de desespero dentro de um semblante de cachorro com fome.

– Você gosta de Matemática, né?
– Mãe, não é esse o curso que eu to fazendo desde janeiro?
– Hum, então tá, pode ir. Mas volta pra cá depois de dez horas ou você nunca vai esquecer esse dia.
– DEZ horas? É muito cedo! Que tal onze?
– Dez e cinquenta - disse a mãe de Fernanda.
– Dez e vinte.
– Dez e meia.
– Feito - Fernanda abriu um sorriso aliviado. Conseguira driblar a mãe e fazê-la não notar a dor que Fernanda sentia.. - Vou pegar a mochila.

[...]

A RM estava como nos esboços das lembranças de Fernanda. Haviam incontáveis mutantes correndo de um lado ao outro, apressados para entregar mensagens e passar informações... Ou só atrás das saídas para irem para suas casas. Fernanda ainda não havia mapeado o Refúgio Mutante, por isso não teria como ela saber onde ficava o local onde Albert se encontrava. Sua sorte era que Tiago havia teletransportado ela, por isso Fernanda teria a quem perguntar.

Então Tiago, apressado, a levou, caminhando por entre o mar de mutantes que se estendia tanto pela direita quanto pela esquerda... E Fernanda não pôde deixar de se sentir nervosa. Era uma estranha no meio de tanto mutantes que já haviam visitado aquele lugar inúmeras vezes. Ela estava caminhando para a sala de Albert, um lugar para onde talvez vários mutantes desejassem ir algum dia... E logo ela percebeu que quase ninguém quereria ser chamado para aquela sala, não naquele dia.

Tiago abriu a porta de ferro usando uma chave e o polegar. A chave havia emperrado, tamanha força e pressa que ele havia investido, e ele teve de usar o polegar para destravar a porta. Dentro da sala, Albert, Gary e alguns mutantes com armas de fogo olhavam atentos a um mapa de estratégias, disperso em uma mesa no meio. Uma luz de LED providenciava iluminação suficiente para verem os detalhes. Nas paredes haviam monitores desligados e botões por todo o lado; mini alavancas, algumas câmeras nas paredes e um alçapão. Tendo sua primeira visita àquela sala, Fernanda ficou cética quanto ao destino reservado para aqueles que entrassem pelo alçapão.

Quando Albert e Gary levantaram os olhares, Fernanda ficou mais tensa. O semblante de Gary se desfez em repulsa e indignação. Quando Fernanda achou que ele ia mandar alguém usar toda a energia em poderes, Albert aproximou-se.

– Oi, Fernanda. Vejo que sua mãe deixou.
– Sim, mas tenho que voltar às dez e meia.
– Receio que talvez demorará mais que isso.
– Ué, por quê?
– Cara, estamos em uma guerra civil! VÊ SE PODE UMA COISA DESSAS! - a voz veio de um dos soldados atrás de Albert. Fernanda achou que Gary lhe meteria um soco, mas ele apenas murmurou:
– Fica quieto, Noé!
– Opa, sim, Senhor - risinhos invadiram o local. E vinham de mulheres.
– Pois é, Fernanda - prosseguiu Albert. - Eu te chamei aqui porque fiquei sabendo que você é nova na RM, que já foi treinada por Gary e que pode controlar a terra.
– Sim, tudo isso é... verídico - Fernanda não estava conseguindo se concentrar direito. A tensão aumentava.
– Você está nervosa, e isso não é bom. Thiago, traga-me um dos médicos.
– Sim, senhor - Thiago sumiu.
– Montoya! Não temos tempo! A polícia está quase quebrando a defesa! - murmurou Gary
– Então. Essas soldados vão se infiltrar no perímetro dos humanos que estão lutando contra a polícia. Sua missão é cegá-los, conjurando nuvens dispersas de areia contra seus olhos. Não é pra deixá-los cegos para sempre e sim temporariamente! Só enquanto elas rendem eles. Entendeu?
– Senhor, aqui está - disse Thiago, assustando Fernanda e deixando-a com o coração martelando duramente em seu peito.

O médico vestia uma roupa jeans, o que, na opinião de Fernanda, era incomum. Sua calça era jeans, mas a camisa era de polo. Ele também não tinha uma daquelas máscaras no nariz, mas isso não importava. Ela logo aprenderia que na RM as pessoas não eram julgadas pelas roupas, mas sim pela importância que sua habilidade traz ao ambiente.

– Qual nome dele, Thiago?
– Justino.
– Ah, você é nordestino? - perguntou Albert, ligeiramente interessado.
– Eu sou sim - respondeu o médico. Sua pele era de uma cor profundamente morena. - Por quê?
– Nesse momento não importa. Fernanda é uma peça essencial na conquista do território inimigo, mas ela...
– ALBERT! Eu já te disse pra parar de perder a porra do pouco tempo que temos! - explodiu Gary, agora vidrado em um dos monitores
– Olha, use seus poderes e deixe-a pronta para uma guerra - disse Albert, calmo e sereno.

Enquanto Albert ia ao encontro de Gary, Fernanda olhou, sem expressão, para o médico. Seus olhos eram de um profundo tom marrom. O nariz era reto e terminava em um formato que lembra uma bolinha. Os lábios inferiores estavam rachados, talvez com desidratação. Suas feições eram grossas, ele parecia ter saído de uma guerra mundial depois de ter lutado em todas as batalhas. Nunca tendo visto ele antes, Fernanda se sentiu estranha na frente dele... Mas de algum modo ele era familiar. Fernanda não pôde deixar de sentir algum tipo de feição por ele, não aquela coisa de homem e mulher, mas sim... Um amor familiar.

E quando ele falou, sua voz era velha e cansada, o que quase fez Fernanda acreditar que ele havia voltado da guerra.

– Garota, você...
– Fernanda. Meu nome é Fernanda.
– Fernanda... - o homem olhou para ela como se estivesse tentando se lembrar de alguma coisa. Isso durou uns segundos, pois logo Gary estava encima do coitado e gritando como ele era incompetente e inútil.

O homem, agora apressado, pôs suas mãos nas têmporas de Fernanda e inspirou, fechando os olhos.

Uma aura azul começou a exalar das mãos do homem. Imediatamente Fernanda sentiu-se relaxada e todas as preocupações externas pareceram sumir. Ela de repente não se importava mais com o mundo ou com os outros, só queria experimentar mais e mais do poder da cura. Mesmo com os olhos fechados ela conseguiu ver coisas, como planetas, asteroides e estrelas flutuando em sua frente. Sua visão retorceu por um breve momento e então ela via uma luz amarela emergindo do local. Então ela estava mais relaxada que nunca, mas isso durou pouco. Ainda assim a aura azul que surgia das mãos do homem parecia enchê-la com uma estranha vontade.

Logo ela estava de volta à realidade, os olhos abertos. À sua frente, o médico olhava-a nos olhos com seus profundos tons marrons, e ele chorava. Fernanda assumiu um semblante confuso, tentando entender o porquê do homem estar daquele jeito. Talvez fosse um cisco ou apenas um desabafo por Gary ter gritado com ele, mas Fernanda não tinha tempo para isso. Ela murmurou um agradecimento e correu até Albert.

Seus semblantes alteravam-se e os sussurros antes vivos agora morriam enquanto ela chegava. Os monitores na tela estavam exibindo imagens pretas, claramente inúteis. Alguma coisa estava errada.

– Houve uma mudança de planos - disse Albert, triste. - Uma de nossas soldados morreram em combate. As outras se distraíram e perceberam que estavam encurraladas. Agora elas precisam de mim. Você vai ter me dar cobertura para eu poder ir até elas e passar as novas instruções. Sua tarefa é não deixar que eu morra.
– Por que eu? Por que não os outros mutantes? Eles são mais experientes, mais antigos. Eu cheguei agora. Ainda não experimentei a verdadeira luta.
– Eu confio totalmente em alguém que foi treinado por Gary. Os outros mutantes não querem ir. Seu poder é difícil de ser encontrado e se ainda não experimentou a verdadeira luta, como você tem essa marca verde no pulso? Além disso, não pode ficar na estaca zero, se ainda não experimentou, vai fazer isso agora.
– Mas eu não quero ir - e ela realmente não queria.

Quem respondeu foi Gary.

– Não é uma questão de querer! O Montoya não pediu sua opinião, ele mandou. E como um dos líderes desse lugar ele tem por direito mandar em qualquer um abaixo de mim ou Gustavo e você, como integrante deste lugar, tem por direito obedecer a ordens de seus superiores!

Albert sentiu-se desconfortável, mas Fernanda percebeu que ele não voltaria em suas ordens. Subitamente quis dar as costas e sair daquele lugar. Não gostava de receber ordens. Nunca gostou. Por outro lado o lugar parecia valer à pena. A vontade de deixar a RM não prevaleceu sobre a de receber ordens. Percebendo que não havia outra saída, resolveu engolir o orgulho.

– Apresse-se, Fernanda! Não temos tempo! - disse Gary e aquela voz trovejou na pequena sala.
– Eu vou - disse ela, calmamente.
– Ótimo - Albert abriu um largo sorriso. - Tiago! Faça favor.

[...]

Perto a uma casa vazia com buracos entalhados em sua volta, Fernanda e Albert começaram sua caminhada. Tiago os havia deixado ao sul daquela casa, dando ênfase ao horizonte que brilhava em flashes contínuos. Haviam também os sons: grandes estouros aleatórios, alguns contínuos e outros não. Não haviam gritos, e isso Fernanda estranhou. Em sua mente aquela luta estaria cheia de berros desesperados dos policiais misturados aos dos invasores, mas um único som ressoava por entre as paredes das casas: os sons das armas de fogo.

Enquanto Fernanda obrigava seus pés a moverem-se continuamente, pensamentos ocorriam-lhe. Em sua mente, a ideia de que uma luta poderia durar tanto tempo era absurda, estranha. Os homens haviam começado aquela batalha havia mais de duas horas. Haviam poucos homens lutando e, para os cálculos de Fernanda, aquela luta já teria tido um fim.

Mas de qualquer jeito, aquelas armas não a estavam assustando tanto quanto pensava que iriam. De alguma maneira ela sabia que haviam coisas a mais para se temer. Ela não sabia quantos invasores poderiam ser mutantes ou humanos, e isso sim a preocupava. Tinha planos de não lutar contra nenhum Vilão naquele dia.

Enquanto caminhavam, Fernanda olhava para o prédio perto do qual estavam e percebia o óbvio: não era uma simples casa vazia. Era maior do que uma casa normal se atrevia e tinham anúncios no chão, cheios de buracos, alguns pareciam ter pegado fogo e uma maioria rasgada. Era um daqueles mercados, só que lacrado e, sem sombra de dúvida, saqueado.

Chegaram na esquina; os tiros deram uma freada pelo que pareceu uma eternidade. Fernanda, esperançosa, alimentou a ideia de que talvez tivessem parado de lutar e agora ela poderia ir para casa; mas quando já ia partilhar de seus pensamentos com Albert, a algazarra prosseguiu.

Ela já ia avançando quando Albert parou-a com a mão sobre o ombro e lhe fez um aceno com a cabeça "há algo de errado!".

Os tiros estavam altos o bastante para lhes deixarem surdos à qualquer outra coisa, mas Fernanda sabia como reagir àquela situação. Sussurrou uma palavra para Albert "esconda-se". Ela deixou-se relaxar a tensão, ficou consciente de qualquer estímulo externo e de repente estava morta de cansada. A sensação era de que derretia a cada segundo; suas mãos, braços, pernas e até o cabelo começaram a desvanecer, à medida que Fernanda ordenava a seus instintos que assumissem, procurando qualquer lugar que ostentasse o mesmo profundo tom amarelado da areia.

A partir de agora, Fernanda não estava se guiando pelos olhos e pernas, mas sim pelas ondas, vibrações e instintos. Ela conseguia saber e distinguir cada grão que pertencia-lhe ou não ao corpo. Tinha em mente que um objeto inanimado que está em repouso permanece em repouso, por isso não sabia como mover-se sozinha; no máximo inclinar dois centímetros ou até menos, mas mover-se sozinha precisaria de mais adrenalina e energia.

Seus instintos retornaram-lhe com a mensagem de que não seria possível camuflar-se; teria de passar despercebida e, para isso, teria de gastar mais energia. Esperou que os ventos lhe viessem e lhe mandassem à frente, para que conseguisse mover-se; estranhamente não veio nenhum vento, mas ainda sim ela se moveu. Lembrou-se subitamente daquele cara familiar na RM e das ordens de Albert: "Use seus poderes e deixe-a pronta para uma guerra!". A conclusão veio-lhe com a certeza: o homem lhe dera energia e agora ela a estava gastando.

Os grãos de areia pura arrastaram-se pelo chão, em um lento caminhar. Cada grão recebeu a ordem para se separar: um foi para um lado e outro para trás. Ficaram tão longe uns dos outros que quase Fernanda pensou que havia se perdido. A função tátil de seu corpo focalizou-se em agir somente onde ela queria, a fim de que a energia fosse poupada. Alguns grãos caíram da calçada e caminharam através da pista de concreto mal feita.

Fernanda avançou. Os instintos guiavam-lhe implacavelmente, dando informações precisas e claras. Conseguiu saber que à esquerda havia a parede do super mercado e à direita havia uma pista. Usando a energia que tinha, aos poucos aproximou-se da próxima esquina. Uma vez lá, sentiu uma súbita sensação de arrepio, como se algo ruim estivesse acontecendo. Não demorou muito e as sensações externas, junto às vibrações, lhe indicaram aproximação. Alguém vinha tanto pelo lado esquerdo quanto pelo direito e em breve estaria em encurralada. Começou a trabalhar em uma solução para o problema. Os fragmentos do seu cérebro estavam espalhados, dispersos, longes, mas de alguma maneira isso a fazia raciocinar mais rápido. Pela tensão mínima presente no ambiente, ambos os homens dos grupos tremiam e assim ela percebeu que os dois lados estavam com medo de encontrarem alguém pelo caminho, por isso, qualquer barulho, tiro, grito, risada, fala ou coisa do gênero seria suficiente para fazer com que, talvez, ambos os grupos retornassem ao seu campo.

Mais uma vez arrepiou-se; precisava apressar-se. Fernanda Araújo, parada, começou a voltar à forma comum, dando ordens às suas partes para que se unissem e voltassem à forma humana. Saindo de suas posições, os grãos de areia retornaram perto de onde Fernanda queria aparecer, passando por lugares estranhos que lhe arrepiaram a pele.

Em sua forma normal, Fernanda direcionou uma parte de sua força para os pés, e estes assumiram um tamanho descomunal, grandes o suficiente para baterem estrondosamente no chão. E foi isso o que ela fez: ergueu os pés na altura do joelho e, com um certo esforço, desceu-os sobre o concreto do chão. Debaixo dos seus pés os lados endurecidos se dividiram, em meio a uma colisão demasiadamente forte, e partiram-se, expondo uma cratera e liberando o som que ecoou nas paredes, fugindo pelo ar.

Então Fernanda ficou parada, imóvel, ao passo que sua respiração variava constantemente. Ouvia sons, à despeito dos tiros e dos gritos assustados. Ouviu os passos de ambos os grupos e quando eles pararam. Tentou controlar a respiração e focou os olhos no meio do prédio, concentrando-se tanto na esquerda quanto na direita. O resto foi totalmente apagado e de repente ela estava vivendo para ouvir o mínimo som possível.

– Fernanda! - berrou Albert, estupidamente, atrás dela - Acho que não tem nada!

Tendo dito isto, ela sentiu uma tão súbita agitação que nem teve como fugir. Em um momento o silêncio era certo, e no outro os sons de tiros e berros desesperados explodiram naquele beco, com os invasores e os policiais a trocarem tiros desprotegidos. Os grupos haviam se encontrado.

Só quando ouviu o décimo disparo é que Fernanda lembrou-se de que tinha Albert para proteger. O tri líder do Refúgio de Mutantes estava paralisado detrás dela, com as costas de encontro a uma pequena casa e as mãos sobre as orelhas, inutilmente buscando interromper os altos e apavorantes sons que saíam das armas dos homens. Fernanda lembrou-se do que ele dissera: "sua tarefa é não deixar que eu morra.".

De repente ela tinha corpo todo em areia, da cabeça aos pés a pele humana havia sido tomado e substituída por areia, impedindo que qualquer tipo de projétil a fizesse danos. Comandou suas partes, enviando-lhes as ordens para que se alongassem e formassem uma proteção semelhante a uma parede. Correu, então, para trás, para Albert e pôs-se em sua frente, protegendo-o contra os mortais tiros que assobiavam em qualquer direção, perfurando o concreto das casas, matando as pessoas que lutavam, ferindo alguns e provocando medo em quase todos que ali estavam. Os tiros explodiam contra a parede, que cediam quase momentaneamente, mas quase ao mesmo tempo reparavam o erro.

A troca de tiros foi rápida. O grupo de policiais correu na direção de Fernanda, parando a meio caminho para conseguirem mais precisão. Provavelmente queriam ficar mais dispersos para dificultar a vida dos invasores, mas essa tática não funcionou. Os invasores davam tiros precisos. As balas pareciam mísseis teleguiados que corriam para onde lhes eram mandado. Os policiais gritavam desesperados quando levavam tiros. Manchas de sangue borrifaram nas paredes perto das quais estavam os policiais. Alguns deles ainda não haviam morrido, por isso começaram a gemer, implorando misericórdia. Fernanda quis ir lá, ajudá-los, mas algo a manteve parada.

Só quando o último policial morreu foi que os invasores notaram os profundos buracos que as balas fizeram-lhe na carne. Levaram as mãos aos lugares onde o sangue começava a jorrar, tentando desesperadamente estocá-los, mas todos sabiam que já era demasiado tarde. Nenhum deles conseguiriam estocar aquele sangue por muito tempo, sem falar que estavam longe demais de sua base e mesmo que chegassem lá, já teriam perdido sangue demais.

Quando Fernanda percebeu que nenhum deles sobreviveria mais, cedeu a proteção e deixou-se cair no chão. Não estava cansada, nem tampouco com fome. Geralmente era isso que lhe acontecia quando usava longamente os poderes. Percebeu então que não deveria reclamar. Ainda teria como proteger Albert.

– Eles já foram? - a voz de Albert estava estranhamente fraca atrás dela, mas deveria ser o medo, por isso Fernanda ignorou.
– Já, senhor - Fernanda não sabia o que responder, mas subitamente lembrou que se dirigiria a Albert Montoya, um dos poucos líderes que sabiam como agir, cujas estratégias envolviam tanto aquilo como isso.
– Ótimo - ele pareceu ficar com a um voz um pouco melhor, talvez a reverência tenha lhe feito sentir melhor. - Vamos continuar.


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Notas finais do capítulo

Receio que talvez eu demore para o próximo capítulo :(, mas não desanimem! Vou continuar dando noticias na pagina da historia no Facebook ;), ok,,até a proxima.



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