Cartas para Jane Austen. escrita por Lizzy


Capítulo 4
Capítulo três - Erro do passado


Notas iniciais do capítulo

"Dê a quem você ama: Asas para voar, raízes para voltar e motivos para ficar." Dalai Lama.
Espero que gostem!



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Quimera, 16 de maio de 2015.

Querida Jane Austen,

Pensei que estava bem. Que tinha esquecido as minhas desilusões, superado a dor e se encontrasse alguma delas reagiria normalmente, (Enganei-me!), como um velho conhecido. Não foi bem assim. Quando o vi descendo as escadas não consegui acreditar. Como se tudo dentro de mim explodisse e queimasse. Senti toda aquela baboseira de coração acelerar, pensamentos desconexos e falta de ar.  Vê-lo encarando-me com aquele sorriso que foi a minha perdição sete anos atrás, enfraqueceu-me. Saí do lugar, (depois me xinguei mentalmente por isso), fugi para que ele não percebesse o quanto tinha abalado-me. Mas, isso nem foi o pior, ele está aqui em casa. Compartilhando do mesmo teto que eu e isso machuca. Machuca, porque traz lembranças que eu jurava que tinha esquecido. Velhas paixões trazem dúvidas e confusão. Bagunçam a sua vida e depois se vão, deixando como uma cidade invadida por um tornado. Com o coração partido e os sentimentos destroçados. Não quero passar por isso. Jurei que nunca mais sofreria por amor. Não daria chances para que isso acontecesse. Porém, como vou resistir a ele se o seu sorriso é então convidativo? Se o modo como me provoca acende uma fogueira dentro de mim? Droga! Por que ele tinha que voltar?

Desde já agradeço,

Victoria Albuquerque.

I'm a mess - Ed Sheeran

Alguns minutos depois que ela foi dormir, desliguei a televisão. Passei no banheiro, escovei os dentes, peguei o cobertor onde ela tinha me falado e deitei afofando o travesseiro. Olhei para o abajur de gárgula, o desliguei e tentei dormir. Rolei na cama, esmurrei o travesseiro e acendi o abajur. Coloquei a culpa pela minha insônia no quarto, na cama, na gárgula,... em tudo até desistir e reconhecer de quem era a culpa. Como vou dormir com Vics a poucos centímetros de mim? Viajei de Paris até aqui só por causa dela e sou recebido dessa forma? Está certo que ter sido um idiota sete anos atrás não ajuda muito, porém já faz sete anos? Já era para ter superado.

Levantei. Andei até a cozinha para pegar um copo d'água. Ela já deveria estar dormindo, então não preocupei-me em vestir a blusa. Estava tentando achar um copo quando escutei o barulho da porta.

— Desculpe... eu... - Gaguejou com a voz rouca.

Balancei a cabeça dizendo que não tinha importância.

— Os copos? - Perguntei, o silêncio incomodando-me.

— Ah! Primeira porta do armário de baixo. - Respondeu.

Abri a porta que ela tinha indicado-me e abaixei para pegar o que queria. Vics também abaixou, fazendo as nossas cabeças baterem uma na outra. Ela levantou meio bamba, estendi o braço para segurá-la, mas ela estendeu a mão negando. Coloquei a mão na minha cabeça percebendo a dor. Sentei na cadeira, colocando o copo na mesa.

— Você é literalmente cabeça dura sabia? - Comentei rindo.

— Cala a boca! - Disse pegando o copo e a garrafa de água.

Colocou água no seu e deixou em cima da mesa para que colocasse no meu. Olhei para ela, enquanto bebia um gole d'água e franzia a testa. Ela foi até a pia e pegou uma faca. Senti todo o meu corpo se enrijecer.

— Opa! Acalme-se. Foi só uma brincadeira. - Falei, enquanto ela se aproximava com a faca na mão.

Engoli seco, quando ela estava a centímetros de mim. Segurou o meu braço e colocou a faca em cima do galo que tinha formado. Respirei, aliviado. Vics revirou os olhos, bufando.

— Não seja idiota! Odeio você, porém não o suficiente para arriscar a ficar numa cadeia. - Comentou retirando a faca.

Segurei a mão dela e, só por garantia, tomei a faca. Levantei, puxando o corpo de Vics para perto do meu. Ela suspirou, desviando o olhar. Segurei o seu rosto, obrigando-a a sustentar o meu olhar. Ela tinha tanto desprezo estampado neles, que a soltei. Afastou-me, saindo na direção do quarto. Sentei na sala. Não estava mais com sede e desisti de tentar dormir.

Liguei a televisão e fingi que estava assistindo por mais ou menos três horas. Fui preparar o café. Dessa vez foi fácil achar as coisas. Enquanto, procurava o pó, percebi que ela não tem nada de saudável. Só achei pacotes de salgadinhos e doces dentro do armário. Na geladeira, sorvete, chocolate e vinho. Sem frutas, nem verduras. Contudo, ainda não tinha visto nada. Abri uma porta no armário de baixo e fiquei perplexo. Estava cheio de garrafas vazias de uísque, vodca, cerveja, pinga, entre outros.

— Já fez o café? - Levei um susto, quando escutei sua voz.

— Estou procurando o pó. - Respondi. Fechando, discretamente, a porta.

— Está aqui. - Disse abrindo a segunda porta do armário de cima. - Pode deixar que eu faço. - Completou, já colocando o pó no coador.

Sentei na cadeira, tentando entender o que estava acontecendo com ela. Que Vics me odeie até que eu entendo, mas ao ponto de virar uma alcoólotra? Não. Aconteceram mais coisas com ela. Coisas que certamente não vou saber de sua boca. Elena sabe, porém não vai trair a sua confiança. Preciso descobrir sozinho.

*****

Sentei na cadeira do outro lado da mesa, para tomar meu café, Vitor permaneceu onde estava. Droga! A volta dele só comprova que eu ainda não superei. Não como pensava. Tudo está confuso. Definitivamente, voltar sete anos em minha vida não é algo que queira. Deixei isso enterrado em Porto Alegre e é lá que tem que ficar.

O destino é tão  cruel. Por que fazer isso? Estava bem antes dele aparecer, faz um dia que ele está aqui e olha só o que está fazendo comigo. Quanto tempo posso suportar? Pior! Quanto tempo ele vai ficar na cidade? Quimera não é muito grande. Uma hora ou outra vamos nos esbarrar. E como vai ser? Brigas e mais brigas? Será que consigo suportar isso?

— Vou passar no supermercado hoje de tarde. Você não come nada saudável? - Perguntou, chamando a minha atenção.

— Bem, digamos que não muito. Afinal, essa é uma das vantagens de morar sozinha. Não ter ninguém te controlando. - Falei, com irritação. - Você lembra onde fica? - Perguntei, sem saber o motivo.

— Mais ou menos. Você poderia ir comigo? - Respondeu, desafiando-me com os olhos.

Por que ele sempre tem que desafiar-me. Ah! Deve ser porque eu sempre aceito. O pior é que Vitor sabe e usa isso como uma arma. Preciso arrumar um jeito de defender-me. Não posso ficar nas suas mãos. Já fiz isso, fazer de novo é burrice.

— Sim, preciso comprar cookies. Esse é o último. - Comentei, sorrindo ao levar até a boca.

Segurei entre os dentes, provocando-o. Ele levantou, contornou a mesa e rapidamente parou do meu lado. Abaixou, puxando o meu rosto para perto do seu e mordeu a outra ponta. Foi mordendo devagar até chegar perto dos meus lábios. Deu uma última mordida, tomando o cookie inteiro de mim. Pensei que ele iria me beijar. Na verdade, imaginei isso. Imaginei os seus lábios encostados nos meus, como tantas outras vezes. Suspirei e fechei os olhos. Vitor apertou o meu rosto ainda mais entre suas mãos, preparei-me para beijá-lo.

— Da próxima vez que você me provocar, não vou parar por aqui. - Disse a voz rouca, os lábios roçando nos meus.

Ele se afastou. Ouvi a porta, acho que do quarto, bater. Abaixei a cabeça. Burra! Deveria tê-lo empurrado. Dado um tapa em seu rosto. Saído de perto dele. Mas, não. Deixaria ele me beijar. Sequer lutaria. Para ser sincera, queria que ele o fizesse. Senti um certo desapontamento quando se afastou. Sabia que isso aconteceria. E sei como termina. É por isso que nunca vou deixar. Não posso ter uma recaída.

Levantei, andei até o banheiro e tranquei a porta. Tomei um banho demorado, tentando organizar os pensamentos. Obviamente não consegui, pelos menos foi relaxante. Coloquei uma calça preta e uma blusa cinza. Era como estava o meu humor hoje. Coloquei a sapatilha dentro da bolsa e calcei uma rasteirinha. Fiz um coque, deixando a franja solta. Passei por Vitor sentado na poltrona. Não disse nada. Saí, seguindo com a minha rotina.

Se ele pensa que vai afetar a minha vida está muito enganado. Vou mostrar a ele que já o superei. "Mas, você não o superou" Minha consciência teve a bondade de lembrar esse detalhe. "Pode até ser verdade, desde que Vitor não saiba." Pensei, confirmando a minha loucura. Agora, estou conversando comigo mesma. Era só o que faltava. Definitivamente, foi uma péssima ideia ele voltar.

Pensamentos desse tipo ficaram martelando a minha cabeça o caminho inteiro até a escola. Ela já estava aberta, hoje Marta iria limpa-lá. Coloquei a sapatilha, liguei o som e me alonguei enquanto esperava meus alunos. Saí tão distraída que não olhei no relógio. Agora vou ter que esperar meia hora, já que é sábado, as aulas começam oito horas. Só tenho aula até meio dia. Não será cansativo. Principalmente, se posso fugir dos meus problemas, já que é difícil enfrentá-los.

As aulas transcorreram normalmente. Dei os parabéns para mim mesma por conseguir passar as coreografias com os alunos sem errar. Minha cabeça ao invés de se concentrar nos movimentos da dança bombardeava-me com pensamentos e lembranças sobre Vitor. Queria conseguir bloquear isso como sempre fiz, mas, com ele perto, é complicado. Mais do que eu imaginava.

Como sempre, fechei a escola sozinha. Léo não vem nesse dia. Ele geralmente saí para curtir o final de semana. As vezes até esquece de voltar e tenho que buscá-lo. Ele costuma me odiar nessas horas. Pensei, certificando-me de que tudo estava fechado.

Estava caminhando na direção da livraria, quando, não  sei porque, quis ir para o apartamento. Virei a esquina de cima da livraria e andei mais dois quarteirões. O prédio fica na esquina. Como o apartamento fica no segundo andar, não costumo usar o elevador. Subi os dois lances de escada, sem me cansar, já acostumada com o exercício. Coloquei a chave na porta para abri-lá, porém ela já estava destrancada."O que? Não lembro de deixar a porta destrancada." Então, lembrei de um detalhe. Olhei de baixo do tapete. "As vezes tenho pequenos lapsos de memória e esqueço que já fomos namorados. Pena que são pequenos." Pensei entrando no apartamento. Na casa dos meus pais guardávamos a chave reserva de baixo do tapete, acho que peguei o costume deles.

Deixei a chave na mesa de centro, andei até a cozinha para beber um copo d'água, mas parei quando ouvi um barulho vindo do quarto. Voltei silenciosamente até a sala, andei com a ponta dos pés até chegar perto. Olhei em volta, atrás de algo para bater na cabeça da pessoa que estivesse no quarto. Peguei uma vassoura, que estava apoiada na lateral do sofá tenho certeza que ela não estava nesse lugar quando saí hoje de manhã.

Parei encostada na parede prendendo a respiração. Ouvi mais barulhos e decidi que era hora de entrar. "Não seja covarde garota." Meu lado louco incentivando-me. Soltei a respiração e respirei fundo. "Vamos lá." Pensei. A porta estava meio aberta, tentei olhar pela fresta fazendo o mínimo possível de barulho. Quando vi quem era o invasor, minha imaginação, criativa como é, já começou a pensar em uma vingança.

Empurrei a porta com força para que ela fizesse um barulho enorme. Vitor caiu da cama de susto e quebrou uma garrafa de vinho que tinha deixado no quarto. Sorte dele que estava vazia porque se tivesse manchado o meu tapete eu iria matá-lo. Ele ainda não se levantou de modo que aproveitei para imobiliza-lo com a vassoura.

— VOCÊ QUER ME MATAR DO CORAÇÃO, MULHER? - Gritou se recuperando parcialmente do susto.

— Bem, não sei... talvez seja... POR QUE VOCÊ ESTÁ NO MEU QUARTO? - Disse, tentando, manter a calma no início.

— Pare de gritar! Elena vai vir aqui! - Falou irritado.

— Foi você quem começou a gritar. - Respondi em um tom normal.

— Lógico você me assustou! - Comentou com a voz baixa e ríspida.

Ainda estava apertando as suas pernas contra o chão, com o cabo da vassoura, quando ele recuperou a força empurrando-me. Caí perto dos cacos de vidro da garrafa. Vitor se levantou e pegou a minha mão puxando-me. Ele olhou nos meus olhos por alguns minutos com, não tenho certeza do sentimento, acho que piedade? Fiquei presa nesse olhar, vi-o abaixar e escutei o barulho das garrafas em baixo da cama. Era isso? Ele descobriu, então?

Mordi o lábio de baixo e olhei para o chão. Arrependi-me de ter feito isso, porém era tarde demais. Ele colocou as garrafas nos meus pés, para que eu as olhasse. Eram cinco, seis contando com a que está quebrada. Esperou um tempo para que levantasse os olhos. Não tive coragem de fazê-lo. Como uma criança pega em uma arte fiquei olhando para elas. "Se ele achou essas, com certeza achou as outras."

Pegou a minha mão e me guiou até a porta quando pensou que a tortura já tinha sido suficiente. Levou-me até a sala. Empurrou o sofá e tirou três garrafas de lá. Colocou a mão de baixo da poltrona e retirou uma garrafa de cada uma delas. Totalizando cinco, olhei para Vitor como se perguntasse porque ele estava fazendo isso. Ele fez o mesmo que tinha feito no meu quarto. Dessa vez, não olhei para baixo. Preferi encarar os seus olhos. Porém, o seu olhar de piedade era pior, o que forçou-me a abaixar os olhos.

"Não. Não sou obrigada a fazer isso". Pensei, saindo de lá. Indo na direção da cozinha. Entrei e peguei um copo d'água. Vitor veio atrás. Abriu a última porta do armário de baixo, já sabia o que tinha lá. Não precisava ver. Contudo, ele me forçou a ver também. Lutei para soltar o braço do aperto forte de sua mão.

— PARA! Já chega. - Gritei a primeira frase e choraminguei a última.

Coloquei o copo no balcão e me apoiei nele. Chorar na sua frente era uma das únicas coisas que não queria fazer, então tentei me controlar. Respirei fundo algumas vezes, quando já estava começando a acreditar que tinha recuperado o autocontrole Vitor pegou uma das minhas mãos. Virou-me tão rápido que eu quase caí, mas ele me segurou pela cintura. Empurrei-o e ele me segurou mais forte.

— O do armário não é todo meu. Léo fez uma festa uma vez aqui e acabou deixando as garrafas. - Expliquei, não sabendo o porque.

— Por que não jogou fora? E as da sala? E do quarto? - Indagou, a voz cansada, com preocupação.

— Porque fiquei com medo de Elena ou algum vizinho ver. A cidade é pequena. Eles comentam. Sou professora de dança, então... Olha só... Quer saber eu não tenho que te dar explicações. - Respondi irritada. Tentei me soltar de novo, em vão.

— Quando você terminou de beber as garrafas da sala e do quarto? - Perguntou, a voz mais firme.

— Já fazem meses. - Menti, a voz tremendo.

Sabia que ele não tinha caído nessa, porém não custava tentar. Vitor segurou os dois lados do meu rosto com as mãos e pressionou a testa de encontro com a minha. Ele fechou os olhos, o maxilar travado, apertou ainda mais a testa contra a minha e respirou fundo.

— DROGA, Vics! Não minta pra mim. - Disse extremamente irritado.

— Sei lá! Há algumas semanas. - Vitor estreitou os olhos. - Está bem! Acho que... em quase duas semanas. - Falei e ele afrouxou o aperto.

Ele fechou os olhos de novo e respirou tentando controlar-se . Sentia raiva por ele estar fazendo isso e... desejo. Meu corpo inteiro se arrepiou com o seu toque. Queria estreitar o pequeno espaço que ainda existia. Colar a minha boca na dele. Deslizar a mão pelo seu braço até chegar na nuca. Grudar o meu corpo no dele. "Não." Pensei, controlando-me. "Preciso me afastar dele antes de perder a sanidade."Alertei-me, entretanto não consegui forças para empurrá-lo. Estava entregue sem resistência. Enquanto a minha consciência gritava para que ele não beijasse-me, o meu corpo implorava pelo contrário.

— Por que? - Inferiu. O tom de voz baixo e rouco.

— Por tristeza, estar sozinha, medo, pra me aquecer, esquecer os problemas, comemorar... Desde quando a gente precisa de motivos para beber? Só quis beber algumas garrafas. - Respondi a raiva chegando no limite.

— Não, você não está entendendo. Bebeu onze garrafas em menos de quatorze dias. Vics... isso é uma doença. Você está começando a ser, se é que já não é, uma alcoólotra. - Falou, as mãos tremendo um pouco em meu rosto.

Olhei nos seus olhos verdes, odiando a compaixão que eles mostravam. Não tentei sair. Sustentei o seu olhar, com raiva. "Ele não tinha o direito de mexer nas minhas coisas."Pensei, meus dentes rangendo. Não tem o direito de me dar sermão, tentar controlar a minha vida e bem menos de estar aqui. Não tem o direito de me segurar, tocar-me e fazer com que eu me sinta uma pessoa desprezível. Enfim, não tem direito a nada que me envolva. Vitor fez questão de deixar isso bem claro a sete anos atrás. Nunca esqueço de suas palavras.

— Exijo que me solte e pare com essa falsidade. Você não se importa comigo, só com me humilhar. Na verdade, você quer o dar o troco pelo modo como te tratei ontem. Parabéns! Já conseguiu. Agora deixe-me em paz! - Falei, contendo um pouco da raiva.

Os pensamentos dominaram-me. Contorci-me e, pego de surpresa, Vitor me soltou. Corri até a sala, peguei a bolsa e corri escada a baixo. Quase caí algumas vezes, mas consegui chegar a rua sem que ele viesse atrás de mim. Nem sei por que corri, como se fosse uma ladra. Não fiz nada de errado para ter que fugir. Na calçada recuperei o fôlego e continuei correndo. Não olhei as ruas direito, enquanto passava, nem me virei para ver se Vitor estava me seguindo. Continuei, correndo até a escola de dança

A abri e tranquei por via das dúvidas. Escorei na parede escorreguei meu corpo até sentar no chão. Fechei os olhos não querendo encarar o meu reflexo. Respirei, ofegante. Depois de alguns minutos, já estava mais calma e segura de que Vitor não viria. Levantei, andei até o som e o liguei na minha música preferida: Madness do Muse

Fechei os olhos, deixando o ritmo da música me levar. Já ouvi essa música tantas vezes que decorei a tradução. Alternei movimentos em pé, com movimentos no chão e rodopios. Não pensei, deixei a música guiar o meu corpo. Senti a raiva e a frustração se esvaindo dando lugar ao prazer. Quando ela ficou mais agitada, senti duas mãos em volta da minha cintura. Sabia de quem eram. Coloquei a minha mão encima delas e recostei a cabeça no ombro de Vitor, já que estava me envolvendo por trás. Mantive os olhos fechados, ele me conduziu no resto da música.

Tranquilidade e segurança. Era isso que estava sentindo. É bom, já que não sinto isso há anos. Quando terminou, abri os olhos. Ele ainda me segurava, mas dessa vez não quis que me soltasse. Permiti-me apoiar a testa em seu ombro. Precisava disso. Ele aconchegou o meu corpo ainda mais no seu. Deixei que isso acontecesse. Aproveitei, que a minha consciência dormiu. Sei o que vai acontecer, quando ela acordar, mas não me importo.

— Como entrou? - Perguntei com a voz baixa.

— Precisa parar de esconder a chave reserva em baixo do tapete é muito óbvio, Vics. - Respondeu com uma risada baixa.

Como sempre, fiquei arrepiada e sorri pelo que ele falou. Suspirei apreciando o momento.

— Deixe-me cuidar de você, Vics. - Falou com a voz rouca, passando a mão no meu cabelo que tinha se libertado do coque.

A pequena cascata de fogo, não escondeu meu rosto por muito tempo. Vitor segurou-o com as mãos e acariciou as minhas bochechas com os polegares. Quase fechei os olhos, com a sensação. Ele aproximou o rosto do meu, abaixou a boca e... virei o rosto, minha consciência semi-adormecida, percebendo que ele me beijaria. Vitor beijou o canto da minha boca. Lembrei de anos atrás, quando ele fazia o mesmo. E isso me lembrou de suas palavras. E isso despertou minha consciência por completo.

— "É a minha chance Vics, não vou desperdiçá-la nem por você nem por ninguém. O fato de você me amar não muda nada, porque eu não te amo. Sinto muito, por ter confundido as coisas. Na verdade, você era só o meu caso de verão Vics, nada muito importante. Agora, me dê licença. Preciso pegar um voo para Paris." Lembra-se? Você me disse isso sete anos atrás. - Falei e toda a raiva voltou.

Pensei que empurraria-o, dessa vez deixei como estava. "Prefiro que Vitor pense que não estou abalada mesmo sendo mentira." Pensei, olhando-o com desafio. Preciso falar tantas coisas para ele que nem sei por onde começar. Isso está entalado a tanto tempo na minha garganta, me sufocou tanto que poder falar é o maior alívio. O ódio e a raiva só crescem. Na verdade, eles pioraram com a convivência dessas últimas horas. Agora as suas mãos ao invés de passarem tranquilidade, me causam repulsa por querê-las exatamente onde estão. Apesar de tudo o que me fez.

— Vics, sei que errei no passado. Também sei que você não vai acreditar no que vou falar, mas vou dizer mesmo assim porque é a verdade. Estou arrependido do que fiz. Quero a chance de poder consertar isso. - Disse com urgência, quase me comovendo.

— Já te disse que para você sou Victoria. PERDEU O DIREITO DE ME CHAMAR DE VICS A SETE ANOS E NÃO VAI RECUPERÁ-LO AGORA. - Gritei não contendo a frustração.

Estávamos perto o suficiente para que Vitor visse o quanto estava abalada, porém os seus braços não me envolviam mais. Ele se afastou com o grito que dei. Fechou o rosto e deu um passo em minha direção, eliminando a pequena distância que ainda existia, mas não me tocou.

—  É como você disse já fazem sete anos. SUPERA, MULHER! - Gritou de volta.

— Humpf. Não preciso e não quero ficar aqui discutindo com você. - Falei com o tom de voz normal.

Dei as costas para ele e peguei a bolsa. Marchei até a porta, as lágrimas começando a descer. Vitor me agarrou pelo braço de forma abrupta.

— Não, precisamos conversar. - Falou com a voz firme.

— Você ainda não entendeu, Vitor? Sou eu quem dito as regras. Vamos conversar quando eu quiser. E estou com fome agora, dê-me licença, preciso trancar a escola. Ah! E devolva a chave reserva. - Disse, sendo clara.

Ele saiu, colocando a chave na minha mão. Pensei que tinha ido embora, mas enquanto trancava a porta da frente, ele se materializou ao meu lado. Caminhamos em silêncio. Fingi que ele não estava ali. O único momento em que o percebi, foi quando me avisou que Elena tinha nos chamado para almoçar com ela. Balancei a cabeça, como se dissesse um tudo bem e subimos para o seu apartamento.

Se Elena percebeu o clima não disse nada. Almoçamos e Vitor se ofereceu para ficar na livraria para que Alessandro viesse. Conversei um pouco com Elena, enquanto arrumávamos a louça. Insisti tanto que dessa vez ela me deixou ajudar. Estava preocupada com onde colocaria as coisas do quarto de bagunças. Propus que fizesse um bazar. Ela achou uma brilhante ideia e me pediu para ajudar a organizar. Aceitei, sabendo que Vitor teria que ficar no apartamento mais alguns dias.

Encontrei com Alessandro, quando já estava saindo. Ele disse-me que Vitor passaria no supermercado quando Elena voltasse para a livraria. Então, fiquei grata por ter alguns momentos sozinha no meu apartamento. Aproveitei para arrumá-lo. Coloquei as garrafas no lugar que elas estavam antes e varri o cacos da que quebrou. Sentei no sofá. Como não achei nada de bom na televisão, fui para o quarto. Vasculhei a minha estante em busca de algum livro que ainda não tinha lido. Peguei um de Louis Perrot que havia comprado esse ano, resolvi lê-lo.

Deitei na cama e fiquei o dia inteiro trancada no quarto lendo. Não sei porque, pensei no homem da livraria. Lembro que ele estava, na sessão da Jane Austen. É raro achar um homem que goste da autora. Ela ainda é vista como uma autora, focada mais para o público feminino. Mas isso depende do ponto de vista da pessoa também. "Ah, quer saber? Deixa eu voltar para o meu livro." Pensei, prestando atenção no que estava lendo. Saí algumas vezes para beber água e fiquei grata por não encontrar Vitor no caminho. Na verdade, só o vi quando já era de noite. Ele bateu na minha porta.

— Seu celular está tocando. - Disse, quando eu abri.

— Obrigada. - Falei pegando o aparelho.

Olhei e, mesmo sem reconhecer o número, atendi.

— Alô? - Perguntei com o celular no ouvido.

— Oi. É a Victória? - Respondeu uma voz masculina suave e firme.

— Sim. E você é o... ? - Perguntei olhando para a porta.

Tinha deixado ela aberta e Vitor estava lá, rindo de não sei o que. Peguei o livro, colocando um marca página aonde tinha parado e joguei nele. Para acabar com sua risada. Ele pegou o livro, olhou a capa e riu ainda mais. Revirei os olhos. "Louco é assim mesmo". Pensei, esquecendo que estava no celular.

— Matheus, amigo de Léo. - Disse e eu sorri.

— Ah! Que bom que ligou. Léo me disse que  você ligaria, Matheus. - Falei, percebendo o sorriso de Vitor desaparecer.

— É? Ele também me falou sobre você. - Respondeu e escutei uma risada rouca de fundo.

Meu sorriso se alargou e agora foi a vez de Vitor revirar os olhos.

— Espero que tenha sido coisa boa. - Comentei rindo.

— Bem, conto para você amanhã. Aceita sair comigo? - Perguntou, direto.

— Claro! Me busca as oito horas da noite? - Respondi, observando o rosto de Vitor se fechar.

— Tudo bem! Te vejo amanhã. - Disse se despedindo.

— Então, até amanhã. - Falei, desligando.

"Matheus não sabe o que o espera. Ele nunca mais vai aceitar um encontro as escuras. Vai se arrepender de ter feito isso." Pensei dando uma risada alta. Vitor me olhou confuso. Deixei ele pensar o que estava pensando. Passei por ele sem falar nada, fui até a cozinha e resolvi fazer um sanduíche.

— Acho que vou fazer um sanduíche. Quer que faça um para você? - Perguntei e ele arregalou os olhos. - Que foi? Vou fazer um para mim faço um para você também. E, como comprou as coisas é uma forma de retribuir. - Disse sorrindo.

— É o mínimo já que estou morando na sua casa. - Respondeu sentando na mesa.

Estava ciente de que Vitor me observava preparar os sanduíches. Concentrei-me em pensar no meu plano e em como seria divertido. Sorri algumas vezes e Vitor enrugou a testa ainda confuso.

— Se soubesse que ficaria tão feliz assim teria te chamado para sair antes. - Comentou me fazendo rir.

— É, mas se fosse você eu não teria ficado feliz. - Disse, mas ele não riu. - Sem maionese, não é? - Perguntei, ainda rindo do que tinha dito.

— Você ainda se lembra. - Respondeu sorrindo.

Concordei com a cabeça e entreguei seu sanduíche. Sentei ao seu lado, detonando o meu. Não conversamos e eu continuei pensando no meu plano e no que Léo acharia disso quando descobrisse. O que me fez rir.


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Notas finais do capítulo

Comentários são ótimos, então seria ótimo se me contasse o que achou do capítulo!
Desde já agradeço,
Lizzy.



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