[Ones] Relíquias da vida escrita por Elentiya


Capítulo 1
Capítulo único - A quarta estrela


Notas iniciais do capítulo

Olá, seja bem-vindo. Este é o primeiro conto de uma coletânea de diversos. É um curto conto que aborda temas como machismo, casamento em decadência e falsa ideia de família unida. Espero que gostem. Boa leitura.



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O fogo crepitava conforme as horas passavam, os pássaros cantavam suavemente e até mesmo o vento uivava com destemor naquela noite gelada de 1989. Eram as férias de final de ano da família Vesela. Todos os anos, durante pré-determinados oito dias, o casal Vesela viajava para as praias da região dos lagos no estado do Rio de Janeiro com sua pequena filha Liana. A preferida da família era a praia do forte da cidade de Cabo Frio. Suas enormes dunas serviam de diversão para a pequena criança e os fortes ventos que nelas pairavam, levavam consigo as preocupações mundanas. Naquela dada noite do dia 27 de dezembro de 1989, as areias da praia deram passagem para diversos grupos de pessoas alegres e festeiras comemorando a vida. Uma enorme e chamativa fogueira foi montada em cima dos brancos grãos da praia e todo um ritmo de harmonia se instalou entre os presentes daquela noite.

Filipa Vesela, a matriarca da família, caminhava junto de sua pequena Liana por entre aquele pequeno mundaréu de pessoas. Ela não conseguia parar de pensar no que havia acontecido poucos minutos antes entre ela e o homem da qual chamava de marido. Todos os dias de sua lamentável vida ela se condenava por ter engravidado antes de um noivado, todos os dias de sua miserável vida, Filipa julgava a si mesma por ter sido fraca quando há anos atrás, não conseguiu negar o pedido do homem que um dia tirou sua inocência. Entretanto, por mais melancólica que a matriarca podia ser, todas as vezes em que segurava as pequenas e delicadas mãos de sua filha, todas as vezes em que olhava em seus olhos doces e marejados, não conseguia se sentir frustrada. A mulher se sentia menos triste. A inocência e o amor transbordavam pelo corpo da criança, e mesmo sem intenção, a filha consolava sua mãe.

As fortes rajadas de vento levavam consigo todas as lembranças da briga recente entre Filipa e seu marido. As palavras ditas começavam a se desfazer e transformar-se em meras sílabas. Sílabas tais que logo se tornaram letras esvaídas para o horizonte escuro adiante. Entre sorrisos e brincadeiras, Filipa se divertia com sua filha. Eram momentos importantes para ela, momentos que a faziam permanecer. Momentos que a lembravam que existia um motivo para continuar, um motivo para se erguer, mesmo que fosse apenas por um período de tempo.

***

A pequena Liana estava completamente feliz. Sua atenciosa mãe caminhava e a divertia enquanto algo que a menina julgava ser um pedaço do sol queimava logo a frente delas. Seus pés se sujavam conforme a areia grudava em seus pés recém molhados pela beirada inicial do mar.

As estrelas estavam lindas naquela noite. A mãe a contara sobre três estrelas que sempre poderiam ser vistas não importava em que lugar do mundo você estivesse. As três marias. E com os pés sujos de areia, mãe e filha pararam de caminhar para apreciar a beleza das estrelas e o mistério esplendoroso do céu. Para Liana, a mãe era a estrela que ela sempre veria não importasse em que lugar do mundo estivesse. Para a pequena garota de cabelos cacheados, era só fechar os olhos para ver a mãe bem entre as três marias. A mãe seria sua eterna estrela guia.

***

Filipa já havia percebido. Não era sem motivos que levava a filha cada vez mais ao oeste da fogueira - Rumo à parte mais virgem e isolada da praia - O homem que a desposara as procurava com ganância nos olhos.

No início, a matriarca Vesela o santificava. "Apenas um homem de bom coração aceitaria se casar com uma mulher corrompida e sem honra como eu. Ele aceitou a mim e a minha filha, devo ser abençoada por ter encontrado tamanha sorte.", pensava Filipa. Infelizmente, ela não poderia sequer imaginar que Domingos Vesela era um sádico sem humanidade alguma. Ele nunca havia a escolhido por ama-la, por aceita-la, mas sim por ela ser atormentada pelo medo da solidão e pela vontade de servir quem quer que a agradasse. A pele de Filipa costumava sempre ter tons de roxo e vermelho sobressaltados em sua doce pele cor de bronze. Em casa, a pequena Liana mal saía do quarto e quando o fazia, era repreendida pelos pais. Repreendida pela mãe, por sair de seus aposentos e presenciar cenas sórdidas vividas pelos pais, e repreendida por seu pai, por atrapalhar seus atos. E em todas as ocasiões, a filha saía intacta. A mãe tomava os tabefes para ela.

Filipa agarrava forte sua filha agora. Ela a abraçou forte e deixou que lágrimas quentes caíssem sobre suas bochechas enquanto sentia a aproximação de seu bem-feitor. Tudo havia sido válido. Toda a dor, todo o sofrimento, tudo. Filipa se perguntava o porquê de mesmo naquela situação, se sentir grata. E ao olhar para o enorme sorriso no rosto de sua filha e para os olhos castanhos brilhantes dela a encarando, teve sua resposta escancarada para si. No final, os meios compensam os fins. Se impor uma última vez por seu orgulho a faria pagar. Mas nada a faria mais feliz que ficar em paz olhando para aquele belo rosto infantil.

***

Liana não entendeu quando viu o pai puxar a mãe de seus braços e a levantar abruptamente para encarar a esposa. Liana não conseguia entender porque era incapaz de comandar seus membros a se mover e agarrar a mãe com todas as forças que uma criança de 10 anos poderia ter. Liana não conseguiu se mover ou falar ou sequer imaginar o motivo do porquê a mãe ter enfiado a faca de cortar o saboroso pão francês dos cafés da manhã no peitoral de seu pai quando Domingos ameaçou chegar perto de Liana. O homem estava furioso quando tombou de joelhos na areia e deixou gotas vermelhas mancharem sua blusa branca. Ele arquejou, e arquejou e arquejou uma vez mais. No quarto gole de ar, seus olhos pararam de piscar e ele levou o corpo em direção ao chão arenoso. A pequena menina estava estática, não conseguia se mover, não conseguia entender o que significava aquela cena. "Mamãe sujou a camisa do papai com molho de tomate. Por que ela fez isso? Que cruel da parte dela!". A ignorância é uma bênção cedida apenas aos poéticos. Aos realistas, é cedida a experiência dos anos vividos. E cada dia de vida de Liana era uma experiência que ela guardava junto a si. Cada palavra da mãe, cada falso sorriso, cada suspiro. E inclusive, no suspiro de morte de sua mãe, quando Filipa Vesela cometeu suicídio ao lado de seu marido em uma magnífica praia da cidade de Cabo Frio no dia 27 de dezembro de 1989, Liana guardou a experiência. Naquela dia e naquela maldita hora, ao ouvir sua amada mãe murmurar um pedido de boa sorte, Liana observou estática enquanto sua própria mãe descia a lâmina em direção a seu coração, encerrando sua vida com a esperança de uma melhor para sua filha. Um vida da qual não houvesse um futuro tempestuoso a encontrar, apenas um passado triste a ser superado. Um futuro feliz para uma menina feliz. E naquele momento, Liana podia jurar que tinha visto uma luz tremeluzir entre as três marias.

– A quarta estrela. Colunista Liana Vesela. Jornal Donatella. 27/12/2005


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Notas finais do capítulo

Assim como a capa da coletânea, a capa deste conto NÃO ME PERTENCE. Infelizmente, não fui capaz de achar o autor desta, mas caso o mesmo veja isto e se aborreça, favor contatar.



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