Contos da Cidade Central [EM PAUSA] escrita por Kirimi


Capítulo 4
Capítulo 4 - Primeiras Impressões


Notas iniciais do capítulo

Depois do incidente com Beau, Jessy, Phillip e Luiz chegam à Cidade Central. Mas a preocupação é tanta com o amigo que ela nem se deu conta que atingiu seu objetivo...



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Quando adentramos os portões, parecia que havíamos entrado num mundo completamente diferente do que eu conhecia: As ruas eram de paralelepípedo, sujas de alguma coisa que eu prefiro não saber o que é, havia fumaça por todos os lados, densa como neblina e um barulho infernal que parecia brotar das paredes. Pessoas estranhas surgiam e desapareciam em becos escuros. Eu não conseguia ver muito de dentro da carroça, mas sabia que seria um desafio para mim me adaptar a essa dimensão bizarra.

Seguimos por uma única rua até o seu final e desembocamos numa casa que contrastava com as demais: era grande e clara, de aparência absolutamente limpa. Na frente, uma placa de bronze dizia “Doutor Frederick. Toque a sineta para ser atendido”. Phillip e Luiz saltaram da carroça para poderem tirar Beau de seu leito improvisado:

– Vamos, Luiz. Espero que meu tio não esteja com nenhum paciente.

Eu acompanhei os meninos até a varanda. Phillip abriu a porta e chamou:

– Tio, cheguei! Preciso da sua ajuda.

Poucos segundos depois, um senhor de meia idade veio nos atender. Ele vestia branco da cabeça aos pés, tinha um bigode impecável, vasta cabeleira grisalha e olhos severos:

– O que você quer, Phillip? – Disse ele, olhando com desdém para Luiz e eu. Seus olhos recaíram sobre Beau, e o desdém transformou-se em nojo. – O que diabos aconteceu aqui?!

– Meu amigo foi atacado por trollóides. O braço dele está em estado crítico. Ele precisa de ajuda, tio.

– Vá buscar uma maca e o traga ele para dentro e vá se lavar. Vou precisar de você. – Voltou seu olhar para nós. – Vocês dois esperem aí. Não quero minha casa suja por conta de pessoas encardidas.

Ele bateu a porta sem o mínimo de educação. Luiz apertou a grande mão em punho, mas relaxou:

– Nóis pricisa dele. Ele vai sarvá o Beau.

– Vai sim. – Eu disse, sem saber como consolá-lo.

Horas se passaram. Horas em silêncio: nem Luiz e nem eu tínhamos coragem de falar qualquer coisa. A cidade já era barulhenta o suficiente. A noite caiu e a cidade ficou ainda mais estranha que à tarde. Quando percebemos, vimos a Mãe e o Pai vindo até a varanda:

– Cadê ele? – Quis saber a Mãe, desesperada.

– Tá com o Phillip e o dotor lá dentro. E os minino? – Respondeu Luiz, sério.

– Já tão lá no bar do tio. Ele vai ficá bem, né?! – A Mãe beirava as lágrimas.

– Num sei... – Disse Luiz. E forçando um sorriso, completou – Mas acho que vai, sim. Ele é forte que nem um cavalo, Mãe!

Sem dizer nada, a Mãe abraçou Luiz, enquanto o Pai sentava ao meu lado:

– Ocê tá bem, fia?

– Tô sim, Pai. Só preocupada com o Beau. – Eu respondi, sorrindo para acalmar o velho.

– Ocê tá pálida, fia. – Ele disse, mirando meu rosto.

– Tô com um poquinho de fome, Pai. Só isso. Quando vierem contá do Phillip prá nóis eu vô comê arguma coisa.

– Ocê é uma boa minina. Mesmo. – Ele disse e saiu do meu lado e foi abraçar a Mãe para acalmá-la.

Nesse momento, Phillip abriu a porta:

– Ele vai ficar bem... – Disse ele, de cenho franzido.

– Mais...? – Eu perguntei, percebendo que havia algo de errado.

– Fala, fio! – Pediu a Mãe, com urgência.

Phillip respirou fundo:

– Meu tio disse que vai cobrar pela consulta. – Ele disse com a voz carregada de amargura. – Não permitiu que eu pagasse por vocês. Me desculpem...

– E quanto nóis deve? – Perguntou o Pai, engolindo em seco.

– 80 peças de ouro. – Phillip estava corado de vergonha.

A Mãe e o Pai trocaram olhares desesperados:

– Quanto tempo nóis tem prá pagá?

– Até amanhã, ao pôr-do-sol. – Phillip não era capaz de encarar o casal.

– Certo. Fale p’o seu tio que amanhã ele vai recebê o dinhero dele. – Disse a Mãe, decidida. – Nóis pode vê o Beau agora? – Phillip estava quase se curvando à eles:

– Me desculpem, mas não podem. Meu tio o fez dormir com remédios. Ele ainda sente muita dor. Não é bom que ele receba visitas. – Quando viu a o desapontamento nos rostos de cada um de nós, completou – Mas amanhã cedo, e poderão vê-lo.

–Tá bão, fio – Disse o Pai. – Brigado por tudo. Vem muié. Tô com fome.

– Brigado, Phillip. – Luiz levantou e apertou a mão do amigo – Vem, Jessy. Vô levá ocê inté o bar do meu tio. É lá que nóis se hospeda quando vem prá capitar.

– Boa noite Luiz, boa noite, Jessy. – Disse Phillip, ainda encabulado.

– B’as noite, Phillip. – Eu respondi. – Fica assim não, tá!

Nós quatro rumamos pela rua principal por uns bons 20 minutos. O lugar é feio. Cheio de becos e gente estranha e mal encarada. Quando avistei uma taverna de porte respeitável, a mãe disse:

– É aqui.

Parei para analisar a fachada e vi uma construção suja de três andares, sendo o primeiro de concreto e os outros dois de madeira. Havia portas vai-e-vem duplas de onde saía muita música, risadas e palavrões e um letreiro com a pintura meio descascada dizendo: “Canto do Operário”. Quando entramos, vimos o saloon lotado de homens bebendo, jogando cartas e tocando a velha pianola enquanto músicas sobre embriaguez faziam a alegria dos demais:

– Aqui! – Acenou Zéca, de um banco colado ao balcão do bar. Fomos na direção deles, já abordados por Hugo:

– Cadê o Beau? Como ele tá? Ele tá vivo?

– Tá, ele tá vivo sim. – Respondeu o Pai, cansado. – O Phillip falô que ele vai fica bão.

– Que bão! – Disse Zéca, aliviado – Vô avisá o tio que ocêis cegaram.

Zéca foi indo em direção a um homem grande e largo, que jogava um bêbado desmaiado para fora do bar:

– Tio, a Mãe e o Pai tão aí!

Quando o homem se virou, pude notar a bizarra semelhança entre ele e a Mãe. Ele veio na direção dela, de braços abertos:

– Ôh, minha irmã! Bem vinda de vorta! – Disse ele a abraçando.

– Brigada, Berry. Essa é a Jessy – A Mãe disse, apontando prá mim. – Ela vai fica aqui cum nóis.

– Vixi... Num sei se tem quarto prá todo mundo, não...

– Num tem problema. – Eu disse, pensando em não dar trabalho. – Posso dividí com alguém. – Berry olhou para mim com malícia brilhando nos olhos.

– Aqueles dois ali tão doidinho prá dividí o quarto com você. – Ele apontou para os gêmeos. Enquanto eu me encolhia de vergonha, a Mãe acertava um tapa atrás da cabeça do irmão.

– Respeita a minina! Ela ajudô a cuidá do Beau!

– Se ajudô a cuidá do Beau, então já é da família! – Disse ele, sorrindo de repente, de forma jovial. – Prazer, Berry. – Ele estendeu a mão.

– Eu me chamo Jessy – Eu disse retribuindo o cumprimento.

– Vem comigo que eu arranjo uma mesa procêis jantarem, que tá tarde já.

– Gradicida, meu irmão.

Ele chegou até uma mesa onde dois rapazes jovens conversavam:

– Vaza daí. Tô precisando dessa mesa e ocêis não tão gastando nem meia peça de cobre. – Sem questionamentos, os rapazes saíram, deixando o pagamento sobre a mesa.

Tio Berry recolheu as moedas, juntou mais algumas cadeiras e trouxe a família para se acomodar. Logo em seguida, trouxe uma caneca de cerveja clara e rala, um pedaço de pão e carne salgada e requentada para cada um. Quando Berry se afastou, o Pai tomou a palavra:

– Pessoar, nóis pricisa fazê arguma coisa prá podê pagá os cuidado do Beau. Nóis devemo 80 peça de ouro. A Mãe e eu junto tem 40. Inda farta metade, e num dá prá pegá mais dinheiro, si não a caravana vorta sem nada.

Os gêmeos juntaram as moedas entre eles:

– Aqui tem mais 5, Pai. Discurpa num sê muito... – Eles colocaram o dinheiro sobre a mesa.

– Eu inda tenho mais 15 aqui, Mãe. – Luiz fez tilintar um saquinho de moedas e o deixou sobre a mesa.

A Mãe recontou o dinheiro:

– Inda farta 20. Vô pedi imprestado pro Berry – Quando a Mãe afastou a cadeira para se levantar, eu interferi.

– Aqui, Mãe. – Contei 20 peças de ouro do dinheiro que o Tio tinha me dado – Agora tem 80. – Os olhos da Mãe se encheram de lágrima.

– Tem certeza, Fia? Num vai fazê farta?

– Magina, Mãe! Eu vim prá capitar prá trabaiá. Eu ganho otro dinhero no lugar desse. Também tenho que ajuda o Beau, já que ocêis cuidaram de mim o caminho intero.

A Mãe olhou para o Pai em busca de uma resposta, e só recebeu um aceno positivo de cabeça. Tanto os gêmeos quanto Luiz, olhavam para mim como se eu fosse uma espécie de heroína salvadora do dia. O Pai juntou o dinheiro todo num único saco e guardou dentro de seu casaco:

– Bom, vô indo pro meu quarto. Tô varado de sono. Ocê vem? – Perguntou estendendo a mão para a Mãe que aceitou o raríssimo gesto cavalheiresco.

– Vô sim. – Disse ela, se levantando. – Já que o Beau não tá aqui, e o Berry tá sem quarto sobrando, Jessy, ocê divide o quarto com o Luiz. Ocêis dois, no quarto de sempre. Tem problema, fia?

– Não, Mãe. – Eu respondi, cansada – Também preciso í dormí.

– E ocêis dois – A Mãe disse para os gêmeos – Não vão mi arrumá encrenca, hein!

– Pode dexá, Mãe. – Responderam juntos.

A Mãe e o Pai subiram as escadas. Eu não parava de pensar no que tinha acontecido com o Beau e meus pensamentos foram longe: “Phillip se referiu aos saqueadores como “Trollóides” quando reportou ao seu tio o que havia acontecido com ele. Também falou esse nome quando falamos de seres mágicos. Será que uma coisa tem a ver com a outra...?”. De repente fui acordada de meu devaneio com uma mão pesada pousando em meu ombro, e como resposta, aquele salto de susto que faz o coração ir parar na garganta:

– Tô subindo, Jessy. Ocê vai ficá? – Perguntou Luiz.

– Não, não... Já vô c’ocê. Priciso sabe onde fica o quarto. E preciso dum banho tamém.

– Hugo, Zéca, tamo indo. Se ocêis num subirem logo, eu venho busca ocêis pela oreia, intenderão?

– Intendemo, Luiz. – Disse Hugo.

– Pode í logo, e vê se não apronta nada. – Completou Hugo, dando uma piscadela para o irmão mais velho.

– Presta atenção, muleque! Repeita a moça. – Luiz retrucou.

– Dexa ele, Luiz. – Eu respondi, cansada demais para começar uma discussão – Vamo logo que eu tô caindo de cansera.

Luiz e eu subimos até o último andar e atravessamos o corredor até o último quarto. Ele tirou do bolso do macacão, uma pesada chave de latão e destrancou a porta:

– Esse é o quarto que eu costumo dividir com o Beau. – Tem um beliche. Se quisé, pode fica na parte de cima. – Ele disse enquanto entrava e acendia o lampião de gás.

– Prefiro a cama de baixo. Eu me mexo muito de noite e corro o risco de caí. – Eu disse, deixando minha mochila ao lado do criado-mudo.

– Bão, eu vô vê os minino lá em baixo. Aproveita prá toma um banho. Aqui tem banhêra, é uma baciona de banho que tem uma tornêra que sai água quente e otra que sai agua fria.

– Brigada, Luiz. De verdade.

Ele não respondeu. Apenas saiu do quarto me deixando sozinha. Peguei minha toalha e roupas limpas e fui até o pequeno cômodo anexado ao quarto, onde havia uma invenção moderna que uns chamavam de latrina, outros de vaso sanitário e uma tina de porcelana com duas torneiras embutidas. O pequeno banheiro não possuía porta, apenas um umbral de madeira que separava o quarto, dele. Meio ansiosa, abri as torneiras regulando a temperatura da água e entrei na enorme banheira; a água foi ficando marrom, conforme eu ia me esfregando e lavando meus cabelos. Só saí do banho quando a água já estava para esfriar. Depois de me secar e (finalmente) vestir roupas limpas, ouvi leves batidas na porta e ela ser entreaberta:

– Posso entrá? – A voz de Luiz veio de fora.

– Pode sim. – Eu respondi, já sentada na cama, penteando meus cabelos.

Ele pediu licença e entrou. Sem falar nada, juntou suas coisas e foi para o banheiro. Senti meu rosto corando quando ouvi as torneiras abrirem: eu jamais ficara tanto tempo perto de um rapaz, muito menos ao lado de um que estava se banhando. Mesmo com a parede entre nós, eu sentia como se estivesse fazendo algo de muito errado. Quando dei por mim, vi Luiz saindo do banheiro vestindo uma calça de algodão cru, descalço e sem camisa. Procurei desviar os olhos dele, e me concentrar em pentear os meus cabelos sem perceber que eu estava a escovar sempre o mesmo lugar.

– Que foi? – Perguntou ele, cruzando os braços fortes diante de mim.

– Na... Nada... – Eu respondi, desviando o olhar.

– Ocê tá vermeia que nem um pimentão. – Ele disse, achando graça da situação.

– Num tô não! – Eu rebati, agora vermelha de raiva.

– Tá sim. – Ele disse, dando um meio sorriso. – Ocê tá com vergonha...?

– Tô! E daí?! – Respondi, áspera na fala. – Nunca dividi o quarto com otro rapaiz.

– Ocê veio durmindo do meu lado e dos otro minino desde o começo da viagem.

– Mais nóis num tava num quarto fechado... – Eu respondi, começando a trançar meu cabelo.

Luiz riu de verdade, pela primeira vez. Uma gargalhada estrondosa que encheu todo o quarto de som.

– E isso muda argua coisa, minina?! – Quis saber ele, ainda rindo.

– Claro que muda! O que os otro vão pensa de mim? – Quanto mais vermelha eu ficava, mais ele achava graça.

– Nem sabia que ocê se importava com a opinião dos otro. – Disse ele, maldosamente.

– Ocê num ia intendê!

– Ara! Bem que o Pai fala que muié é tudo bicho isitranho mêmo. Disisto! Boa Noite, Jessy. – Ele completou, sorrindo enquanto subia na cama de cima.

– Boa noite, Luiz...


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Notas finais do capítulo

Jessy está se dando conta de sua situação atual. Será que ela sobreviverá à esse ambiente urbano e agitado, tão diferente de sua terra natal?

Espero que estejam gostando!

Até o próximo capítulo!

Kirimi ^v^



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