Contos da Cidade Central [EM PAUSA] escrita por Kirimi


Capítulo 5
Capítulo 5 - As 6 Horas


Notas iniciais do capítulo

Uma oportunidade surge para Jessy. Robôs.



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O sono foi agitado. Acordei várias vezes durante a noite, uma inclusive por ter caído da cama: “Que bom eu tô dormindo na cama de baixo...”, pensei enquanto me levantava e voltava a deitar. Quando meu sono finalmente se assentou, senti a pesada mão de Luiz me chacoalhando, desajeitadamente:

– Acorda, Jessy. Tive uma ideia. – Ele disse, sentando da beirada da minha cama para vestir a botina de trabalho.

Me sentei e logo escorreguei para fora da cama:

– Qui ideia é essa?

– Ocê pricisa trabaiá, certo?

– Certo. – Respondi, acompanhando o raciocínio dele.

– Intão. Teve um rapaiz que sofreu um acidente e não vai mais trabaiá lá na fábrica. Intão eu pensei em levá ocê prá trabaiá lá com nóis.

– Mais é fábrica de quê? – Eu perguntei.

– Na verdade num é bem uma fábrica, é mais uma oficina. Nóis conserta robô gigante.

– Ro... o quê? – Perguntei confusa, já de dentro do banheiro.

– Robô! É uma espécie de máquina que tem formato de hôme e que ajuda nas tarefa pesada.

– Mais eu nunca nem vi um desse, nem sei o que é. – Eu respondi, preocupada. – Como eu vô sabê consertá?

– Ocê é isperta. Vai aprendê rápido. – Ele disse, tentando ser legal. – Tá pronta?

– Tô sim. – Saí do banheiro vestindo também macacão de brim, camisa e botina.

Luiz pegou aquelas ferramentas enormes que ele e Beau usaram contra os trollóides e as prendeu num sinto de couro, nas costas. Quando ele e eu descemos as escadas e já encontramos a Mãe e o Pai tomando café:

– Dia fio, dia fia. – Disse o Pai, sorrindo.

– Dia, ocêis dois. – Interveio a Mãe, antes de uma resposta – Senta e come, procêis num atrasá no horário.

– Dia Mãe, dia Pai. – Luiz respondeu.

– Dia! – Eu disse, já me sentando e puxando uma tigela de mingau de aveia para perto.

– Ocê vai mêmo com o Luiz, fia? – A Mãe perguntou, séria.

– Vô sim, Mãe. Preciso trabaiá. – Quando olhei para ela, vi desaprovação em seus olhos. – Tem problema?

– Bão, eu num sei se ocê sabe, mais é só hôme que trabaia com essas máquina. – Ela disse com um tom beirando ao desdém.

Antes que pudesse pensar em alguma coisa, Luiz interferiu:

– Ara! Pare de assustá a minina, Mãe. Ocê sabe muito bem que tem mais muié que trabaia com nóis na fábrica.

A Mãe olhou feio, mas não respondeu. Luiz e eu terminamos a refeição e saímos para a madrugada. O ar era pesado, difícil de respirar: cheirava à ferrugem. Aquele trecho da cidade estava sempre coberto por uma névoa, por vezes rala, por vezes densa. Eu seguia Luiz de perto. Não fazia ideia de onde ele estava indo. Quando saímos, Luiz disse:

– Num ligua pro que a Mãe fala. Ela num gosta nada da ideia de nóis trabaiá em fábrica moderna. Ela qué que eu cuide da fazenda, mas eu gosto mêmo é de consertá os robozão. E ocê vai aprendê a gostá tamém!

– Espero trabaiá com isso não me cause confusão. – Cada metro que percorríamos do caminho, era estranho para mim. – Onde nóis tamo?

– Aqui, onde nóis tá – Luiz foi dizendo – É chamado de 6 Horas.

– Por que? – Perguntei, intrigada.

– A Cidade Central tem o formato de um relógio. E cada parte do relógio tem uma parte da população diferente da otra. Quanto mais prá cima, mais rico é o pessoal, mais bonita e menos suja é a cidade. Nóis tamo em baixo de tudo. Na pior parte da cidade. – Ele finalizou a explicação, virando uma esquina:

– Aqui é a fábrica de brim que fornece pano pros nosso uniforme. – Ele apontou para o próprio macacão. – A oficina fica no porão dessa fábrica. Vem comigo.

Entramos em um beco estreito e barulhento. Ali se encontravam tantas pessoas quando se podia abrigar num local como aquele. Todos eles conversando alegremente sobre trivialidades. Luiz foi saudado por aquelas pessoas de forma tão animada, que pareciam todos irmãos:

– Olha quem voltou! – Disse um rapaz grande e forte.

– Seja bem-vindo de volta, Luizinho! – Exclamou um rapaz de boina tão pequeno, que era quase ironia ele se referir a Luiz no diminutivo.

– Até rolou uma aposta aqui, Luizinho. A peãozada achou que você nem voltava mais! – Disse uma moça que tinha várias tranças miúdas descendo por baixo de uma velha touca de lã laranja. – Pera aí... Quem é essa aí, Luizinho? – Ela olhou para mim, com a mesma astúcia de um gavião.

Eu, que sorrateiramente me escondi atrás de Luiz, enquanto ele recebia as ovações dos companheiros, fui arrancada da sombra para a exposição diante de todas aquelas pessoas:

– Essa é a Jessy. Trouxe ela prá vê se o Ford arranja arguma coisa prá ela, já que o rapaiz que ajudava o Dany, acabou perdendo a mão na serra...

– Foi triste... – Disse o rapazinho – Ele era um bom assistente. Tinha talento.

Nesse momento, um apito estridente soou a porta de madeira no chão abriu-se e de dentro dela, saiu um homem de pele muito escura e careca. Vestia um macacão manchado e pesadas botinas:

– Bora trabalhar, cambada! – Ele disse com sua voz de trovão.

A animação dos operários não diminuiu. Cada um que passava por aquela figura intimidadora, desejava bom dia, e ele retribuía.

– Dia, Ford. – Luiz disse a ele, por último.

– Dia, Luizinho. Voltou no fim das contas? – Ele disse, cruzando os enormes braços.

– Vortei. E trouxe uma amiga. Prá substituí o Fred, sabe.

Ford olhou para mim com muita atenção.

– É certo que eu ainda não substituí o Fred. O Dany tem trabalhado sozinho desde o acidente. – E virando-se para mim, completou – Já trabalhou com manutenção, moça? Já consertou alguma coisa na vida?

– Bão, eu consertava as coisa lá da fazenda o tempo todo... – Eu disse, tímida.

– Fazenda é? – Ele ergueu uma sobrancelha – Veio do mato que nem você, Luizinho?

– Mais ou menos... Tamém é a primera veiz dela aqui na cidade e... – Luiz foi interrompido por Ford:

– E você se condoeu, por que a situação era igualzinha a sua e resolveu tentar uma oportunidade prá ela aqui, certo? – Ele disse, astuto.

– É... – Luiz estava encabulado. – Se ajuda, ela é bem mais isperta que eu era naquela época. Aprende rápido as coisa e gosta de lê.

– Hmmm... – Ford coçou o queixo – Vamo ver do que ela é capaz. Agora, anda logo Luizinho, que você já tá atrasado. Mocinha, comigo.

Luiz entrou antes de nós e eu desci as escadas estritas junto com Ford. O ambiente da fábrica era escuro. As luzes fracas vinham de luzes de foco, dirigidas para um lugar específico. A maior fonte de luz era a forja, que brilhava imponente e alaranjada no fundo do vasto cômodo. Conforme fui observando, percebi que as luzes não vinham de lamparinas, e sim de fios. Uma vez o Tio comentou isso comigo: chamavam de eletricidade. Ford parou tão de repente, que por pouco eu não esbarro nele:

– É aqui que você vai trabalhar hoje. – Disse ele, apontando para uma bancada vazia. – Espere aqui que eu já venho.

Quando Ford saiu, comecei a reparar melhor no ambiente: escuro, cheio de fuligem e uma espécie de gosma preta grudada em cada canto do local. Os operários, mesmo trabalhando, estavam rindo, contando piadas e reclamando da vida, cheios de energia. Havia fumaça e vapor para todo o lado, o que fazia meus olhos arderem muito. Respirar também era difícil, mas eu não tinha muita certeza se era devido a poluição ou a ansiedade que eu sentia. Quando Ford voltou, trazia com ele um braço enorme, o qual colocou com o máximo de cuidado sobre a minha bancada vazia:

– Bom, menina. Esse é o seu teste. Esse braço precisa ser consertado e você tem que localizar para mim quais são os defeitos presentes nele. Aqui – Disse ele, entregando para mim uma caixa de metal. – Use as minhas ferramentas reservas até ter condições de comprar as suas. E ponha os óculos de proteção. Assim seus olhos não vão arder tanto. Você tem até a hora do almoço. Boa sorte. – Disse ele saindo.

Eu conhecia os óculos de proteção: aquelas moças bonitas que apareciam lá em Sete Fazenda costumavam usá-los como acessórios de cabeça. Eu os coloquei. Apertavam meu rosto, mas protegiam meus olhos. Abri a caixa de ferramentas e encontrei alguns instrumentos familiares a mim da fazenda: martelo, pregos e parafusos. Chaves de fenda e uma outra parecida com ela, mas que tinha quatro filamentos. Fui desparafusando o que parecia ser a placa principal do robô e lá encontrei uma quantidade absurda de fios cabos e rodas dentadas: “Estou oficialmente ferrada” pensei. Jamais conseguiria entender como aquilo funcionava:

– Leve a luz para mais perto, assim você vai enxergar melhor. – Dany disse, enquanto passava com uma caixa de madeira, voltando a sua própria bancada.

– Ah, tá! Brigada. – Eu respondi, mas ele já não estava mais lá.

Peguei a lâmpada pelo cabo que a sustentava e segurei mais perto do braço enorme. Com a luz refletida, os detalhes se tornaram mais nítidos e compreensíveis. Fui passando a lâmpada ao longo do braço e mais ou menos na altura do pulso eu notei que uma das rodinhas dentadas estava desgastada, o que impedia o movimento do dedo do meio do robô. Senti meu coração dar um salto de alegria e meu ânimo voltando. O segundo defeito se encontrava em um fio, que estava descascado e separado em dois. O terceiro e último defeito se encontrava na válvula de lubrificação do robô, que levava óleo para o restante do braço.

Quando Ford chegou, eu estava toda suja com aquela gosma preta, mas satisfeita com o meu próprio resultado:

– E então, menina? Conseguiu alguma coisa? – Ele disse, cruzando os braços.

Quando terminei de relatar o que tinha encontrado, ele realmente parecia surpreso:

– É... Parece que você leva jeito mesmo. Agora junte as ferramentas, que logo é hora do almoço.

Quando estava terminando de juntar as ferramentas emprestadas, um apito soou: imediatamente os operários largaram o que estavam fazendo e correram para a porta como um grande estouro da boiada e Luiz veio ao meu encontro:

– E aí, como foi?

– Bão, o Ford disse que eu levo jeito. – Respondi saindo da fábrica com ele.

– Que bão! Sabia que ocê ia consegui! – Luiz disse, satisfeito. – Vem, vamo pro restaurante. Tô morrendo de fome e nóis tem só meia hora de almoço.

– Nossa, sério? – Eu disse, espantada.

– Sério. Antes era 15 minuto, mas o Ford bateu o pé e o patrão rendeu mais 15!

Chegamos a uma pequena construção de madeira que exalava um cheiro muito bom de comida recém-preparada. Notei que havia uma série de mesas agrupadas no centro do recinto e que cada um dos meus colegas ia tomando seu devido lugar.

– Onde eu sento? – Perguntei meio tímida ao Luiz.

– Aqui do meu lado. Era onde o Fred sentava.

– Licença. – Pedi automaticamente antes de sentar.

Do meu outro lado sentou a moça de touca laranja. Era pouco menor que eu e tinha olhos de amêndoa: cor e formato. Quando tirou a touca laranja, por educação, não pude deixar de notar que parte de sua cabeça era pura cicatriz onde não crescia cabelo. Desviei o olhar rapidamente. Os outros pareciam não se importar com aquilo.

– E aí, Luizinho. Onde você achou essa aí? – Ela disse descaradamente apontando para mim.

– Ela veio acompanhando a caravana da Mãe e do Pai. Como é a primera veiz dela na cidade, decidi dá prá ela a mesma chance que eu tive aqui.

– Hmmm... Sei... – Ela disse, incrédula – Tomara que trabalhe bem pelo menos...

– Ela vai trabaiá. É isforçada e isperta. Ocê vai vê só. – Eles pareciam ter esquecido que eu estava exatamente no meio deles; falavam como se eu não estivesse ali.

Um homem gordo de avental branco foi servindo os pratos grandes e fartos.

– Ih, arrumaram uma mascotinha nova, Ford?

– Essa é a Jessy, Bosko. Se tudo der certo, ela vai fazer parte do time.

– No lugar do rapaz que serrou a mão fora? – Disse ele, como se estivesse se divertindo com aquela informação.

– Isso mesmo. Pode servir a porção do Fred prá ela. – Ford disse, sério.

Bosko obedeceu e pôs diante de mim o maior prato de comida que eu já vi na vida. Alguns operários abaixaram a cabeça em agradecimento enquanto os outros avançavam vorazmente para a refeição servida.

– Ei moça – Disse Dany dirigindo-se a mim. – Como é seu nome mesmo?

– É Jessy... – Eu disse, enquanto engolia a comida.

– Bom, depois do almoço, você vai ficar comigo. Como sou eu quem você vai ajudar, a segunda parte do seu teste é conseguir me acompanhar.

– Tá... – Eu respondi, nervosa.

O almoço foi apressado. Saímos de lá às pressas para que pudéssemos voltar a tempo de os operários picarem o cartão em tempo. Segundo Luiz, aqueles que se atrasassem, teriam um desconto no salário. Como eu ainda não tinha um cartão, deixei que os outros passasse por mim.

– Muito gentil da sua parte, menina – A voz grave de Ford fez com que eu me assustasse.

– Ah, num foi nada não. Num custa dexá eles í na frente, né... – Eu disse sorrindo, meio sem graça.

Ford retribuiu o sorriso e completou:

– Você fica com o Dany agora. O trabalho dele não exige tanta força física quanto a dos outros, mas exige inteligência e atenção. Ele trabalha com os menores detalhes da manutenção e montagem dos robôs. A decisão final da sua contratação será tanto minha, quanto dele.

– Tá certo. É justo. – Eu disse, entrando com Ford.

Passei o resto do expediente com Dany. As peças com as quais ele mexia eram minúsculas. Rodinhas dentadas do tamanho de botões de camisa. E ele foi me ensinando a diferenciar o que era de cabeça, mãos e pernas. O alarme soou e deixamos o restante do serviço para nos esperar no dia seguinte.

– Espere aí, Jessy. O Ford quer falar com você.

– Tá bom...

Ford veio depois de uns cinco minutos de espera:

– E então, Dany. Como ela se saiu?

– Olha, vou ser sincero... Ela não conhece absolutamente nada de robótica, mas tem talento. Aprende rápido. Vou gostar de tê-la como ajudante.

– Bom, se ele aprovou, eu também aprovo. Venha amanhã, no mesmo horário. Agora vai, que o Luizinho disse que vocês tem que ir ver o Beau.

– Têmo mêmo! – Eu disse, juntando minhas coisas – inté amanhã, Seu Ford! Inté amanhã, Dany!

Luiz me esperava do lado de fora da fábrica:

– I intão...?

– Consegui! Vô trabaiá com ocêis!

– Ae! Sabia que ia consegui! – Luiz parecia mais feliz que eu. – Agora vamo toma um banho pá nóis i vê o Beau!

– Vamo sim!


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Notas finais do capítulo

Os seres mágicos serão colocados na história de forma discreta e sutil. Logo eles entrarão em foco, mas esse não é o momento!

Espero que estejam gostando!

Até o próximo capítulo!

Kirimi! ^v^

P.S.: Estou desenhando o mapa da Cidade Central. Acredito que no próximo capítulo ele já seja postado junto.

P.S.2: Como estou fazendo meu TCC da faculdade, os capítulos (infelizmente) vão atrasar... Sinto Muito!!!



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