Precisamos Conversar escrita por Rodrigo Caetano


Capítulo 4
2.


Notas iniciais do capítulo

E aí? Tudo bem?

Preparados para o capítulo 2? Vamos ver um pouco mais da Samanta e da Mandy, que conhecemos no último interlúdio ;) Sem contar uma surpresinha no fim...

Espero que curtam!

Boa leitura!



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— Boa noite, Maurice – disse Samanta, com um falso sotaque francês.

— Boa noite, Srta. Paolinni.

—Eu já disse para você parar de me chamar assim.

—E eu já disse que não vou parar...

Samanta gostava do porteiro do seu prédio, apesar de ele insistir em tratá-la com as mesmas formalidades com que tratava o pai dela, antigo sindico do prédio. Sempre que ela chegava em casa, aquela piada boba com o seu nome lhe fazia sorrir, independente de como havia sido o dia. Maurice era, na verdade, Mauricio, mas em sua interminável e cíclica rotina de aborrecimentos, ela valorizava cada pequeno motivo para rir.

O elevador chegou e ela entrou, pensando no que faria quando abrisse a porta de casa. Tinha um trabalho da pós-graduação para entregar no início da semana seguinte, e não tinha escrito sequer uma palavra. Também tinha alguns e-mails da sua chefe para responder, mas não se sentia disposta a pisar em ovos para falar com Viviana naquela noite. Kiwi, com certeza, precisava ser alimentado, e ela também. Decidiu que começaria por ali, e decidiria o resto depois.

Quando abriu a porta, contudo, todos os planos se mostraram tão inúteis quanto o tempo que ela perdera se preparando para a reunião de que fora dispensada mais cedo.

— Sam! Até que enfim você chegou! Estávamos pensando que teríamos que ir ao seu trabalho te resgatar!

Amanda passou os braços pelo pescoço de sua amiga, paralisada e estarrecida, ainda de pé em cima do tapete, na entrada de casa. A porta continuou a se mover sozinha, batendo na parede devagar antes que Samanta conseguisse esboçar uma reação.

—Mandy...? O que você...?

— Oi, Sam. Quanto tempo! – disse uma voz masculina, de atrás da bancada da cozinha americana do apartamento.

— Viu, eu trouxe o João... – disse Mandy, pegando a amiga pela mão e levando-a para perto dos convidados.

Samanta tinha que reconhecer — e tinha cometido o erro de fazê-lo na frente de Amanda assim que voltara do Rio — que o tempo de faculdade fez bem ao João. O menino sempre ficou dentro da média, quando comparado aos outros do colégio. Tanto em inteligência quanto em aparência. Aquele garoto por quem poucas perdiam a cabeça, mas que nenhuma delas rejeitaria.

Agora, anos depois, ele tinha ganhado corpo e uma barba que atraía tanto as meninas quanto a inveja de seus amigos. Ele tinha seu charme e sabia disso. Sam já havia admitido que qualquer uma que ficasse com ele seria uma garota de sorte. Só não queria aquela sorte para ela. Não mais.

— Hey... — cumprimentou, meio sem graça. Ao lado dele estava um outro homem, aparentemente alguns anos mais velho. Ela não estranhou. Mandy tinha um gosto por cabelos grisalhos.

— Marcelo, prazer – disse ele, com uma voz rouca, porém grave. Samanta sentiu a amiga se arrepiar ao seu lado.

Em outros momentos da vida, ela reconhecia que poderia ter rido daquilo. Não seria a primeira vez que Samanta chegava em casa pensando em trabalhos e Amanda a arrastava para fazer qualquer outra coisa. Normalmente, ela se deixava ser arrastada. Cumpria seus deveres pois sabia que tinha que cumprir, mas ansiava mesmo pela diversão.

Naquele dia, contudo, não. Naquele dia Samanta queria chegar em casa, dar um passo de cada vez e, caso encontrasse alguma disposição, fazer o que deveria fazer. Não havia espaço para a diversão. Ela não queria achar espaço para diversão. Mais do que isso, ela não via mais João como diversão.

Se falasse isso em voz alta, Mandy a acusaria de estar ficando velha. Sim, alguns sintomas da idade são normais, mesmo que, com 24 anos, ninguém em sã consciência pode ser chamado de velho. Mas ela achava que não era isso. Não era a idade ou o dia tenso que tivera, ou a agenda lotada e o maior senso de responsabilidade, que teoricamente vem como bônus, a cada presente de aniversário que a pessoa ganha.

Naquele momento, Samanta não sabia o que a deixava desconfortável, e não queria saber. Ela só queria que todo os invasores do seu apartamento saíssem dali.

— Gente, me desculpa... – começou a dizer, antes de ser interrompida por Amanda.

—Não! Não, não e não! Você não vai escapar de mim hoje, Sam. Hoje você vai sair com a gente. Nós vamos para balada e vamos beber. Está entendendo?

— Mandy, olha... obrigada, mas hoje eu realmente não estou no pique. Não quero sair. Estou um pouco atolada e não posso ficar bebendo.

—Por que não?! Você tem mais de dezoito anos, não tem ninguém te esperando quando você chegar em casa, é filha de um dos donos do escritório onde você trabalha... Meu, você pode o que você quiser!

Samanta respirou fundo. Mandy estava rindo, e ela sabia que a garota tinha intimidade o suficiente para jogar tudo aquilo na sua cara. Ela se preparou para voltar a argumentar, mas a amiga se antecipou.

— Vamos lá, meninos, digam para essa senhora de idade que ela vai se divertir se sair com a gente hoje à noite!

Marcelo riu, e assentiu, mas João deu um passo para perto dela, fazendo menção de esticar a mão para tocá-la no braço.

— Eu juro que você vai se divertir – disse ele, focado nela, com um bonito sorriso no rosto. – Eu garanto...

Sam fez um movimento brusco com o braço para longe do rapaz, deu um passo atrás, olhando-o de cima a baixo, como se o estivesse vendo pela primeira vez e não gostasse da visão. Ele se assustou com o movimento da mulher, arregalou um pouco os olhos e subitamente a sala ficou em silêncio.

Samanta não se conteve e aproveitou a oportunidade, descarregando um pouco da sua tensão na voz.

— Olha, vocês já entraram no meu apartamento sem minha permissão, beberam da minha bebida e sujaram a milha louça. Eu não convidei vocês aqui e já disse que não quero ser convidada a lugar nenhum. Por favor, peguem as coisas e vão embora, para onde quer que estejam planejando se divertir.

João deixou a boca se abrir alguns milímetros sem perceber, assustado com a atitude de Samanta. Marcelo se pegou olhando para o chão por um momento. O silêncio da sala só foi quebrado quando ninguém mais sabia para onde olhar, então todos se viraram para Amanda.

— Sam... – ela começou, primeiramente perdida. – Sam, olha, você não está sendo justa. Vem com a gente. Você obviamente precisa relaxar. Vamos tomar um...

— Não! – Sam agora falou alto, cortando a frase da amiga e esquecendo-se dos dois homens que estavam ali. – Mandy, não é não. Se qualquer homem fizesse com você o que você está fazendo comigo, você o chamaria de machista, possível estuprador. Eu não quero e não vou sair, e você já invadiu a minha privacidade o suficiente por um dia. Vai embora!

— Você não vai nem...?

— Vai embora! – Samanta apontou para a porta, rapidamente percebendo as lágrimas que surgiam na borda de seus olhos. Ela se manteve determinada em não deixá-las cair. Não enquanto todos estivessem ali.

Amanda pegou sua bolsa, jogada no sofá, enquanto os dois homens que ela trouxera já se encaminhavam para a saída. Marcelo passou e João segurou a porta aberta para Amanda. Samanta não se virou para ver ou se despedir.

A porta se fechou e Samanta respirou fundo, tentando retomar o controle sobre si mesma. Mas ainda conseguia ouvir o trio no corredor, esperando o elevador, quando João perguntou a Amanda o que será que tinha provocado aquilo tudo.

— Não sei – respondeu Mandy. – Às vezes eu acho que a minha amiga nunca voltou do Rio, João. Não sei o que aconteceu com a Sam por lá. Não tenho a menor ideia do que essa piranha que voltou fez com ela.

Samanta se jogou no sofá, sentindo-se uma tonelada mais pesada do que jamais se sentira, e finalmente deixou as lágrimas rolarem.

*-*-*-*-*-*-*-*-*

Eram três da manhã e Samanta estava deitada no sofá da sala, com um copo de uísque quase vazio apoiado na mesa de centro. A janela estava aberta e, como se sentindo a presença da sua dona, Kiwi se recusava a dormir. Ela ouvia de tempos em tempos os seus pios e suas asas batendo de um lado para o outro da gaiola próxima a janela onde ele ficava.

Ela tinha desistido de tudo o que tinha para fazer depois da discussão que tivera com sua suposta melhor amiga. Se antes ela não sabia se teria disposição, a briga ajudou-a a perceber que não teria. A verdade, porém, é que estava ficando sem disposição o tempo inteiro. Lá estava ela, no lugar em que todos esperavam que ela chegasse, fazendo o que todos esperavam que ela fizesse. Por muito tempo achou que esperava aquilo de si mesma também, mas agora, sentindo na pele a sua indisposição completamente imotivada, Samanta começava a questionar as próprias expectativas.

Sem conseguir dormir, ela pegou o copo e se viu caminhando em direção ao passarinho. Parou ao seu lado e olhou para o céu estrelado da noite de São Paulo. Em algum lugar, naquele momento, Amanda estava bêbada, xingando a melhor amiga de todos os piores nomes possíveis enquanto dançava com Marcelo. Ela nem sequer tivera tempo de conhecer o homem antes de dar seu ataque.

E o pior é que ela conhecia Mandy o suficiente para saber que aquela seria provavelmente a sua última chance de conhecer o homem de cabelos grisalhos. Aquela noite seria a impressão que ele gravaria na sua cabeça.

Alguns anos atrás, Sam talvez se importasse com aquilo, mas não conseguia se prender a coisas assim. E isso pouco tinha a ver com o fato de ela também não ter tido uma grande impressão dele, uma vez que ele estava saindo com Mandy quando provavelmente deveria estar cuidando de uma filha em casa.

Ela pouco estava ligando para a idade dele, sua possível profissão ou sua falta de filhos. Realmente não via motivos para se importar com nada daquilo. Talvez fosse isso que a incomodasse mais. A falta de motivos pelos quais se importar com as coisas, por mais que ela soubesse que deveria — afinal, ele estava saindo com sua melhor amiga.

O dever de se importar com as coisas sempre fez dela uma menina responsável. A família tinha pouco a reclamar, por mais que ela sempre tivesse adotado uma atitude um tanto quanto desafiadora no dia-a-dia. Quando um assunto de maior importância surgia, cumpria com o que era esperado dela sem mesmo esperar que alguém lhe cobrasse. Era o que ela mesma se impunha. Esperava sempre estar à altura das altas expectativas dos outros, como a filha, amiga e profissional que era. Quando mais nova, recordava se orgulhar daquilo.

Hoje, ela não lembrava mais o porquê.

– Pois é, Kiwi. Eu sempre ouvi todo mundo dizer que eu não devia me importar tanto com o que os outros fazem. E, hoje, eu sinto que consigo. Mas por que será que eu não me importo?

O pássaro, por mais surpreendente que fosse, lhe respondeu. Não com palavras, é claro, mas com um som que rendera o nome de sua espécie, bem-te-vi.

Sam riu, tentando decifrar o que o pássaro estava tentando lhe dizer, enquanto o observava olhando para o céu pouco estrelado da noite. Ela seguiu o seu olhar, finalmente percebendo que, se ela estava esperando conversar com aquele passarinho, já passara da hora de parar de beber uísque.

Eu preciso falar com alguém, pensou, rindo sozinha de si mesma. Mas, em São Paulo, a única pessoa com quem ela se sentia confortável o suficiente para ligar de madrugada era Mandy, justamente a pessoa com quem ela não queria falar. Sem saber para quem ligar, voltou a olhar para as estrelas.

—Sabe, Kiwi? No Rio eu tinha um amigo chamado Daniel. Na verdade, ele era amigo do David, e foi meu chefe por um tempo. Uma vez ele me pegou olhando para as estrelas exatamente como agora e me disse uma coisa que eu nunca vou esquecer. – Ela inspirou devagar, focando na lua minguante que começava a se esconder por trás de uma nuvem, e voltou a soltar o ar antes de falar. – Ele me disse que o sonho de muita gente é ter uma grande conta bancária, trabalhar numa grande empresa e viver na cidade grande. Essas pessoas, quando têm tempo para olhar para cima, veem poucas estrelas brilhando em um pedaço pequeno de céu, e ficam se perguntando o porquê daquilo. Ora, porque elas estão numa cidade grande, trabalhando numa grande empresa, correndo atrás daquela grande conta bancária.

Kiwi piou mais uma vez antes dela continuar.

— Ele dizia que apenas quando estamos no meio do nada, e não tem nada ao nosso redor por uma enorme distância, é que conseguimos olhar para cima e ver o tamanho do céu que nos envolve, e contar as estrelas. Ele dizia que um homem não precisa muito mais do que isso, Kiwi. Apenas o infinito do céu, a luz das estrelas, e mais nada ao seu redor.

Samanta suspirou, Kiwi se calou e os dois ficaram lado a lado em silêncio por alguns momentos. Até que ela pegou o celular do bolso e digitou sua senha para desbloqueá-lo.

— Estou com saudades do Dan...

Ela digitou a letra “D” e logo viu o nome do amigo carioca. Clicou e levou o telefone ao ouvido, escutando os toques da chamada. Decidiu esquecer que não falava com o amigo há mais de um ano.

Foram três toques sem resposta e ela estava prestes a desligar o telefone, quando ouviu a entrada da caixa postal. Era uma voz masculina e não a padronizada da máquina. Pior, ela conhecia aquela voz. Não precisou tirar o telefone do ouvido para perceber que ligara para a pessoa errada. Ela ouviu toda a mensagem, sem conseguir tirar o telefone do ouvido.

“Hey! Você ligou para David Muller, mas ele, infelizmente, não conseguiu atender. Como hoje é quarta, ele foi ao jogo no Maracanã, e ia seguir direto para a casa do Dan, na serra. Desculpa, mas acho que ele vai ficar fora o feriado todo. Na serra nem sempre o telefone tem sinal, mas não custa tentar, né? Na pior das hipóteses, deixe um recado após o sinal.

Ah, e P.S.: Se for a Sampa, a gente ainda precisa conversar.”

Samanta ouviu a mensagem e desligou o telefone antes do sinal, ainda sem conseguir respirar. Ficou muito tempo olhando para o nada fora da sua janela, mal ouvindo os sons cada vez mais altos que Kiwi estava fazendo ao seu lado, aparentemente sem maiores motivos. Sua cabeça estava a mil, sua respiração acelerou e seu coração batia em alta velocidade.

Olhou para o céu e não viu nada. Olhou para si e não viu nada. E ficou repetindo aquelas palavras “precisamos conversar”. É, Samanta, precisamos mesmo conversar... pensou.

Kiwi começou a voar dentro de sua pequena gaiola, batendo nas paredes, até que finalmente conseguiu chamar a atenção de sua dona. Ela pareceu acordar em um pulo, ainda tentando processar o que estava acontecendo. Olhou para seu passarinho com uma expressão de curiosidade, que logo se transformou em uma mistura de estranheza com uma pitada de incredulidade. Sentiu uma enorme culpa explodindo dentro de si enquanto ele se debatia dentro da gaiola.

—Meu deus, o que você ainda está fazendo aí?

Samanta esticou a mão e destrancou a porta da gaiola de Kiwi, que, sem pestanejar, saiu e voou céu afora. Ela se permitiu observar o passarinho se distanciando com um leve aperto no coração, vendo-o desaparecer na escuridão do céu, com poucas estrelas. Respirou fundo, sentiu vontade de chorar, e sorriu. E então, finalmente, foi se deitar, sabendo que nunca mais veria o passarinho de novo. Dormiu com um sorriso no rosto, como não fazia há muito tempo.


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Notas finais do capítulo

E aí? Alguém entendeu alguma coisa?! hahahhahah

Eu vou tentar explicar um pouquinho no Interlúdio que já deve estar no ar =)
Espero vocês nos comentários! xD



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