Precisamos Conversar escrita por Rodrigo Caetano


Capítulo 2
1.


Notas iniciais do capítulo

Olá! Aqui vai o primeiro capítulo dessa história. Espero que curtam!

Boa leitura! =)



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Já passava das dez da noite quando ela entrou em casa. Não que o horário importasse. Não havia a quem acordar, nem mesmo a necessidade de manter o silêncio. Ela estava completamente sozinha. Bem, sozinha se não considerasse o Kiwi, o bem-te-vi que seu pai lhe dera quando ela se formara na faculdade e voltara para sua cidade natal. Ele tinha o hábito de capturar passarinhos para criá-los, e, por algum motivo, achou que aquele poderia ser um presente adequado para sua única filha.

Ao som do canto do passarinho, que sempre lhe dava boas vindas, Samanta ligou as luzes da sala, jogou a bolsa na poltrona ao lado da porta — colocada ali única e exclusivamente para isso —, descalçou as sapatilhas e se jogou no sofá da sala, poucos metros à frente.

Seu calcanhar latejava, mas ela não queria examiná-lo, pelo menos por enquanto. Sabia que o encontraria machucado pela sapatilha, depois de tanto caminhar no trabalho. Era em dias como aquele que ela se arrependia de trabalhar em um escritório grande. Já deveria estar acostumada com as bolhas e os pequenos cortes que o desgaste e o atrito com o sapato causavam, mas preferia-os a ter que usar saltos altos.

Pelo menos assim ela diminuía os prejuízos aos joelhos, ou era isso o que dizia a si mesma. A verdade, porém, é que ela sabia que odiava usar aqueles sapatos, e que manter o ritmo acelerado em cima de saltos, correndo de um lado para o outro, envolveria um número muito desconfortável de pequenos acidentes, esbarrões e escorregões.

Tomou coragem e levantou o tronco do sofá para alcançar o controle da televisão, que repousava tranquilo na fria mesa de centro de seu pequeno apartamento. Ela morava ali há mais de um ano agora e não podia reclamar de muita coisa. O apartamento era pequeno o suficiente para não dar trabalho e espaçoso o suficiente para acomodar aquilo de que ela precisava no dia-a-dia. Em suma, ele lhe dava espaço para viver o pouco tempo que tinha dentro de casa.

Sua família sempre a presenteava com mais do que o necessário, e, inclusive, tinha sido o seu pai que lhe comprara aquele apartamento, logo após sua formatura na Faculdade de Direito, no Rio de Janeiro. Aquele tinha sido um dos muitos pequenos feitos de seus pais para convencê-la a voltar para casa, e deixar para trás a vida que construíra durante os longos anos de estudo na Cidade Maravilhosa.

Não fora uma decisão fácil e pediu uma série de sacrifícios, mas ela acabou cedendo à pressão, depois de muita insistência e pequenos presentes, como o lugar em que ela agora vivia e o emprego em que agora trabalhava – sem contar Kiwi.

Ligou a televisão e percebeu que o jornal da noite já havia acabado, e que agora as novelas ocupavam o horário nobre da grande maioria dos canais. Ela mudou imediatamente para um dos canais musicais, que passavam clipes vinte e quatro horas por dia, e se deixou relaxar. Levantou as pernas, apoiou a cabeça em uma das almofadas e fechou os olhos. Estava com fome, sede e sabia que precisava de um banho antes de deitar, mas ela não iria dormir ali. Faria tudo o que tinha para fazer logo depois de dar apenas uma breve relaxada no sofá da sala.

O telefone tocou e a fez levantar de sobressalto. Seus olhos abriram tão rapidamente que ela mal teve tempo de processar o que estava acontecendo. Ainda às cegas, esticou o braço e pegou o aparelho que tocava na mesa ao lado do braço do sofá.

— Alô? — disse ela, se assustando com o sono que pesava na própria voz.

— Mas você já estava dormindo? Não acredito! Acabou de bater meia-noite! – a voz inconfundível de Amanda, uma de suas melhores amigas, já não a assustava mais. Praticamente todas as noites seu telefone tocava ao menos uma vez, e Amanda a convidava para fazer algum programa noturno, sempre envolvendo boates, homens, álcool e consequentemente, pouco tempo de sono.

— Hoje é terça-feira, Amanda, eu tenho que trabalhar amanhã. Espera aí, você disse que já são meia-noite? – Ela havia chegado do trabalho as nove e meia. Pelo visto sua breve relaxada não havia sido tão breve assim. Amanda ignorou a pergunta da amiga e prosseguiu.

— E daí, Sam? Não estou te chamando para sair amanhã, estou te chamando pra sair hoje. Vamos, o João vai estar lá!

— João? Lá? Onde é “lá”? – disse ela, tentando acompanhar o ritmo da menina do outro lado da linha. – Meu Deus, o Kiwi!

Levantou com um pulo e foi reabastecer a gaiola do passarinho com comida e bebida. Ele já estava nervoso, voando de um lado para o outro e piando. Sabe-se lá como ele mesmo não a havia acordado. Ela provavelmente já havia se acostumado ao som do pequeno bem-te-vi.

— Sabia que se eu falasse do João você ia topar! – disse Amanda, ainda na linha. João fora um pequeno caso que Samanta tivera quando ainda cursava o colegial, e que há muito tempo já havia deixado para trás. Assim como deixara tudo para trás quando se mudou para o Rio. Voltar a sua cidade natal tinha algumas desvantagens, como desenterrar partes do passado que há muito estavam esquecidas.

Amanda, um dia, a conhecera tão bem que era capaz de dizer o que se passava na cabeça de Samanta sem muito esforço, ou atraí-la dizendo apenas o nome certo na hora certa, mas essa era outra mudança que a viagem havia causado.

— Não! Não foi o que eu quis dizer! Eu não sei por que perguntei, não vou mesmo.

— Você não era assim, Sam! Eu me lembro de você mais animada...

— Não adianta provocar, Mandy. Antes eu não tinha que trabalhar no dia seguinte. Podia ir para a aula e dormir lá. Aproveita a sua noite, a sua ressaca amanhã, e tenta não acordar na cama de um estranho ok?

— E por que não? Você é quem devia tentar isso mais vezes...

As duas gargalharam e Samanta desligou o telefone antes que sua amiga pudesse falar mais alguma coisa. Não era hora de se estender em conversas telefônicas e ela realmente não queria correr o risco de ser convencida a sair naquela noite. O dia seguinte prometia ser tão cansativo quanto aquela terça-feira, e ela precisava das poucas horas de sono que tinha durante a noite para que tudo corresse bem.

Depois de observar contente enquanto o passarinho matava a sede e a fome, ela decidiu tomar banho antes de pensar no jantar. Precisava comer, mas também tinha passado o dia todo fora de casa, andando de um lado para outro. Uma ducha era definitivamente a prioridade maior.

Entrou no banheiro, tirou a roupa e ligou a água quente. Deixou que a água escorresse por seus cabelos enquanto o vapor arrepiava cada pelo de seu corpo. Aquele momento relaxante era um dos pontos altos do seu dia, e ela havia aprendido com o tempo a apreciar os pequenos prazeres dentro da correria, quando não lhe restava ao menos tempo para ligar para sua família.

Os amigos que havia feito no Rio eram coisa do passado e, talvez com a exceção de Amanda, as únicas pessoas com quem ela tinha certeza de falar diariamente eram os seus colegas de trabalho. Não que eles fossem pessoas ruins com quem se falar diariamente, mas no fundo ela sentia falta da intimidade. Algo que hoje duvidava ter com qualquer um.

Sair de sua cidade natal fora uma decisão mais difícil do que ela esperava. Deixar para trás família e o pequeno, mas leal grupo de amigos que tinha feito no colegial arrancara um pequeno pedaço do seu coração, que só se conformava em fazer a mudança pensando adiante. A liberdade que sua nova vida lhe proporcionaria valeria a pena. E, mesmo distante, ela renovaria os laços de amizade, que seriam mantidos durante o tempo longe através de uma árdua luta.

O que ocorreu no Rio de Janeiro, porém, fora além de todas as expectativas que ela poderia ter. A vida sozinha, as cores da cidade e as pessoas que conhecera fizeram com que ela se sentisse em casa. Tão em casa, talvez, como se sentira no passado. Quem sabe, ela temera, até mais. Manter o contato não fora assim tão fácil como esperava, e, aos poucos, os antigos amigos foram dando lugar aos novos, e seu coração foi aceitando a ideia de que aquele poderia ser o seu lugar.

Quando chegou a metade do seu curso, Samanta estava dividida entre as duas cidades, sem saber se realmente gostaria de voltar quando formada, como sempre havia planejado. Não sabia se teria a coragem de abandonar tudo novamente. Sair de casa fora duro e ela temia que repetir a experiência poderia ser ainda pior. Foi então que conheceu David.

No começo tudo não passava de um caso de verão. Foi durante o seu segundo ano de faculdade, nas férias em que ela decidira, pela primeira vez, não voltar para São Paulo. Seu pai estaria trabalhando na Europa e sua mãe havia aproveitado a oportunidade para acompanhá-lo.

Samanta preferiu não atrapalhar uma viagem que poderia fazer bem ao romance dos pais, e ficou para trás, apesar da tentadora oferta de segui-los. Passava por uma fase distante em relação aos seus amigos mais próximos e decidiu, mais por inércia do que por vontade própria, passar o verão inteiro no Rio de Janeiro, com seus novos amigos.

Naqueles meses ela fortaleceu os seus laços de amizade na cidade, conheceu uma vasta gama de novas pessoas e viveu uma série de experiências que nunca imaginou viver, como pular de asa delta, fazer uma tatuagem permanente e ter alguns casos de uma noite só. David teria sido um deles, de acordo com o plano inicial, mas uma das coisas que ela aprendeu aquele verão era que o seu coração não lidava muito bem com os planos iniciais.

O caso de uma noite se repetiu na noite seguinte, e duas noites depois, e antes que ela percebesse estava andando de mãos dadas com ele pela praia, entre os seus amigos. Era apenas um caso de verão, mas o verão no Rio de Janeiro era muito mais longo do que ela esperava. Quando se deu conta, o inverno havia passado e o verão chegado de novo, mas ela continuava a andar de mãos dadas com ele.

Foram cerca de três anos que ficou no Rio após conhecê-lo e não foi preciso muito tempo para que sua cabeça se decidisse, finalmente, sobre onde ela deveria ficar após terminar seus estudos. Sem muito espaço para discussão, seu plano inicial havia mudado. Não pretendia mais assumir os negócios da família, voltar para casa e para toda a vida que deixara para trás. Ela não queria abandoná-lo.

Ainda assim, depois de tanto tempo, lá estava ela, em casa, solteira, vivendo sozinha, saindo do banho depois meia-noite de uma terça-feira para começar a pensar no seu jantar, enquanto ouvia seu passarinho de estimação cantar, preso em sua gaiola.

Não podia demorar muito, pois no dia seguinte precisaria acordar cedo e seguir para o seu trabalho, o negócio da família. Às vezes ela se pegava tentando lembrar por que escolhera levar aquela vida, e se ela já sabia o quão solitária estaria quando tomou essa decisão. Era impossível não admitir que sentia falta do jeito leve e alegre de David, principalmente nessas horas.

Ela sabia que já o tinha esquecido, virado a página daquela fase de sua vida a que ele pertencia, mas em certos momentos solitários sua mente ainda vagueava pelas ruas do Rio procurando o caminho da sua casa, o amplo apartamento que a família dele bancava, e ele a convidara a compartilhar.

Sem perceber, se pegou pensando em como ele estaria um ano depois de deixá-lo. Seu único arrependimento na vida foi não ter sido forte o suficiente para lidar com aquela situação como deveria. Lembrava-se daquele dia, há mais de um ano, com mais precisão do que se lembrava de muitas das questões importantes com que lidara mais cedo no escritório. Lembrava-se de cada uma das poucas palavras que deixara para trás, mas não lembrava do rosto dele quando ela se despediu.

Samanta torcia para que ele tivesse entendido, mas ainda carregava no peito o peso da sua covardia, em um lugar que, temia ela, ninguém jamais iria notar. Afinal, como ele poderia ter entendido, se nem para ela aquilo fazia sentido?

Apesar de estar convicta de ter esquecido seu antigo amor, ela lembrava de todo o resto. Inclusive do número de telefone da sua antiga casa.

Enquanto esperava a comida congelada ficar pronta no micro-ondas, ficou imaginando se ele atenderia caso ela ligasse e o que ele diria. Comeu com o celular ao lado, vivendo diferentes situações em sua cabeça, pensando o que ocorreria se ela tivesse coragem de fazer uma loucura numa madrugada qualquer. O passarinho parecia descansar em seu poleiro, na gaiola pendurada próxima a janela, pronto para dormir.

—Pois é, Kiwi, mais um dia se foi. E no fim, nós acabamos só ficando um dia mais velhos...

O passarinho piou, em uma mistura de tristeza e sono. Samanta não sabia qual dos dois era o predominante, mas aquilo não importava.

—Vamos lá, um dia de cada vez, até sabe-se lá quando...

Então terminou de comer, deitou e dormiu.

*-*-*-*-*-*-*-*-*-*

O telefone tocou e Samanta se levantou com tanta velocidade que mal conseguiu se encontrar, sentada na cama enquanto o mundo inteiro rodava a sua volta. Seu coração estava disparado e ela levou a mão à cabeça, na esperança de que, com algum apoio, tudo parasse de girar. Piscou os olhos algumas vezes e seu quarto diminuiu de velocidade, mas ainda havia alguma coisa errada, apesar de ela não saber exatamente o quê. Olhou o relógio e viu que ele marcava pouco mais de seis da manhã. Se alguém estava ligando àquela hora, algo terrivelmente grave tinha acontecido.

Só então o silêncio lhe incomodou. Ela tivera certeza que, no segundo anterior, o telefone estava tocando, mas agora não estava mais.

— Merda!

Samanta pulou novamente, dessa vez ficando de pé, com relativa certeza de que o mundo não giraria com a mesma veemência novamente. Caminhou para a sala esperando que a chamada só estivesse no curto espaço de tempo entre um toque e outro, e não completamente perdida, mas aquela esperança foi se esvaindo passo a passo.

Encontrou o aparelho sem fio jogado pela mesa da sala, piscando para avisar que estava sem bateria. Bufou, xingando a si mesma por tê-lo deixado ali depois de falar com Amanda no dia anterior. A base do aparelho, na mesa de apoio ao lado do sofá, não indicava nenhuma chamada ou ligação perdida. Aquilo era estranho. O aparelho não deveria ter tocado se estava sem bateria, e a base normalmente indicava o número da última ligação, mesmo se perdida.

Ocorreu-lhe em seguida que o escritório provavelmente não teria ligado para o número fixo de sua casa, hoje em dia quase inutilizado, sem antes tentar o seu celular. Correu para o quarto para buscar o aparelho no carregador e se espantou ao perceber que ali também não constava nenhuma mensagem ou chamada não atendida. Ela olhou fixamente para o celular, tentando se lembrar do som que lhe acordou. Será que estivera sonhando? Ela não conseguia se lembrar de nada, mas logo foi distraída da tentativa.

O celular não acusava chamadas, mas os e-mails pareciam ter chegado durante toda a madrugada.

Esse era um dos problemas de se trabalhar com clientes de todos os cantos do mundo. Nenhum deles tinha um senso muito preciso do que queria dizer fuso-horário. Ela não os culpava. Se ela tivesse o valor que eles pagavam todo mês em honorários ao escritório, a última coisa com que ela se preocuparia era com o horário.

Contudo, Samanta ainda não desfrutava diretamente dos valores que os clientes pagavam. Ela recebia um salário mediano e odiava contar com a ajuda financeira dos pais. E, mesmo que eles tivessem uma condição mais do que confortável, eles ainda pareciam se preocupar demais com o horário, principalmente o que ela chegava ao escritório. Logo, ela tinha que se preparar para mais um dia de trabalho.

Passou pelos dois primeiros e-mails, já respondidos por seu pai às quatro e meia da manhã, e viu a convocação para uma ligação internacional às nove, na sala de conferências. Xingou, sabendo que aquilo a obrigaria a pular a academia. A ligação envolvia um projeto em que ela não estava participando até então, logo, precisaria se inteirar de tudo antes da hora. E teria de fazer tudo sozinha, pois duvidava que sua chefe estaria no escritório antes da ligação.

Encaminhou os outros três e-mails que recebera diretamente para sua estagiária, mesmo sabendo que estava pedindo demais da menina. Esse era o mercado, ela pensou, tentando se consolar e não sentir pena. Estavam pedindo demais dela também, e isso era necessário. Sorriu quando a estagiária lhe respondeu, poucos minutos depois. A menina já estava no escritório, pronta para o batente. Aquele pensamento a fez sentir mais pena do que antes. Se apenas a jovem estudante soubesse o quão importante era ter uma vida fora do trabalho...

Tomou banho em cerca de dez minutos, e começou a se preparar. Aquela era uma rotina com a qual ela tinha se forçado a se acostumar, mas algumas coisas ainda lhe pareciam estranhas. Colocar uma sapatilha na bolsa enquanto calçava os saltos era uma delas. Uma vez tentara deixar um par no trabalho, mas a secretária de seu pai notara que ela estava repetindo a mesma sapatilha três dias seguidos. Aquilo não deveria importar, ela sabia, mas o comentário da secretária fez com que seu pai lhe oferecesse para comprar sapatilhas novas, e ela percebeu que enquanto as pessoas a sua volta se importassem com seus pés, ela seria obrigada a se importar também.

Na verdade, se importar com seus pés era a maneira errada de dizer aquilo. Se eles estivessem mesmo preocupados, não a fariam usar sapatos que prejudicassem a coluna ou que ferissem o seu calcanhar. Se ela continuasse naquela linha de pensamento, porém, não acabaria em conclusões agradáveis. E ela já tinha algumas coisas desagradáveis com que se preocupar, como o projeto surpresa em que caíra de paraquedas.

— Tchau, Kiwi! – ela disse, depois de ter certeza de que tudo que ele precisava estava na sua gaiola.

Não estava com tempo ou paciência para pegar o metrô e ficar com medo de ser assaltada, ou ter de ouvir grosserias. Odiava se privar das coisas por medo, mas também não conseguia se livrar inteiramente dele. Era apenas uma das muitas batalhas que ela travava consigo durante o dia. Às seis da manhã e com a pressão em que estava, ela sabia que não tinha alternativa.

Resignou-se em gastar um pouco do seu salário para chegar o quanto antes ao escritório. Parou na beira da rua, estendeu a mão e logo pegou um táxi. Chegou logo depois de fingir estar novamente surpresa com o trânsito daquela cidade, que parecia não ter hora ou lugar. Entrou no elevador e correu para a sua sala.

— Bom dia, Sam – disse Joana, sua estagiária. A menina era bonita, de cabelos loiros e mais alta do que Samanta. Estava no auge de seus vinte e dois anos, e ostentava as maiores olheiras que sua chefe já havia visto. E, para alguém que está no mundo do direito há algum tempo, isso era algo relevante.

— Jô, você chegou a dormir esta noite?!

—Umas duas horas – respondeu a menina. – Mas isso não tem problema, estou acostumada. Precisava terminar a apresentação do seu pai. Obrigada por falar bem de mim para ele, por sinal.

Samanta balançou negativamente a cabeça, rindo. Em situações normais, ela teria interpretado aquele comentário como uma piada, mas sabia que a menina realmente estava lhe agradecendo por tê-la apresentado ao chefe que a mantivera atolada de trabalho durante a madrugada. E em um projeto que, provavelmente, não era lá tão importante — ou não estaria nas mãos de uma estagiária.

A mulher não conseguiu evitar em se reconhecer um pouco na garota, com toda essa vontade de cumprir o que achava que era esperado dela. Ela também já passara por uma fase em que perder noites de sono por projetos de pouca importância era visto mais como uma oportunidade do que como um sacrifício. Certo dia, ela admirou em si mesma a capacidade de ter esse tipo de atitude perante o seu trabalho, mas, olhando para a menina mais jovem, não conseguia se lembrar por quê.

— Menina, você um dia via pirar, escreva o que eu estou lhe dizendo.

A menina riu também, mas não respondeu. Preferiu mudar de assunto.

—Sobre os contratos que você me pediu mais cedo, você os quer para hoje, não é?

—Não exatamente. Pode prepará-los para amanhã. Diz para todo mundo que eu te atolei hoje e te mandei trabalhar de casa. Vai descansar. Sem grilo.

— Jura? Eu só achei que era para hoje, pois as empresas são do Rio. Quinta-feira é feriado lá e se eu só fizer os documentos amanhã, só vamos conseguir mandar na sexta.

— Quinta agora é feriado por lá? Não sabia... Mas qual é o problema?

—Nenhum, eu acho. Só que o cliente parecia estar com pressa, então eu resolvi perguntar.

Samanta abriu o e-mail do cliente e desceu para ler toda a conversa. A menina estava certa. Ele queria o processo todo finalizado até o início da semana seguinte. Aquilo era impossível, ela sabia. Mesmo dando entrada na sexta, o registro dos contratos só seria liberado na quarta-feira seguinte, talvez na quinta. Ainda assim, ela teria de enrolar o cliente, enquanto eles faziam tudo o que podiam para finalizar o processo o quanto antes.

—É verdade – disse a mulher, respirando fundo. – Mas eu mantenho o que disse. Diz para todo mundo que eu te dei muito trabalho e te mandei fazer de casa. Eu me viro com esses contratos mais tarde, sabe-se lá como, e envio para o Rio ainda hoje.

—Jura? Muito obrigada, Sam. Você não existe! – respondeu a menina.

— Sussa. Vai para casa!

—Tudo bem, vou apenas terminar uma pesquisa que a Vivi me pediu e vou.

Samanta revirou os olhos enquanto a menina saía da sala. Ela aparentemente não sabia viver sem trabalhar. Viviana era a sua chefe direta, que lhe chamara para a ligação. Aparentemente ela havia ocupado também a estagiária. Samanta ficava se perguntando se ela fazia alguma coisa sem pedir ajuda de alguém.

Sem muito tempo a perder, ela mergulhou de cabeça estudando a complexidade da operação sobre a qual seria a reunião telefônica. Ela tinha que absorver aquilo de ponta a cabeça em pouco menos de duas horas, de maneira que pudesse conhecer o projeto como se ela mesmo tivesse criado.

Viviana nunca a deixaria passar essa impressão, obviamente. Aquela era a posição e o dever dela, hierarquicamente. Mas como a mulher não havia bolado o projeto e ela não gostava de dar espaço a quem realmente havia feito, Samanta preencheria aquele lugar da melhor maneira que pudesse, mesmo que estivesse um pouco cansada daquela competição egocêntrica que a maioria das pessoas ali pareciam participar diariamente.

O alerta no seu celular tocou cinco minutos antes do horário marcado para ligação – aproximadamente vinte e três horas antes de ela estar completamente preparada – e ela pulou da cadeira, andando rápido pelo escritório até chegar à sala de conferências, do outro lado do prédio.

Abriu a porta e viu Viviana e a estagiária Joana, a quem ela havia mandado ir dormir, sentadas uma ao lado da outra, já começando a discar o número do cliente.

— Samanta, me desculpe. Eu não lhe enviei o e-mail? Você não precisa mais participar da ligação. A Joana conseguiu se preparar bem agora de manhã e resolvi dar essa chance para ela, que tal?

Sem saber o que responder, a mulher respirou fundo, tentando inutilmente esconder o choque. Foram necessários alguns constrangedores segundos para que ela se recuperasse e conseguisse manter o decoro e a imagem que tinha a zelar, como filha do dono do escritório.

—Sim, ela é realmente muito esforçada — disse, forçando um genuíno sorriso a aparecer no rosto. – Desculpe, Vivi, eu não recebi o seu e-mail.

—Eu é que me desculpo, ele deve ter ficado preso na caixa de saída. Você é bem-vinda, se quiser ouvir a conferência.

—Não, obrigada – disse Sam, sorrindo para as duas mulheres sentadas à mesa. Joana estava com os olhos no chão. – Eu tenho uns contratos que preciso enviar para o Rio o quanto antes.


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Notas finais do capítulo

E ai, o que acharam? O interlúdio desse capítulo também já está no ar! Passa lá! xD



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