Clair de Lune escrita por Lúthien


Capítulo 3
Capítulo 3


Notas iniciais do capítulo

Mais um encontro mágico.



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Após conseguir voltar para o hotel, Félix não pode dormir pensando em sua estranha aventura. Estaria passando por algum tipo de estresse que estaria abalando sua sanidade mental? Era o que se perguntava constamente.

Edith estranhou aquele comportamento.

— Onde você esteve ontem a noite Félix? Não quis ir à festa com nossos amigos, mas acabou chegando mais tarde que eu.

— Eu fui andar por aí Edith, ver a cidade sem ter você e o papi me controlando.

— Ah é? E será que eu não tenho razões para isso?

— Não Edith, não há nenhuma razão para você querer controlar todos os meus passos. E além do mais, aquelas criaturas não são minhas amigas. É o apocalipse!

— Você tá estranho, Félix. O que andou fazendo?

— Ah, mas eu devo ter roubado as trinta moedas de Judas pra você ficar desconfiando de mim. Eu já disse que fui andar por aí... eu acabei encontrando um lugar simpático, resolvi passar um tempo lá, só isso.

— Que lugar simpático é esse?

— Um desses bistrôs que tem por aí, não lembro qual.

— Tudo bem Félix, você finge que me engana e eu finjo que acredito. Eu vou sair pra fazer umas compras com sua mami poderosa e sua irmãzinha – disse Edith com desdém, em seguida deixou o quarto.

Félix suspirou aliviado quando Edith saiu. Pegou o notebook e começou a fazer pesquisas na internet. Em um site de buscas digitou o nome do restaurante que havia estado, Clair de Lune. Não encontrou muita informação, além de algumas fotos antigas um artigo incompleto em uma enciclopédia online.

Clair de Lune foi um restaurante fundado em 1918, após Primeira Guerra Mundial (...) O estabelecimento localizava-se na periferia de Paris (...)

— Eu definitivamente devo estar ficando maluco. É melhor esquecer isso, vou dar uma volta e fazer umas compras pra espairecer – disse para si mesmo largando o notebook.

Desceu para o saguão do hotel e deu de cara com César com uma expressão nada amigável do rosto.

— Bom dia, papi!

— Bom dia. Eu posso saber onde o senhor esteve ontem a noite enquanto sua mulher foi sozinha para uma festa.

— Papi, ela não estava sozinha, estava muito bem acompanhada pelos filhos de ouro do seu amigo.

— Justamente por isso você deveria estar junto dela. Imagina o que eles irão dizer?

Félix suspirou:

— Papi, eu não estava interessado em ir àquela festa, mas a Edith insistiu em ir e eu não pude evitar. Eu também não posso ficar 24 horas por dia grudado na Edith.

— Você prefere outras companhias não é? – César perguntou em tom ao mesmo tempo irônico e intimidador.

— Papi...

— Você não tem jeito, Félix. Nunca vai aprender a se comportar como um Khoury - César saiu irritado deixando o filho sozinho no saguão.

Félix passou aquele dia tentando se distrair, mas não conseguia tirar os eventos da noite anterior da cabeça.

Não, eu não estou ficando maluco, tenho que tirar isso a limpo

Naquela noite, após o jantar, ele inventou uma desculpa para se livrar de Edith e saiu do hotel sorrateiramente. Caminhou até o bairro distante onde havia estado e ficou em frente a igreja esperando e observando o local. Esperou por vários minutos e nada acontecia. A rua estava silenciosa, vazia a escura. Sua única companhia eram a lua e as estrelas no céu.

Pelas contas do rosário, Félix! Você só pode estar mesmo enlouquecendo. Que bobagem é essa? É melhor voltar pro hotel que você ganha mais

O sino da igreja tocou anunciando a meia-noite. De repente, Félix viu um veículo se aproximar. Era um carro de aspecto antigo, como o da noite anterior, porém era mais fechado. Félix respirou fundo, o carro parou ao seu lado.

Félix não pensou duas vezes e entrou, não pode acreditar quando viu quem estava lá dentro.

— Félix, que bom te ver por aqui, fiquei esperando por você. Não te vi mais depois da nossa conversa, o que aconteceu?

— Sabe o que é Nicola, eu precisei sair depressa porque... porque tive uma urgência familiar – respondeu Félix se esforçando para parecer natural.

— Ah sim, família é muito importante, eu compreendo. Eu só tenho minha querida tia e ela só tem a mim.

— Ela deve ser como uma mãe, eu imagino.

— Sim, sim. É como minha mãe. Gostaria de conhecê-la?

— Claro, claro que sim. Mas Nicola, para onde estamos indo?

— Hoje minha tia dará uma festa no restaurante para um casal de amigos dela. Gostaria de ir? Assim você poderá conhecer conhecê-la.

— Claro, claro que sim.

Os dois ficaram calados por instantes sorrindo um para o outro. Até que Félix falou:

— Sabe de uma coisa Nicola?

— Diga.

— Sabe que esses seus cachinhos lembram um Carneirinho. Espero que não se ofenda com a comparação.

— Oh não! Eu acho os carneiros seres adoráveis. Fico lisonjeado com a comparação.

— Sendo assim, acho que vou te chamar de Carneirinho. É que eu adoro apelidos carinhosos.

Nicola respondeu com um sorriso.

O chofer levou Félix e Nicola até o Clair de Lune onde acontecia uma festa bastante animada. Todo aquele cenário de época estava lá como na noite anterior.

Então, eu não estou louco. Eu realmente viajei no tempo. Como isso é possível?

— Venha Félix, venha por aqui, quero lhe apresentar minha tia.

Nicola pegou Félix pela mão e ele não se retraiu, se deixou levar. O jovem o levou até um local onde estava uma senhora de meia-idade, de cabelos cacheados e volumosos na altura do ombro, prendidos de lado por uma flor. A bela senhora trajava um vestido longo e brilhante.

— Tia Márcia!

— Nicola, meu amor, até que enfim você chegou! Não me apresenta essa belo rapaz?

— Tia, esse é o Félix, ele é estrangeiro. Félix, essa é minha tia Márcia.

— Muito prazer Márcia, que flor encantadora no seus cabelos!

— Muito prazer, rapazinho. Tá vendo, Nicola? Ele gostou da minha flor.

Na verdade odiei, é muito brega, mas eu preciso ser gentil

— E de onde você é, Félix?

— Eu sou do Brasil.

— Brasil? É um belo país, tem clima tropical – ela disse lançando um olhar provocante para Félix - Eu já estive no Brasil, sabia?

— Ah sim?

— Nicola era pequenininho assim – Márcia fez um gesto com a mão – Foi antes da guerra, quando eu era dançarina. Estive lá com uma companhia de dança. Ah, mas como amei aquele país, os todos os brasileiros quiseram me cortejar...

— Tia, se não se importa, eu gostaria de conversar a sós um pouco com o Félix – Nicola sorriu discretamente para ela.

— Oh! Claro que sim, mon cher! Vá com seu amigo - disse sorrindo - Félix, fique a vontade e lembre-se: a noite é uma criança. Uh la la!

Nicola conduziu Félix até uma mesa e puxou uma cadeira para ele se sentar.

— Nossa, que cavalheiro!

— Você é uma visita especial Félix, merece ser tratado como tal.

— E eu posso saber o porquê?

— Ah, você pode achar estranho, mas eu gostei de você... não sei – respondeu Nicola com um sorriso tímido.

— Nicola, estou numa fase que não estou achando nada estranho. Mas se quer saber, também gostei de você, aliás, de tudo isso aqui.

Por todo salão as pessoas dançavam uma música animada até que o pianista começou a tocar algo diferente. Alguns casais se juntaram para dançar. A música era lenta e convidativa. Nicola estendeu a mão para Félix e fez o pedido:

— Dança comigo?

Surpreso, Félix perguntou:

— É permitido?

— Dois rapazes dançando juntos? Em muitos lugares não, mas aqui não há preconceitos nem regras. Venha, vamos dançar.

Os dois foram de mãos dadas para o salão Félix permitiu que Nicola o guiasse na dança. Meio sem jeito, ele se justificou:

— Eu não sou muito bom nesse tipo de dança.

— Não se preocupe, eu te ensino.

E ambos dançaram sem tirar os olhos um do outro. Félix sentia uma sensação estranha, totalmente nova, mas que o fazia bem. Não queria estar em nenhum outro lugar que não fosse ali.

— Espero que você fique por muito tempo em Paris, Félix.

— Ah, eu gostaria tanto de ficar.

— E por que não fica?

— Eu... eu preciso que você saiba de uma coisa... eu não posso ficar muito tempo aqui,  estou viajando com minha família e em breve teremos que voltar. Tenho muitos negócios para resolver no Brasil.

— Ah, que pena! O que você faz no Brasil?

— Bom, eu estudo e ajudo meu pai a administrar os negócios da família.

— Hum, que rapaz responsável!

— Responsável eu? Se tem uma coisa que eu não sou é responsável, Carneirinho. Aliás, meu pai faz questão de me lembrar disso todos os dias.

— Você tem uma expressão triste quando fala de seu pai.

— Ah, meu pai é... – Félix fez uma pausa e sorriu - não vamos falar disso agora, deixa pra lá. Me fale de você.

— Bom, não há muito o que falar de mim. Eu vivo aqui em Paris, ajudo minha tia nesse restaurante e sonho em ser chef e se Deus quiser, um dia serei.

— Claro que será. Eu nunca disse isso para ninguém da minha família, mas meu sonho era ser arquiteto.

— Era? Não é mais?

— Bom, as circunstâncias me levaram a outra profissão, tem os negócios da minha família. Eu acabei desistindo.

— Que triste Félix! – Nicola o olhou com compaixão - Não consigo imaginar o que seria de minha vida se tivesse que desistir de meu sonho.

— Eu espero que você nunca precise saber como é – respondeu Félix com os olhos quase marejados e a voz vacilante.

Continuaram dançando em silêncio, sem deixarem de se olhar nos olhos. Quando a música terminou voltaram para a mesa.

— Está gostando da festa? – Nicola perguntou.

— Estou adorando, esse lugar me faz tão bem. Aqui eu me sinto livre, eu posso ser eu mesmo.

— Você não se sente assim em seu país?

— Não, o problema não é meu país, é minha família.

— Sua família? Você não se sente bem dentro de sua própria família, Félix? Como isso é possível?

Félix não soube o que responder de imediato. Tentava decifrar aquele ser na sua frente, cuja vida parecia perfeita.

— Sabe Nicola, meu pai é muito rígido, até pra essa época.

— Ah, eu posso imaginar. Algumas pessoas ainda vivem com a cabeça no século 19. Para minha sorte, minha tia sempre foi uma mulher moderna.

— Eu não tenho essa sorte. Aliás, acho que meu pai nem vive com a cabeça no século 19, e sim no 18 ou 17 – Félix riu do próprio comentário.

— Ah, Félix, tenta entender. Para muitas pessoas é difícil aceitar tantas mudanças, o mundo está se transformando.

— É, até no meu tempo – Félix disse quase sussurrando.

— O que disse?

— Não... nada. Mas me conta, me fala mais de você. Você deve ter mais histórias pra contar.

— Eu não tenho muitas, mas minha tia sim. Ela já viajou muito como dançarina. Foi uma mulher muito cortejada, mas depois da guerra, ela perdeu muita coisa, sobrou essa propriedade onde ela montou seu próprio negócio.

— E você, onde entra nessa história?

— Meu pai morreu em um acidente numa fábrica quando eu era criança e alguns anos depois minha mãe morreu de febre. Então minha tia me colocou em um colégio interno e me acolheu depois que eu saí de lá. E eu tenho vivido com ela e estou aqui. E você, me fale sobre sua família.

— Bom eu... meus pais ainda estão vivos, tenho uma irmã, tios e primos.

— Que maravilha, eu queria tanto ter uma família grande.

— É, mas as vezes é difícil conviver com uma família como a minha.

— Por quê?

— Ah porque as vezes nós temos formas diferentes de enxergar o mundo, a vida...

Félix olhou em volta e pensou:

Meu Deus, o que eu faço aqui? Nada disso é real. Isso não pode ser real. Minha realidade é tão distante disso.

— Nicola, eu preciso ir embora.

— Mas já? Você está sempre indo embora Félix. Você não disse que esse lugar lhe faz bem?

— Sim, faz muito bem. Mas aqui, infelizmente não é meu lugar, eu preciso voltar...

Pro meu tempo, pra vida real

— Se é assim... espero poder te ver novamente antes de você partir para o Brasil – disse Nicola sentindo-se desapontado.

Félix fitou os olhos do amigo, não respondeu, apenas sorriu de forma singela.

Eu também - pensou

Félix estendeu a mão direita para Nicola que lhe retribuiu um aperto de mão.

— Adeus, Nicola.

— Adeus? Isso quer dizer que não o verei de novo?

A expressão de Nicola era de tristeza, ele não tentou disfarçar. Ao perceber aquilo, Félix tentou apaziguar a situação.

— Eu não sei, não sei se poderei voltar. Mas eu quero que saiba que eu adorei conhecer você e este lugar.

Félix se virou para ir embora, mas Nicola o segurou pelo braço.

— Espero te ver outra vez – disse Nicola com um olhar desolado, em seguida deu um beijo no rosto de Félix, que retribuiu com um sorriso.

Do lado de fora, Félix tocou levemente a face e fechou os olhos. Ao abri-los, se viu novamente naquele estranho e inóspito mundo real. Só lhe restava encontrar um táxi, voltar ao hotel e ter que ouvir um interrogatório de Edith.


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Notas finais do capítulo

Será que Nicola e Félix se encontrarão outra vez?



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