Os Cânticos de Prime escrita por MMenezes


Capítulo 9
O Notívago I [1.5]


Notas iniciais do capítulo

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;)



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Noites chuvosas, dias nublados e viagens infindáveis por estradas desconhecidas em busca de algo que nunca ficava claro. Tenho medo.

— Não tenha, tudo há de ficar bem — respondia seu amigo.

Um homem se erguia na estrada, brandindo olhos de compaixão que cessaram com as lágrimas do céu. O sol veio a surgir como um animal curioso. Haviam crianças; há quanto tempo não via crianças. Comeram. Silêncio. A chuva retornou modesta e paciente. Pararam, comeram, dormiram. Silêncios iam e vinham. Lamúrias, incertezas, temores; e ele nada havia feito para o temerem. Adorava os cavalos e a forma engraçada com que mexiam as ancas ao arrastar a carroça pela estrada. Seus olhos pesavam.

O ranger da carroça irritava seus ouvidos; preferia andar, estava acostumado a usar os próprios pés, eles não rangiam. Anoiteceu, comeram, dormiram; todos, menos ele, odiava as imagens que o visitavam ao dormir. Partiram em silêncio pela estrada, com os dias se repetindo monótonos e vagarosos. O sono ficava pior, as noites ficavam mais frias e sua consciência mais distante. O empurraram, ferindo-o mais por dentro do que por fora. Naquela noite ficou na frente, junto do bom homem. Conversaram por parte da noite antes de adormecer e as imagens ruins virem lhe afligir.

Despertou cansado, com uma neblina densa e fria lhe encobrindo por inteiro. Desjejum. Figuras estranhas surgiram entre a neblina trazendo consigo um pavor que ele esperava nunca mais sentir. Um vento quente soprou. Gritos. Sangue. Mortes. Silêncio. Silêncio. Silêncio.

Sóis e luas passaram, mas era como se Qain visitasse sempre o mesmo soturno momento.

A fogueira crepitava para a noite, acompanhada de uma coruja que piava empoleirada em alguma árvore ali perto. Sombras espalhavam-se para o meio das árvores, e entre uma labareda e outra, ele podia ver os olhos dela o observando. Olhos que pareciam absorver as chamas, olhos curiosos, atentos… nocivos.

Desviou os olhos dos olhos dela e se apertou junto ao seu cobertor bolorento.

Dévis, o bom homem, contava uma história a pedido dela, algo sobre gente meio gente e meio bicho.

— Eles tem braços peludos, cascos grossos, garras afiadas, asas grandes e bicos compridos — contava ele atiçando as brasas na fogueira. — Eles andam e falam como homens, caçam e pescam como homens, vivem e morrem como homens. Se vestem com peles de homens.

O crepitar da fogueira e o piar da coruja era tudo que ouvia além de sua voz.

— O Primeiro Rei os criou, contam as histórias, ou foram criados a mando do Primeiro Rei, tanto faz — mordiscou uma cenoura assada enfiada a uma vareta. — Eles eram seus servos e seus… an… seus amigos.

— Que chato — disse a garota de cabelos vermelhos. — Eu queria uma história de verdade.

— Essa é uma história de verdade — retorquiu Dévis.

— Não é, se isso é verdade onde eles estão e como que o Primeiro Rei os criou?

O bom homem coçou a cabeça parecendo tentar tirar dali alguma resposta.

— Eles morreram, ao menos a maioria, os que sobreviveram andam por ai caçando menininhas atrevidas — disse ele sorrindo, Mérril e ela arregalaram os olhos. — E como ele os criou? Bom, dizem que ele usou de conhecimentos antigos e proibidos de serem pronunciados, não importa.

— Importa sim — insistiu ela.

— Não importa não — respondeu Dévis se levantando.— Chega de histórias, todos já comeram, hora de se deitarem.

A garota fez um muxoxo inconformada. Ainda era cedo, mal haviam acabado de comer as cenouras assadas no espeto, mesmo Qain não queria ir se deitar, nunca queria; mas quando Dévis falava, estava falado.

A fogueira continuou a queimar e contar suas histórias para a lua, que ouvindo atenta derramava pelo céu estrelas que caiam ao horizonte. Dévis se deitou sobre a carroça, mas Qain sabia que ele não dormiria, nunca dormia; assim como ele. Tinha grandes manchas negras ao redor dos olhos e parecia estar sempre carregando um jumento nas costas.

Todos dormiram tranquilamente ao redor da fogueira, nem pareciam se lembrar do dia do nevoeiro, nem pareciam se lembrar de Zogg, Tonko e Varne, mas Qain se lembrava muito bem. O sangue, os gritos, o medo. As imagens ainda estavam vívidas em sua mente, frescas, incólumes, se se concentrasse poderia sentir até o cheiro do momento. Mas ninguém parecia se lembrar. Elisien era perigosa, e carregava a morte naquele livro dela.

Ela o observava desde então, discreta como um bicho do mato, esperando que o pobre ratinho dormisse para ai então, ela comê-lo. Mas Qain não fecharia os olhos, nunca dormia, odiava o sono e as imagens que ele trazia. Com Elcaná ele podia dormir, ele o vigiava todas as noites, afastando qualquer pesadelo que viesse atenta-lo, mas Elcaná se fora, como havia dito que iria. Não tenha medo, tudo há de ficar bem.

O mercador era um bom homem, lhe dava comida, lhe dava palavras e lhe dava um destino em que pensar, mas ele não tinha o poder de acalentar seu sono. Preferia estar com Elcaná, ele lhe trazia conforto.

Os engraçados cavalos dormiam em pé, firmes como árvores rente a carroça, e Qain passou a noite a os observar. Quando a lua se tornou sol, seus olhos cansados já estavam tão pesados que era difícil admirar a alvorada. Queria dormir, mas toda vez que fechava os olhos, um festival de imagens ruins surgiam. Passaria mais um dia com os sonhos brigando dentro de sua cabeça, raivosos por não terem ganho liberdade.

O sol escalava o céu e emanava um calor que deixava o cobertor cada vez mais incômodo. Dévis, sobre a carroça virava-se inquieto sob seus cobertores, parecendo estar com pulgas nos calções, se levantou apressado e dispararou às pressas na direção de uma árvore paralela à estrada. Desamarrou o calção e se aliviou.

— Bom dia sirs — disse ele.

Qain não se lembrava de quando exatamente os dois homens surgiram na estrada. Eram esguios e escuros, e montavam cavalos tão altos e negros quanto eles. Um parecia carregar a pele de um lobo no ombro, e o outro a de um urso.

— Guarde suas saudações homem mijão, não somos cavaleiros — respondeu o urso em tom ríspido.

Não, não são. Eram qaereguis, homens ruins, selvagens e sombrios como a noite. Qain abraçou-se forte ao seu cobertor, torcendo para que fossem logo embora.

— É raro qaereguis viajarem por essas bandas — disse Dévis.

— Mais raro ainda curiosos continuarem com suas línguas nas bocas, não te interessa o que fazemos por aqui homem branco — respondeu o da pele de lobo.

Dévis abaixou a cabeça e desculpou-se.

— Posso lhes oferecer algo para comer? Restou algumas cenouras assadas que as crianças não comeram.

Os dois guerreiros negros então olharam em sua direção.

— Crianças? — riu o da pele de urso.— Olhando para você, eu não imaginaria que seria capaz de cultivar tantos filhos.

— Não são meus filhos, senhores. Sirvo a Casa Alva.

Os homens voltaram a rir.

— Ah sim, o abrigo para pobres, órfãos e moribundos. Não queremos sua comida homem branco, mas tome — ele levou a mão a um canto e lhe jogou uma moeda.— Como estima de nosso generoso qarh, alguém deve tirar os mortos da estrada, mesmo que eles ainda sejam vivos.

Dévis pegou a moeda no ar com uma mão, mas não agradeceu. Logo o par de qaereguis continuaram seguindo pela estrada, e atrás deles uma carruagem de grades os seguia, cheia de homens como eles, amarrados por correntes e com expressões de tristeza. Um deles era enorme, mesmo encolhido junto as grades e coberto por correntes, era assustador. Seus olhos eram um terror negro, e Qain os reconheceu de seus sonhos ruins.


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