Os Cânticos de Prime escrita por MMenezes


Capítulo 8
O Condenado II [1.0]




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O dia era úmido, nublado e pela primeira vez em semanas os prisioneiros regozijavam-se com a barriga cheia. Qodoro achou por bem alimentá-los; uma carne de porco dura e rançosa, mas a melhor coisa que Alistar havia comido em sua vida. Lambeu os dedos gordurosos enquanto a carroça seguia seu ritmo sob à sombra das nuvens. Havia chovido na manhã daquele dia, uma chuva fina e refrescante que perdurou até metade da tarde. Agora ela havia ido tão subitamente quanto havia surgido, mas deixara para trás o cheiro de terra e mata molhada.

A carroça declinava sobre a encosta de um morro. O cocheiro — um homem velho e miúdo — puxava as rédeas com firmeza, mantendo o controle do passo dos jumentos. Logo à frente, Qodoro descia com seu baio sem muita dificuldade, Bardoqe e Altoro seguiam na retaguarda.

No sopé do morro, a mata desapareceu dando lugar a um pântano mau-cheiroso coberto por amieiros, caniços e paludes, onde sapos despreucupados caçavam mosquitos e libélulas que dançavam sobre a água lodosa. Os jumentos tinham dificuldades para puxarem a carroça através do atoleiro; que exalava um cheiro bolorento a cada sulco aberto. Alistar sentiu a comida subindo pela sua garganta em uma forte ânsia, mas engoliu o vômito com receio de sentir fome; não sabia quando comeria novamente. Dois de seus confrades não fizeram o mesmo, e logo haviam colocado para fora tudo que haviam comido no desjejum, acrescentando ao pântano mais um odor excruciante.

Sobre as águas bolorentas, Alistar teve a impressão — por um curto momento —, de ter avistado um corpo emergindo e submergindo. Teria dado a visão como fruto de seus devaneios, mas a carroça estacou repentinamente.

— O que aconteceu? — indagou Bardoqe ao cocheiro.

— Uma das roda agarrou, os animal num conseguem prusseguir — respondeu o velho com uma voz baixa e cansada.

Bardoqe e Altoro rodearam a carroça, analisando as rodas que afundavam no lamaçal. A roda traseira direita estava levemente mais afundada do que as demais. Eles entreolharam-se com olhares inquisitivos e Qodoro já distante, gritou, perguntando o que havia ocorrido.

— Uma roda presa — gritou Altoro em resposta.— Alguém vai ter que descer para tirar o que quer que tenha a prendido.

— Não esperem que seja eu — retorquiu Qodoro.

Alistar via que não seria nenhum deles, e não foi surpresa quando olharam para ele.

— Temos alguém aqui que já está a alguns dias sobre a própria merda, acho que vai gostar de esticar as pernas — disse Bardoqe com um sorriso zombeteiro. Retirou um molho de chaves que guardava consigo e usou uma delas para abrir o cadeado da cela, gesticulando com uma mão para que Alistar descesse.

— Não obrigado — respondeu ele dando de ombros. — Mas estou agradecido pela generosidade, estou bem confortável sobre meus próprios dejetos, acho que um de meus companheiros aqui estaria mais agraciado com a proposta, ou quem sabe, você mesmo.

Uma veia saltou na testa de Bardoqe.

— Saia dai AGORA — esbravejou ele.

Alistar ignorou-o e virou-se de lado. O qaeregui ficou visivelmente enraivecido e em um instante Alistar ouviu-o descendo do cavalo e logo suas mãos o tocaram, puxando-o da carroça. Em condições melhores, Alistar nunca se deixaria ser atirado daquela forma, mas estava fraco e endurecido pelos dias amotinado, ainda assim era mais alto, mais pesado e mais forte que Bardoqe, que mesmo com seus músculos teve dificuldades para arrastá-lo de dentro da cela.

Alistar sentiu a lama entrando em suas vestes e o odor acre próximo demais de seu nariz. Cheirava a podridão, excrementos, terra, água e…sangue. Conhecia bem o cheiro de sangue. A lama afundava sob seu peso, e teve que fazer um excesso de força para se levantar e puxar junto os pesados grilhões que prendiam suas mãos e pés.

— Não ficaremos aqui até o próximo amanhecer, faça logo seu trabalho Qarh da Lama — ordenou Bardoqe em zombaria.

O que resta para um homem desgraçado além da humilhação?

Em tempos não tão remotos, Alistar abriria ao meio o homem que lhe tratasse daquela maneira, mas agora não era mais o mesmo homem, não era ninguém, já estava morto. Respirou fundo e mordeu os lábios para manter o controle. Já estou morto. Agachou-se ao lado da roda atolada e mergulhou as mãos abaixo do lamaçal. Tateou procurando o que quer que tivesse prendido a roda, até que seus dedos encostaram em algo macio e viscoso entrelaçado aos aros. Já sabia o que era antes de ver.

Desentrençou a coisa sem problemas, libertando a roda.

— E não é que nosso senhor Qarh da Lama é realmente bom em desatolar carroças? — parabenizou-o Bardoqe.

Alistar se ergueu, puxando consigo o corpo inteiro da criança. Era leve e a segurava tranquilamente apenas com uma mão. Uma menina, concluiu observando-a com atenção. Estava nua e coberta pela lama do pântano, seus cabelos eram languidos e lhe faltava uma orelha, os olhos eram dois buracos devorados por vermes brancos e que se mexiam. Lama escorria de seus orifícios. O pescoço pendia para frente, olhando para os pequenos seios em desenvolvimento. A barriga estava inchada, as pernas quebradas, o pulso que se prendera na roda, retorcido.

Já em cima do cavalo, Bardoqe disse com um tom de galhofa:

— Eu sei o que se passa por sua cabeça, mas a resposta é não — zombou ele. — Você não levará ela com você, seu estrupador de…

O qaeregui não teve tempo de terminar a frase.

Homens mortos também matam.

Bardoqe era um bom qaeregui, tinha a disciplina necessária, a força no auge, o espírito certo, poderia viver mais, realmente poderia, mas falava muito. Mais do que devia.

Alistar em pé era tão alto quanto o baio que ele montava. Virou-se em um movimento brusco, rápido e repentino, girando o corpo da menina como se ele fosse um martelo de guerra. Ouviu-se a coluna e as costelas dela quebrando-se ao acertar com força o qaeregui sobre o cavalo, jogando-o ao chão. Alistar soltou o pulso da criança, deixando-a deslizar de volta para seu descanso no lamaçal. Sentiu seu peito enrijecendo-se em uma raiva cega e latente, algo lá dentro, fundo em seu âmago parecia ferver e se dilatar. A força subiu pelo seu peito, escorreu paras suas mãos e as correntes romperam-se quando ele abriu os braços em um ímpeto furioso. O Sangue subia, podia senti-lo crescendo, se espalhando. Os cavalos se ergueram em duas patas à sua frente, evitando proximidade. Altoro se segurava firme nas rédeas, com olhos arregalados em temor.

Alistar morreu, mas o Terror do Norte ainda ruge.

Bardoqe, jogado à lama, levou a mão às costas para desembainhar a lâmina fosca, mas Alistar se esticou pela lama a passos largos e parou à sua frente antes dele ter a oportunidade de sacar a espada. Bardoqe parecia assustado, uma criatura tão frágil e pequena. Alistar já havia matado crianças que pareciam mais ferozes frente à morte.

Talvez me dêem mais um nome, Alistar Pé Vermelho, pensou com um sorriso sádico no rosto.

Seu peito queimava, sua perna se agitava ansiosa.

Então seu pé subiu alto, arrebentando as correntes que o prendiam como se fossem feitas de nada. Então desceu rápido e bruto como o malho de um ferreiro.

O Sangue ainda fervia pelo seu corpo, clamando pelo gosto da morte. Seu pé estava besuntado dentro da cabeça do homem, era quente, como se estivesse com os pés dentro das águas de um rio no verão.

Sentiu um casal de dores agudas penetrando suas costas, mas foi uma dor ínfima frente ao prazer que sentia. Tirou o pé da cabeça do qaeregui em um movimento indiferente. A lâmina fosca da espada de Altoro passou rente ao seu pescoço, mas ele havia desviado em um reflexo automático. Altoro era um qaeregui ágil, o melhor que já vira no uso de adagas. Devia ter optado por elas.

O homem havia descido do cavalo e estava à sua frente, brandindo sua lâmina de ferro como um cavaleiro. Idiota, devia ter ficado sobre o cavalo e não ficar imitando aqueles guerreiros do dia.

Ele tinha um olhar determinado e frio, iria matá-lo… se pudesse. Ele não o assustava, não o assustava nem um pouco. O homem tentou atacá-lo novamente, e novamente Alistar desviou com facilidade, a espada negra veio contra seu rosto e ele apenas deu um passo para trás, mergulhando o pé ainda mais na lama. Um próximo golpe veio, e ele se moveu para um lado, depois para o outro. Outros par de flechas voltou a acertá-lo, desta vez na coxa direita. Começou a rir.

Sussurrou algumas palavras, mais para si mesmo do que para aqueles que tentavam pará-lo.

— Três! — repetiu a palavra como um mantra. — De mãos vazias esfolaria dez. Com uma faca degolaria trinta. Com uma espada decapitaria cinquenta. — Então olhou fixamente para o homem à sua frente, ele ainda se mantinha impassível, determinado a matá-lo, mas para Alistar ele era inofensivo. — Se for capaz de matar-me, faça agora.

Por favor.


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