Airheart escrita por Vaalas


Capítulo 2
Capítulo 02 — The Depths Below


Notas iniciais do capítulo

A música do título é da banda The Cog Is Dead, que talvez seja uma das minhas preferidas do gênero steampunk.
E gente, muito obrigada pelo retorno no capítulo anterior. As histórias do desafio estavam mofando tanto que achei que o mesmo aconteceria aqui. Muito obrigada aos que comentaram e acompanharam a história.
Boa leitura!



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Jeremy sentiu que choveria. Olhou para o céu branco e claro apenas para confirmar as nuvens cinzentas, pois podia sentir que uma chuva viria em breve apenas pelo cheiro. Algo no vento mudava, ficava mais frio ou úmido, agradável de respirar. A chuva, no entanto, fazia os espetáculos dos zeppelins se ausentarem por algum tempo.

Quando chegou à oficina de Oliver ainda era começo de manhã, por volta das nove horas, e Benedict temeu que fosse cedo demais — temeu que o mecânico ainda dormisse. No entanto, a placa na frente da loja já indicava que estava aberto, e ao entrar, o sino soou. Sentiu novamente o mesmo cheiro de graxa e óleo velho, parecendo que o ar era banhado nele. No dia anterior isso o incomodou, mas hoje já parecia mais agradável, como se não pudesse ser diferente.

— Ah, você voltou mesmo. — Oliver surgiu pela porta da oficina, esfregando as mãos no avental amarelo, sorrindo como sempre. — Entre, entre, estou terminando uma obra. Tenho quatro dias para terminá-la, uma criação fina e bela, com muitos materiais caros e importados da Suíça! Dá para acreditar? Liga de ouro suíço!

Jeremy sorriu sutilmente diante de toda a animação, atravessando o balcão e seguindo-o para a oficina. Aquele sem dúvida era o lugar mais bagunçado dos três compartimentos: mesas se entulhavam de caixas de ferramentas e poeira, uma pilha de caixotes e diversos relógios cobriam o caminho e pedaços das paredes. Em algum lugar algo soltava fumaça, mas o aviador não soube dizer onde, e à medida que andava, via seu próprio reflexo em espelhos e lentes de aumento.

— Não esqueci o café desta vez. — Comentou, olhando para um relógio aberto, e suas diversas engrenagens girando com barulhos suaves. — Isso é impressionante, Mr. Mur.... Oliver. Digo, são tantas coisas, como dá conta de tudo? — levantou um pano cinza ao lado de uma caixa de madeira, arregalando os olhos — Por Deus! Você está trabalhando em um robô!

— Oh, sim, o nome dele é Air Driller — o café estava quente, e ao abrir, Oliver cheirou a fumaça que escapou — É fácil, tenho tudo anotado em uma agenda na recepção. Divido meu tempo de acordo com a data de entrega. Por exemplo, o que entregarei daqui a quatro dias está quase completo, então fico com ele das 10h às 16h. O trem ornamentado é para daqui a seis semanas, então é das 16h às 20h. Os relógios são mais simples, consigo terminar cada um em menos de uma hora, então conserto em média dez por dia, das 20h às 3h, mais ou menos. No tempo livre trabalho em coisas independentes, como o Air Driller.

— Parece trabalhoso demais. — Jeremy nasceu em uma família boa e nunca precisara trabalhar durante a juventude. Ingressar no exército aos dezenove anos foi o seu primeiro ato de independência, e só então conheceu o que era trabalho ao pilotar o avião à vapor F685, na sua primeira patrulha como aviador, 8 anos antes. — Não consigo me imaginar trabalhando tanto sem ficar estressado ou cansado.

Voar era tudo, não tinha como se estressar estando entre as nuvens e servindo à sua Rainha contra os russos. Mesmo assim, Jeremy já havia notado: Oliver era tudo, menos estressado.

— Amo o que faço, não posso me estressar fazendo o que gosto. — bebericou o café, fazendo uma careta pelo amargor, faltava-lhe açúcar — Algumas vezes o horário aperta, mas é divertido lutar contra o tempo, principalmente quando conserto um relógio. Não acha engraçado lutar contra o tempo com um relógio?

Era tão fácil sorrir com ele, que o aviador logo ria sem notar. Sentou-se em uma banqueta em frente ao trem à vapor e tirou seu uniforme militar, observando a expressão do mecânico ao beber mais do café amargo. Oliver parecia facilmente distraído.

— Quando você vai começar a construir o meu braço? — Perguntou, enquanto observava o outro vestir luvas marrons de flanela, e apanhar uns óculos de grau em uma estante cheia de outros óculos diferentes.

— Em breve. Posso começar hoje mesmo se terminar o aeroplano do Mr. Timson antes das doze horas — olhou para um dos relógios na parede, virando-se para o aviador novamente. Jeremy se levantou, aproximando-se alguns passos para falarem-se cara-a-cara — Mr. Benedict, espero que o senhor entenda que não vai ser um trabalho rápido. Estou lhe construindo um braço, não consertando seu relógio de latão.

— Compreendo isso, Oliver. — afirmou, apanhando o seu uniforme azul. Jeremy não era tolo, antes mesmo de entrar ali e ver todas as construções, sabia que seria um processo lento. — Apenas gosto de estimar datas, sinto que posso controlar algo tão incontrolável quanto o tempo. E sinto por isso, mas não posso esconder a ansiedade... quanto antes o braço ficar pronto eu... eu...

O moreno tirou os óculos do rosto, seus lábios já não sorriam, e isso trouxe à Jeremy um sentimento desagradável, pois sua expressão mudava muito sem o sorriso. As rugas nas sobrancelhas o incomodavam, parecia sério demais, algo que não lhe caía bem.

— Você planeja voltar ao exército, não? Usará o braço para pedir permissão para voltar ao serviço. — uma de suas mãos esfregou o rosto, e o tecido da luva fez sua bochecha ficar um pouco vermelha.

— Sim, essa é minha intenção. Vivo para voar do mesmo modo que tu vives para construir e consertar peças mecânicas, eu preciso...

— Você não vai conseguir. — declarou, o cortando rapidamente. — Desculpe por ser frio, mas meus braços são arte, ajudam no cotidiano e diminuem as dificuldades. Não são armas para guerra. Preciso que entenda antes que eu comece a construí-lo: Nem o mais sensível e tecnológico braço seria o suficiente para convencer seus superiores a deixá-lo pilotar uma nave.

Jeremy sentiu um aperto no peito, mas agarrou a esperança com as duas mãos que já não possuía. Soltou um sorriso confiante — daqueles angulosos e finos — e levou sua única mão ao ombro do mecânico, apertando-o sem força.

— Não se subestime, meu caro. Já tive o prazer de ver do que é capaz, e é tão bonito, Oliver. Pela primeira vez em dois anos de sombras, pude sentir o calor dos meus dedos em movimento. Foi magnífico. — Oliver fechou os olhos, virando o rosto. Ele sabia que Jeremy não entenderia, não tinha como entender. Criar uma máquina traria à ele movimentos, mas nunca traria de volta o tato, a sensação. Era um braço feito de engrenagens e metal, não de carne e nervos — Eu sei que você irá me fazer o melhor braço que toda a Inglaterra já viu, acredito nisso, tenho fé.

— Ah, não. — passou a mão nos cabelos, balançando a cabeça em desacordo. — Não tenha fé, não em mim. Mr. Benedict, sou apenas um humano que constrói máquinas de ferro e aço, sua fé deve ir ao seu Deus, aquele que constrói carne e osso.

O aviador apanhou sua cartola cinza, ainda ostentando o sorriso fino de antes. Em algum lugar daqueles olhos de cobre meio polidos, Oliver viu a sombra de uma angústia.

— A carne e o osso já se perderam, meu amigo. Tudo o que me resta é o seu metal, então me agarrarei à essa esperança com tudo o que tenho.

...

Jeremy passou a vir então duas vezes por dia à sua loja, sempre com um copo fervendo em mãos. Oliver não ousava reclamar, jamais poderia, pois apreciava realmente sua companhia. Benedict era um homem interessante, um tanto sonhador demais, em sua opinião — algo que ele próprio nunca mais se atreveria a questionar. Era um homem esperançoso e a esperança é boa de se manter a certo ponto, principalmente por causa dos olhos. Olhos de cobre polido que agora brilhavam por causa dela.

Oliver gostava daquele olhar.

No começo do terceiro dia de visita, começou a construir. Escolheu o aço maraging para a carcaça do braço, uma vez que Jeremy planejava embarcar em uma jornada um tanto perigosa, e o maraging acabava por ser um dos aços mais resistentes conhecidos e de difícil envelhecimento.

Enquanto aquecia e moldava o aço, sentia Jeremy às suas costas. Ele era silencioso, mas Oliver não conseguia parar de senti-lo observando, como se estudasse seus movimentos com admiração. Tudo o que fazia era ignorar, limpar o suor da testa e voltar a martelar contra a superfície brilhosa do aço, a música alta em seus ouvidos. Os fones construídos por ele próprio funcionavam excepcionalmente bem, atraindo as ondas que normalmente iam para um rádio tradicional.

Seus braços começaram a perder a força, então parou por uns segundos, estudando o resultado de seu trabalho. O molde usado era mais fino que o do modelo 114, antes testado pelo aviador, e sua liga metálica era composta por menos carbono e mais níquel.

“A body made of metal, but whit a living brain...”¹

Desceu os fones ao pescoço, notando que o loiro se aproximava por suas costas. A música continuou a tocar, como um som afastado demais para ser ouvido.

— Disse algo? — indagou, quando Jeremy lhe estendeu um lenço e apontou para a porta da oficina.

— O sino soou, acho que é um cliente.

Oliver apanhou o lenço agradecido, olhando para o relógio enquanto enxugava as gotas de suor que lhe escorriam pelo rosto. O relógio marcava dez horas! Como pudera ser tão despreocupado?

— Por Deus! — tirou o avental às pressas, levantando os óculos de proteção para cima da cabeça — Sr. Timson, como pude esquecer?!

Correndo até o balcão na entrada, quase tropeçou em uma relíquia de bronze e cobre que se encontrava no caminho. Sr. Timson esperava impaciente, ambas as mãos segurando sua bengala de madeira e prata, transpirando o mesmo ar aristocrata de sempre, os cabelos brancos escondidos por debaixo da cartola negra fosca.

— Desculpe-me pela demora, senhor — cumprimentou com um sorriso — O grande dia finalmente chegou, não? Eu...

— Por favor, não me enrole, Murphy. Você sabe pelo que vim, então apenas traga-me sem rodeios. — as sobrancelhas grossas inclinaram-se no cenho enrugado, e o bigode bem desenhado fez o mecânico coçar a área entre o nariz e a boca — Você terminou, não terminou? Nosso prazo não pode ser adiado, você entendeu quando o contatei, não entendeu?

Oliver engoliu em seco, sem graça. É claro que havia terminado! Quem o Timson achava que ele era?

— Sim, senhor, o avião foi terminado, do modo como foi pedido. — o mecânico limpou a testa — Só um instante.

Voltou para dentro da oficina, tensionado a voltar a respirar. O homem era respeitável e até mesmo temido, qualquer erro seu acarretaria numa série de burocracias que Oliver preferia evitar: tudo o que menos precisava no momento era problemas com homens importantes. Já havia problemas demais em construir o primeiro braço a ir para guerra. Devia ser cauteloso ao tratar clientes arrogantes.

Quando entrou na oficina novamente, Jeremy limpava os óculos em um outro lenço, branco e limpo. Ele os colocou no rosto quando Oliver passou pela porta e soltou um sorriso casual.

Sorrir era como respirar, não poderia esquecer.

— Vai entregar o aeroplano? — o moreno assentiu, correndo até a mesa no fundo da oficina. O avião deveria ter em média 50 cm de altura e era belíssimo. Tão real que Benedict conseguia sentir falta dos ares só de olhar — Boa sorte.

Com mais um sorriso, Oliver voltou à entrada carregando o avião e o controle. Sr. Timson limpava o rosto com um lenço vermelho, guardando-o na manga quando o mecânico voltou.

— Aqui está, uma réplica em miniatura exata do...

— Como voa?

Murphy suspirou, mantendo-se paciente. O velho Timson tocou na estrutura de metal brilhante e então voltou a apoiar-se em sua bengala.

— Com este controle. Eles estão ligados por transmissão à rádio. — ergueu o controle acima de sua cabeça — Ele aciona o motor à vapor do aeroplano e...

— Murphy, ponha essa máquina no ar, apenas isso. Explicações são desnecessárias, contanto que voe, você fez seu trabalho direito.

— Como queira.

Acionou o controle, movendo os botões para cima. Mostrou ao cliente como funcionava a máquina, levando-a ao ar logo em seguida. O aeroplano era de fato perfeito, cortando o vento e deixando atrás de si uma linha de fumaça branca. O motor à vapor funcionava com êxito, e Oliver sentiu o orgulho lhe preencher o peito.

— Parece tudo certo então. — Sr. Timson levou uma das mãos até o bolso de dentro do terno, tirando de lá um bolo de dinheiro. — Aqui está o pagamento, garoto, agradeço por seu serviço.

— Obrigado, senhor. — o velho homem pôs o aeroplano sob o braço, levando o controle com a outra mão — Ah, o raio de alcance é de 25 metros, se passar disso o sinal se perde e o aeroplano cai.

— Isso seria um desastre — concordou o velho —, mas de qualquer forma, não acho que tal máquina vá durar mais que uma semana nas mãos de meu sobrinho. Ele é um menino um tanto arteiro...

Oliver quase não conseguiu sorrir ao cumprimentá-lo na saída. O sino soou quando a porta fechou-se, e o mecânico sentiu o rosto duro, rígido, como se o sorriso ali houvesse sido esculpido em pedra e fosse difícil desfazer. Foi uma sensação terrível, pois um sorriso falso carregava um pecado maior que o coração de sorriso puro poderia suportar.

Sentou-se na banqueta em frente ao balcão, apoiando a cabeça nas mãos e se silenciando. Seu aeroplano tão belo, tão perfeito, estaria em poucos dias destruído pelas mãos de uma criança nascida em berço de ouro, tola demais para apreciá-lo. Era um destino trágico demais para algo tão bem trabalhado. Alguma coisa dentro de si sempre quebrava quando suas criações iam para seus donos, como um ovo, e desse ovo a cria era infelicidade.

— Oliver? — uma mão pousou em seu ombro, apertando-o — Choras?

Ergueu o rosto de cima dos braços, mirando seu confortador. Jeremy tirou os óculos do rosto, sentando-se ao seu lado numa segunda banqueta.

— Não estou chorando.

— Bem, não com os olhos. — apoiou a mão no balcão, suspirando. — Seu cliente era indelicado, mas você se saiu bem. Manteve a calma, tratou-o com respeito e sorriu...

— Não sorri, Sr. Jeremy, o que pus sobre a face foi outra coisa, apenas parecia um sorriso.

— Não acho que seu cliente realmente se importava. — garantiu.

Oliver assentiu, pigarreando.

— Me apego demais às coisas que crio. Devo parar com isso, pois nunca acharei quem compre e se importe o suficiente. É apenas metal.

— Bem, não poderia discordar mais. — em um ato impensado, esticou a única mão que possuía e tocou a do moreno — seu metal vai mudar minha vida, então não é um simples metal.

Seu toque ardia como brasa, e o mecânico precisou se conter para não puxar a mão para longe. Não era próximo o suficiente, e qualquer toque como aquele cabia errado para o relacionamento contratado-cliente. Jeremy deve ter notado o desconforto implantado em um sorriso sem-graça, pois recuou.

Oliver se sentiu mal quase que imediatamente.

— Mr. Benedict.

— Sim?

— Vou construir o melhor braço ao alcance da tecnologia atual, prometo. — levantou-se num pulo, sorrindo — Prepare-se para voar em breve.

Os olhos de Jeremy arregalaram-se, brilhando como o metal que o mecânico tanto apreciava. As covinhas enterraram-se na bochecha, marcando o sorriso.

— Sim, senhor!

Era claro como cristal que sua criação não estaria em mãos erradas. Mesmo sem querer, Oliver estava feliz.


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Notas finais do capítulo

¹ trecho da música do título porque escutei enquanto escrevi. Só por isso mesmo.
Pessoas, se verem aqui algum erro, tanto de escrita quanto de informações mesmo (como as informações de metais e mecânica) por favor, me corrijam. Pesquisei bastante antes de escrever, mas sempre algo passa.
Obrigada por terem lido



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