Acasos escrita por Renata Guimarães


Capítulo 4
Capítulo 4




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— Gabriel! O que aconteceu com você? Meu Deus! – Eu peguei um pano limpo que vi para estancar o sangramento dele.

— Calma, Alana. – Ele aceitou o pano. – Só fui atropelado por um carro.

— Só? Você só – dei ênfase e ri em seguida – Só! Foi atropelado por um carro?

— É... Só... Eu to vivo, to andando... Mancando um pouco, mas bem.

— Que susto! Você ta todo ensanguentado. – Passei as mãos no cabelo. – Eu te liguei, mandei mensagem, mandei até SMS.

— Meu celular quebrou no atropelamento. – Ele cumprimentou a Vicky que olhava a situação sem entender muito, ela só acenou de volta.

— Você tinha que ver o maluco, surgiu do nada, não tinha nenhum carro eu fui fazer uma manobra em ladeira, daqui a pouco o carro do nada aparece e me joga do outro lado da calçada. Eu to todo ralado.

— Você tem sorte de ta vivo isso sim...

— Vaso ruim não quebra. – Ele riu. – Então... Cliente né? Lewis ta puto da vida comigo, me xingou pra caralho... Se eu chegasse de maca aqui, ele me xingaria do mesmo jeito.

— Sabe como ele é né?

— Sei sim. – Ele acenou para a Vicky. – Tudo bem, moça? Firmeza ai? Sentindo muita dor?

— Tudo bem, sentindo menos dor que você aparentemente. – Ela sorriu.

— Ah? Isso aqui? – Ele deu uma voltinha. – Ta tudo sussa, linda. Só uns arranhões. – Ele bateu no meu braço e sussurrou baixo. – Gostei dessa ai, vou dar em cima dela.

— Não vai dar em cima de cliente nenhuma se não vamos te demitir – falei baixo só pra ele ouvir.

— Vixe, que amarga você eim, filhota. Eu acabei de ser atropelado, cadê seu amor pelo irmão?

— Irmão? Até onde eu sei sou filha única.

Eu não sou filha única tecnicamente falando, mas como eu não falo da minha família pra quase ninguém então me considero como sendo até órfã, é claro que não chego pra ninguém e falo “sou órfã” quando perguntam sobre meus pais pra não chocar ninguém e a pessoa achar que meus pais morreram de tragédia ou algo terrível e ficar aquele climão, só digo que sou afastada deles. Eles só “morreram” pra mim como pais por serem lixos de pessoas. Eu só falei pra cliente sobre meus pais porque eu sei que nunca mais vou ver ela e todo mundo precisa desabafar. Só que com as pessoas do meu dia a dia eu evito falar da minha vida. É como se minha vida fosse do momento que rompi com minha família pra frente. Uma pessoa sem passado.

— Vou dar um jeito nessas minhas feridas e qualquer coisa to no balcão.

— Vou cuidar da minha tatuagem e qualquer coisa eu to aqui.

Voltei a minha cadeira, preparei tudo o que era necessário e voltei a tatuagem de onde parei.

— Então, vai me falando mais sobre você. – Puxei um assunto sem tirar os olhos do trabalho que estava fazendo.

— Hm... Como você já sabe eu sou uma boa cozinheira, mas eu também tenho talentos não culinários, eu sei tocar instrumentos aprendi com meu pai, ele não é apenas um contador de historias gregas, ele toca em uma banda de rock de garagem ensinou a gente a ter gosto por musica e instrumentos então eu toco baixo e teclado. Ele queria ser musico, mas acabou estudando relações internacionais e desistiu desse sonho, só montou a banda que é o hobby dele depois de voltar pro país.

— Sabe cantar?

— Eu canto mais ou menos, não nasci com esse dom, mas fiz muitas aulas com meu pai e meu irmão, meu irmão sim tem talento pra cantor. Meu pai toca guitarra, pior que ele me levava e meu irmão também aos shows de garagem dele em cada lugar estranho – ela riu meio nostálgica. – A banda de garagem dele é de rock e ele mistura idiomas, tem umas musicas em russo, francês...

— E é só você e seu irmão ou você tem mais irmãos?

— Meu pai tem outros filhos... Meu pai não é uma pessoa muito comum, ele se casou umas cinco vezes, nos dois primeiros casamentos nenhum filho. Com minha mãe, que foi o terceiro casamento, ele teve dois e com a quarta esposa teve cinco e a quinta teve três.

— Seu pai é um coelho ou algo assim? Seu pai não tinha tv em casa?

— Pior que tinha – ela soltou uma risada calorosa. – Não era pra ser tão "nossa" assim, são "só" dez filhos, tem gente que tem mais – ela com ironia.

— E porque você falou “meu pai tem outros filhos” e não “tenho outros irmãos”.

— Acho que é por falta da falta de proximidade, os outros filhos são de diferentes países, falam outras línguas, então é uma barreira sabe. Já o meu irmão chamo de “meu irmão” porque eu vi ele nascer e convivi com ele.

— Deixa eu entender... Seu pai vivia mudando de país?

— Sim.

— Então como você tem lembranças de infância com ele?

— Minha mãe foi a terceira esposa do meu pai, mas eu já tinha 1 ano quando eles se casaram. A minha mãe era a amante do segundo casamento dele tinha um tempão já, depois da minha mãe ele teve mais dois casamentos – Ela fez as aspas com a mão ao falar casamento. – Nenhum dos casamentos foi no papel, nenhum dos cinco... Mas enfim... Então, ele ficou seis anos afastado de mim e da minha mãe e nesse período era só nós duas. E depois ele e minha mãe voltaram... Longa historia... Nunca entendi o relacionamento louco deles, começou antes do meu nascimento, terminou quando eu tinha três anos, voltou quando eu tinha por volta de nove anos... Desisti de tentar entender... – Ela ia falar, mas parou e respirou fundo por causa da dor.

— Desculpa aqui é dolorido mesmo.

— Tudo bem... Tem aproximadamente nove anos de diferença entre mim e meu irmão. Os outros filhos do meu pai, o intervalo de tempo é pouco de um para o outro, tem gêmeos e tudo... Eu acho que tem... Seilá não procuro saber sobre isso, é tipo coelho mesmo. E quando eu tinha por volta de nove anos meu irmão tinha acabado de nascer.

— Eles ainda estão juntos?

— Não. – Ela começou a cair na risada e eu parei de tatuar porque a barriga tava se movendo ficou inviável. – Desculpa... Pior que não, eles não estão juntos. É que minha mãe ficou com ele seis anos e depois se separou dele pra ficar com o melhor amigo do meu pai e agora eles moram no Havaí. – Ela controlou o riso e eu voltei a tatuar.

— Como assim?

— Não me pergunta isso, porque nem eu sei. Um dia minha mãe chamou a mim e ao meu irmão, eu tinha por volta de quinze ou dezesseis anos e ele sete anos por ai mais ou menos... E ela chamou a gente pra conversar e explicar que tava se separando do meu pai pra ficar com o melhor amigo dele que também é nosso padrinho.

— Ai ela fugiu com seu padrinho pro Havaí?

— Não... Minha mãe é menos louca que meu pai, ela achou que o Kurt tava muito novo, o nome do meu irmão é Kurt em homenagem ao Kurt Cobain meu pai e minha mãe eram fãs de Nirvana... Voltando... Como o Kurt era muito novo, então minha mãe se mudou com meu padrinho pra uma casa no bairro perto e a gente ficou morando com meu pai até o Kurt completar mais ou menos 12 anos. Quando ele completou, minha mãe e meu padrinho se mudaram e agora faz aproximadamente três anos que eles moram no Havaí, se casaram lá, fizeram cerimonia foi lindo.

— E seu pai levou numa boa?

— Não! Não levou nem um pouco numa boa, ele ficou com um ódio mortal da minha mãe e do meu padrinho, porque ele se sentiu traído. E também porque o meu padrinho é padrinho de todos os filhos dele, imagina como ele ficou puto. Só que ele não tem muita moral pra falar nada né, porque minha mãe foi a amante dele por muito tempo. – A tatuagem estava quase ficando pronta. – Ele nunca falou nada sobre esse assunto de separação pra mim ou pro meu irmão, nunca nos envolveu nessa bagunça da vida amorosa dele e tudo mais, ele tentava manter a gente fora disso, manter o tempo com a gente para conhecer melhor a mim e ao meu irmão, apesar de tudo ele é um bom pai.

— Sua mãe teve outros filhos? Seu pai se casou de novo?

— Não, minha mãe não teve mais filhos e meu padrinho nunca teve filhos, acho que ele vê a mim e ao Kurt como filhos. Ele ajudou muito minha mãe quando ela tava sozinha comigo e se manteve próximo mesmo com meu pai já presente. E por mais incrível que isso pareça, meu pai não se casou de novo, eu achei que ele ia voltar com uma ex-mulher dele e que teríamos que mudar de país, mas ele não fez isso eu acho que mesmo do jeito louco dele ele amava minha mãe de verdade, acho que ela era o amor da vida dele.

— Não é só orgulho ferido? Por ter sido traído e tudo mais?

— Eu acho que não. Quando meu pai se separou da minha mãe acho que foi por acasos da vida, ironia do destino. Eu tinha três anos então não me lembro de nada, só sei o que me contaram. Minha avó, mãe do meu pai morreu e ao receber a noticia, o meu pai ficou sem chão porque ele foi criado só por ela. Minha avó era mãe solteira e criou ele da melhor maneira que pode... Bom...

Ela deu uma pausa, respirou e não foi por causa da tatuagem porque a maquina não estava encostada na pele dela no momento eu estava trocando as tintas. Olhei para a expressão dela e ela engoliu em seco e em seguida disse:

— To falando muito, não to?

— Pode continuar, na verdade eu to até curiosa.

— Tudo bem então, se tiver demais me avisa. Bom... Minha avó ficou gravida muito jovem e não era casada e naquela época era um absurdo, então a família não aceitou e o pai sumiu no mundo. Então ela teve que se prostituir pra criar meu pai. Meu pai cresceu em bordeis praticamente. O nome da minha avó era Lana, mas o nome de “guerra” dela era Vicky. E meu pai me deu o nome de prostituta dela pra mostrar que ele não tinha vergonha do passado dela e do que ela fez pra criar ele, na verdade ele sempre exaltou a grande mulher que ela foi e que a profissão dela não a diminuía em nada.

— Bonita a atitude do seu pai, ele parece ser uma boa pessoa.

— Ele é uma boa pessoa, apesar de ser diferente, meio estranho, marcado pela vida sabe? – concordei com a cabeça – Voltando ao assunto, quando minha avó morreu ele começou a beber muito, a ponto de passar noites fora de casa, desmaiado de tão bêbado, jogado na rua, na sarjeta e minha mãe sozinha comigo pequena tinha que ir atrás dele nos locais tentar achar ele e ajudar ele, minha mãe me deixava com meu padrinho pra ir atrás dele na rua.

— Deve ser por isso que eles acabaram se gostando.

— Meu padrinho sempre ajudou a minha mãe por saber o que meu pai tava passando e ele diz que sempre teve sentimentos dela, mas ele respeitava que minha mãe amava meu pai e vice-versa e nunca se meteu. Estava lá como amigo pra ajudar. Ele nunca confessou os sentimentos dele nem pro meu pai e nem pra minha mãe. Eles foram se aproximando naturalmente. Nessa época que meu pai vivia mal, minha mãe queria o bem do meu pai e ela já estava desesperada de ter que me abandonar, que ela sentia que estava sendo uma mãe negligente, o que é difícil pra qualquer mãe, pra ir tentar ajudar meu pai.

A essa altura eu não estava mais tatuando ela, eu estava olhando para ela atentamente e ouvindo tudo com atenção e ela tinha uma angustia na voz.

— Então um dia minha mãe tava comigo em casa no colo me ninando e ao mesmo tempo desesperada pelo sumiço do meu pai. Ela conta que eu não parava de chorar como se eu sentisse todo aquele caos no ar. Meu pai chegou em casa fazendo as malas enfiando tudo que pertencia a ele na mala e minha mãe sem entender nada me colocou no berço e eu chorando pedindo pra sair. Aos prantos ela foi tentar impedir meu pai. Ela fala que tentava impedir ele tirando as roupas da mala, empurrando ele, mas ele parecia um zumbi e não reagia. Ele só virou pra ela e falou algo do tipo “minha vida acabou, eu não aguento ficar aqui, não aguento mais isso” ela me falou que lembra com clareza dessa parte e de dizer “pensa em mim, eu te amo e pensa na Vicky ela é só uma criança” e ele olhou nos olhos dela e respondeu “eu não te amo, eu não sinto nada, eu estou morto por dentro” com um peso que foi como se uma bigorna caísse em cima dela e ele pegou as coisas dele, foi até meu berço me beijou na cabeça e sumiu pela porta.

Uma lagrima escorreu pelo olho dela e ela secou, eu peguei um lenço de papel e dei pra ela que agradeceu e secou.

— Nossa deve ter sido difícil pra você e pra sua familia é uma historia complicada.

— Pior é saber que meu pai e minha mãe se amavam, mas por uma fatalidade o caminho deles se desencontrou. Duas pessoas que tinham tudo pra ser felizes pra sempre, que se amavam. Não tem como culpar meu pai por ter ficado mal pela perda da minha avó durante muito tempo ela foi a única família dele. E muito menos como culpar minha mãe, ela passou por uma barra sozinha e com uma criança pra cuidar, ela deu uma segunda chance pra historia deles, mesmo depois dele ter deixado ela e ter casado de novo e ter tido uma penca de filhos, até por ela entender que ele fez tudo aquilo por estar de sofrendo o luto pela minha avó, mas o sentimento já não era mais o mesmo.

— As vezes as coisas eram pra ser assim, eu não sei se acredito que as coisas acontecem por acaso ou se elas já são predeterminadas para acontecer. Só que tudo isso que você passou fez de você quem você é hoje. E sua mãe e seu padrinho se amam. Mesmo seu pai tendo perdido a mulher que ele ama, ele ainda tem os filhos que são o maior fruto desse amor deles, você e seu irmão. Um dia seu pai vai acabar entendendo e perdoando, vai ver que seu padrinho e sua mãe não escolheram isso e que na verdade a vida que os levou a esse ponto.

— Verdade... É isso que faz de mim uma pessoa completamente louca que para em um estúdio de tatuagem logo após ser demitida pra gastar dinheiro que nem sabe se vai precisar. – Ela ri. – Pelo menos eu tenho bastante historia pra contar né. Todo esse rolo que eu nasci e vivi entre padrinho/padrasto, meu pai e minha mãe. – Ela aponta pra tatuagem. – E agora a historia da minha tatuagem impulsiva e talvez mês que vem a historia de como eu fui despejada do meu apartamento por não pagar aluguel.

Não consegui evitar rir, me foquei em terminar de o sombreamento da boca vermelha da medusa pra finalizar o desenho. Repassei os cuidados com a tatuagem que obviamente ela sabia e fomos para a recepção. Onde o Gabriel cheio de escoriações estava de boa com fones de ouvidos batucando em uma bateria imaginaria. Vicky chegou rindo pra ele e eles começaram a resolver a forma de pagamento e todos esses detalhes que não é da minha alçada.


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