Acasos escrita por Renata Guimarães


Capítulo 3
Capítulo 3




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Durante o processo, enquanto eu estava concentrada em fazer um bom trabalho, a cliente mal reclamou de dor ou fez barulho. Quando eu olhava pra ela eventualmente dava pra ver em sua expressão que ela estava sentido dor e mesmo assim ela ficava em silencio. Imagino que já está acostumada com a dor, ela já fez diversas tatuagens. Apesar de eu mesma não ter feito uma tatuagem, eu já testei a agulha sem tinta pra ver a dor e é uma dor, até certo ponto, suportável dependendo da pessoa, porque tem pessoas mais sensíveis, e do local da tatuagem.

— Você é bem silenciosa, não é? – Dei uma pausa para ela poder respirar. – Digo, durante a tatuagem.

— É que não gosto de atrapalhar o progresso do seu trabalho e também, é obvio que doí, mas é uma dor que da pra aguentar.

Ela estava tatuando na lateral do corpo, em cima das costelas que é um lugar bem doloroso. Decidimos colocar nesse local, avaliamos que ficaria mais bonito que nas costas. Eu já estava quase terminando o desenho da Medusa, ela não era muito grande. Só que para pintar seria mais complicado. O que me deixa preocupada, se vou terminar a tempo ou se vou ter que terminar em outra sessão. Tudo depende do Gabriel. Bem... Não seria de todo ruim, sempre é bom conviver com mulheres bonitas. Apesar de eu não ter coragem de tomar uma atitude, só admiro mesmo.

— Você tem alguma tatuagem? – ela perguntou entre dentes.

— Hm... Não. – respondi fazendo uma careta.

— Não?! – não entendi porque da surpresa, era tão obvio só de olhar meu corpo, acho que ela esperou ao menos uma escondida.

— Não e eu sei que é meio incomum pra uma tatuadora e tudo mais, mas eu tenho meus motivos.

— E quais são? – Eu podia sentir ela me olhando enquanto eu tatuava o corpo dela.

— Eu acho um peso muito grande, uma tatuagem sabe. – Olhei pra ela rapidamente e ela estava me encarando com os olhos de um azul bem claro, quase cinza no automático eu desviei o olhar.

— Nem pesa, é só tinta. – Ela riu e eu dei um sorrisinho.

— Eu sei disso, mas é pra sempre sabe? É um compromisso, é uma responsabilidade que eu não sei se eu to preparada pra ter sabe.

— Até entendo, mas acho frescura.

— Talvez seja, provavelmente é frescura, mas eu sou assim sabe, de seguir pelo caminho mais confortável.

— O caminho mais fácil?

— Nem sempre é fácil, as vezes é difícil seguir um caminho “seguro” só por medo de arriscar, as vezes é bem melhor ser impulsiva e pensar menos, mas eu sou assim, sei que é um defeito meu e to tentando mudar.

— Então nós somos opostos, bem diferentes... Porque aparentemente o que você tem de certinha eu tenho de louca.

— Dá um exemplo da sua loucura. – Ela fez uma careta de dor. – Desculpa.

— Tipo ter pedido demissão do trabalho e estar fazendo uma tatuagem do nada sem ter um emprego, eu podia ta procurando emprego em vez de estar tatuando.

— É, bem impulsivo, mas não chega a ser tão louco.

— Não é tão louco, mas é louco o bastante até... Vai saber se eu vou precisar do dinheiro que to gastando hoje outro dia né? Mas let it be.

— E você trabalhava com o que?

Eu estava colocando a cor vermelho pra pintar primeiro a boca da Medusa.

— Ajudante de cozinha.

— Se demitiu por qual motivo?

— O chef era um infeliz que me tratava como se eu fosse uma criança que não sabe o que faz.

— Felizmente eu não tenho um chefe. – Tentei falar mais do que o que habitualmente eu falo. – Aqui é um estúdio independente, a gente se junta pra pagar o aluguel do local e fazemos um trabalho individual, não tem um dono ou um chefe pra prestar contas.

— Isso é bom, porque você não tem que prestar contas.

— Exatamente. – Olhei pra ela pensando “nossa que bom que você não fala merda”. – E não é bagunça, é claro que tem uma reunião pra decidir se um tatuador pode ou não fazer parte do estúdio, porque não da pra aceitar qualquer um.

— É, tem que manter um padrão.

— Eu mesma passei por esse processo mesmo tendo feito belas artes, tatuar não é simplesmente saber desenhar, envolve técnica.

— Belas artes?

Eu olhei para o rosto dela, ela estava com uma expressão de duvida na face. Parei de tatuar por um instante e pensei se explicava para ela sobre todo meu lance com faculdade, belas artes e impulso. Ou se era muita informação.

— Longa historia, bobagem.

— Me conta enquanto você tatua, pelo menos vai me distrair da dor. – Novamente senti os olhos dela me fitando. Mordi os lábios e evitei olhar para ela, sabia eu ia esbarrar olhares com ela e isso ia me constranger.

Não é nada demais minha historia, eu só venho de uma família bem conservadora e eu sempre me mantive como boa moça e fiz o que era esperado de mim. Sempre fui obediente e pacata. Seguia as regras do lar. Pra ter uma noção de como meus pais sempre foram. Eu me assumi para eles enquanto ainda estava no Colegial. Eles simplesmente me mandaram guardar a informação pra mim, porque não pegava bem. Não falaram isso de forma raivosa, foi de maneira fria, egoísta e ambiciosa. Ignorando como eu me sentia. Só queriam manter a imagem. Exigiram que eu nunca aparecesse com nenhuma garota para não difamar o sobrenome deles. Não manchar a reputação deles. Meu pai é pastor de igreja ele é conhecido pela postura conservadora e mesmo não sendo um conservadorismo preconceituoso. Conservadores não são tolerantes. Mesmo ele não tendo me chamado de abominação e me expulsado de casa. Ele não quer ser o pastor que tem uma filha lésbica. Não quer estragar a imagem de família perfeita que ele constrói para toda sua igreja. Seria a família perfeita, pai, mãe, um menino e uma menina, se a menina não fosse lésbica. Não diria que meus pais são preconceituosos, eu diria que eles são covardes. Eles usaram até de suborno. Sempre fui exigida a fazer Direito e eles sempre desestimularam minha arte dizendo que não dava futuro, me queriam como uma Advogada, ganhando rios de dinheiro. Nunca gostei de direito era algo que me entediava não deixava eu expressar minha profundidade. É algo processual e frio. Eles sempre foram contra a faculdade de belas artes até virar uma moeda de troca pelo meu silencio.

— Bem... Não é nada de mais, eu cursava faculdade de belas artes em uma das melhores universidades do país. E desisti.

— Por quê?

— Eu estava cansada... Não da arte, a arte sempre vai me encantar – respirei fundo. – Cansada de me sentir vendida, de ter que fingir.

— Vendida porque? Algum professor seu exigia que você se adequasse a um modelo pra vender os quadros?

— Não, não. – Dei uma risada irônica. – Quem me dera fosse isso. – Olhei pra ela e fui fuzilada pelos olhos, mas mantive o olhar. – Meus pais pagavam a faculdade, mas era como viver em uma prisão, viver seguindo todas as regras deles, todas as ordens, fingir que era hétero sempre, ir na igreja fazer discursos hipócritas, sobre como eu estava noiva de um fulano, que era gay na verdade, que eles arrumaram dentro da igreja pra manter aparência pra ambos.

— Nossa.

— É, não é algo simples, é coisa pesada, mentiras. – Foquei novamente na tatuagem. – Aquilo estava corrompendo minha alma, atrapalhando o andamento da minha arte, eu achei que longe deles eu me tornaria livre, mas era um monitoramento a todo momento, ainda mais porque era um ano que meu pai estava tentando eleição estadual, era fotografo o tempo todo, entrevista o tempo todo.

— Aqui no estado?

— Não, eu morava no sul. Eu me senti no céu durante os três primeiros anos de faculdade, tenho até hoje quadros daquela época onde eu me senti livre da cortina de ferro dos meus pais.

— Tem fotos?

— Não, eu sou muito tímida pra mostrar esse tipo de arte meu pro mundo, eu mantenho tudo no meu apartamento.

— Poxa, queria ver.

— Os únicos que viram foram meus professores.

— Já pintou alguma de suas namoradas?

Gelei na base quando ela fez essa pergunta. Ergui as sobrancelhas como um reflexo natural. Tem um motivo para eu estar sempre nesses aplicativos de namoro. Eu nunca tive uma namorada. Sempre fui muito tímida pra dizer meus sentimentos para as garotas que eu gostava e queria algo sério. No máximo eu tinha uma crush que nunca se concretizava, amizades coloridas, ficantes casuais ou interesses românticos. Me envolvia com uma garota online, mas nunca dava certo, ficava só online mesmo. Eu não sou o tipo popular de garota que as lésbicas costumam gostar, eu era mais a garota que procuravam quando queriam ficar com alguém, mas sem apego emocional. Não sou a mais descolada, não sou do tipo predadora, nem do tipo submissa. Eu sou uma pessoa meio termo em tudo. Com gosto muito diferente das pessoas. Eu gosto das bandas que ninguém gosta, assisto aos filmes que ninguém assiste, leio livros que ninguém lê. Alguns me chamariam de hipster ou indie, mas essas pessoas são interessantes, descolados e vanguardistas. Eu cresci quadrada demais pra me tornar tudo isso da noite para o dia. Eu tenho dentro de mim esse lado diferente de ser que as pessoas gostam, que considerariam interessante. Apenas não consigo externalizar. Eu poderia ser a garota descolada, cheias de tatuagem, que tem hobbys que todo mundo tem, que faz coisas que todos fazem, que gosta de filmes, livros e bandas que todos gostam, que tira fotos super conceituais, mas tem algo que me trava. Eu fico com garotas casualmente em festa quando eu estou muito bêbada pra ter noção da minha própria timidez, mas um namoro... Nunca cheguei a esse ponto de seriedade com alguém, no máximo um romance.

— Eu nunca tive uma namorada. – A expressão dela era de surpresa.

— Como assim nunca teve uma namorada?

— Nunca cheguei a esse ponto de comprometimento. – Ela riu e eu fiquei sem entender.

— Você tem problemas com compromisso? Porque falou quase a mesma coisa sobre tatuagens.

— Não. – Eu ri ao entender. – São motivos diferentes, um eu não tenho por medo e o outro eu não tenho por falta de oportunidade.

— Não acredito que você sendo bonita do jeito que é, nunca namorou.

— Nunca, acho que minha criação pacata tem a ver com isso e eu não sou bonita.

— Claro que você é bonita.

— Não sou.

— Você tem que aprender a aceitar um elogio, eu sou bonita eu reconheço outra pessoa bonita.

— Só que você deve ouvir que é linda o tempo todo, eu não.

— É porque você tem cara de ser essa pessoa fechada, deve ser porque é tímida, você me parece tímida. – Ela deu uma pausa por causa da dor. – Por outro lado eu tenho cara de pessoa receptiva.

— Sua beleza não intimida as pessoas?

— Intimida, mas eu sempre fui atrás do que eu quero. A diferença entre nós é essa, que eu sou bonita, sei disso, não sou modesta sobre isso e vou atrás do que eu quero porque sei que intimido as pessoas às vezes.

— Eu n... – Tentei interrompê-la.

— Shiu! Já você é bonita, não sabe, intimida as pessoas e não percebe por isso fica nessa.

Ouço a porta do estúdio bater com força e olho automaticamente para a direção do barulho. Ouço vozes do lado de fora. E logo depois vejo o Gabriel ensanguentado na porta da minha sala. Paro de tatuar na hora e me levanto pra tentar ajudá-lo. Ele está mancando e com a camisa toda manchada de sangue. Enquanto mais sangue escorre pela lateral da sua cabeça. O susto que eu tomo ao ver aquela cena faz meu corpo tremer e meu sangue gelar.


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