Vatriesse escrita por Gazervici


Capítulo 8
Fios




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Marise tinha sido acordada por uma chamada da equipa de enfermeiros da sua Ala. Zai Zisaro tinha conseguido dar cabo dos braços mecânicos, explicaram-lhe condensadamente, com a promessa de que lhe dariam os detalhes assim que lá chegasse.

Ela não precisava de detalhes. No fundo, sabia que aquilo iria acontecer, mas deixara-se envolver por uma ténue esperança que lhe toldara a vista do que era real, plausível, previsível. Agora, a esperança desmoronara e fora abatida por uma irritação, uma raiva de si própria e daquilo que podia ter evitado. Dissera aos seus pacientes que se afastassem do Puritano, para ser ela a cometer o mesmo erro. Enquanto esticava a corda do telefone para conseguir chegar às chaves de casa na mesa de centro da sala, fez apenas uma pergunta:

— Não incomodou ninguém da Ala? Resistiu demasiado?

— Não, doutora, estava calmo. Não interagiu com ninguém da Ala exceto com o Bellavance.

Sentiu o pânico embrulhar-lhe o estômago, as chaves a resvalarem-lhe da mão com o súbito susto.

— O Bel… espera, ele fez-lhe alguma coisa?

— Não, não aconteceu nada de mal, o Bellavance encontrou-o a chorar na biblioteca perto da madrugada, com os braços destruídos. Ficou com ele algum tempo a tentar acalmá-lo, e foi pedir auxílio assim que o Zisaro lhe disse que não se importava.

— Raios partam a minha vida. Diz ao Bellavance que quero falar com ele depois de ver do Zisaro. Cinco minutos estou aí.

— Até já, doutora.

Voltou a pousar o auscultador na base, agarrou no casaco e deslizou até à porta, um turbilhão de questões, de problemas e ansiedades a passar-lhe pelos olhos. Tinha tentado protegê-los. Tinha tentado que não tivessem de passar por situações complicadas, fazê-los entender que não precisavam, nem deviam, tentar ensinar pessoas que lhes queriam mal. E acabaram com Silas a ir ter com um Puritano instável que acabara de se auto mutilar. Tremia só de pensar nas formas como aquilo podia ter acabado mal.

Passou pelas ruas atribuladas sem prestar atenção a pessoas conhecidas, lojistas e vizinhos que costumava cumprimentar a caminho do trabalho. Apesar de ainda ser cedo, quase sete da manhã, já as ruas se atribulavam com o fumegar das chaminés, as motorizadas a cascatear das ruas mais recônditas para a estrada principal, num eterno rrrrrrrr que nunca cessava, os tinires metálicos das engrenagens que abriam as portadas das lojas, que moviam as carruagens automáticas, que, ligadas a um dispositivo solar que bebia da luz da manhã, desligavam automaticamente as luzes no cimo dos postes. A cidade era uma orquestra de clangores, rosnares e soprares. Não desgostava do ambiente, apesar de por vezes o achar demasiado intenso, esmagador até. Não havia descanso numa cidade mecânica, assim como não havia descanso para uma médica.

Adentrou os portões do recinto do hospital, dirigiu-se a uma das portas traseiras que dava acesso ao pessoal interno. Mostrou a identificação, sem necessidade, num gesto puramente maquinal, a um porteiro que já a conhecia. Este puxou uma pequena alavanca no interior da sua cabine, e uma cadeia de engrenagens a rodar em sincronia abriu a porta num clique seguido de um zumbir. Agradeceu-lhe entredentes, passou pelos balneários onde, num dia normal, vestiria a sua bata e guardaria os pertences num cacifo de fechadura fraca antes, e lançou-se para as escadas para a sua Ala.

Lá, tudo se passava como se nada tivesse ocorrido. Graças à hora, apenas uns quantos pacientes andavam pelos corredores, com um recobrado cuidado de não fazer barulho. A secretária cumprimentou-a com um “bom dia” caloroso, a sala comum tinha uma fraca quota de duas pessoas numa mesa a jogar jogos de tabuleiro, uma rapariga baixa e encurvada desenhar à luz das janelas, um grupo a conversar nos pufes. Ah, então já lá estavam.

Irina Federici, Teresa Ascolana, Silas Bellavance. Sabia-os de cor, não fosse serem nomes recorrentes nas bocas do pessoal médico. Eles aperceberam-se da sua passagem como um mau augúrio, olharam em direção à entrada mesmo a tempo de ela os queimar com o olhar antes de desaparecer na ombreira da porta.

Esqueceu-se de despir o ar irritado antes de entrar no quarto de Dominic. Este levantou apenas os olhos, voltou a baixá-los de um estalo quando se apercebeu que ela não estava contente. A enfermeira dos cabelos negros e o ruivo já lá estavam desde mais cedo, a desmontar os braços destruídos peça a peça, deixando apenas as ligações que saiam do coto de um braço e do ombro.

— Bom dia.

A enfermeira levantou a cabeça, fitou-a com as faces lavadas de um súbito alívio.

— Doutora — cumprimentou. Levantou-se e dirigiu-se a ela, reduzindo a voz a um sussurro — ele teve um colapso nervoso. Já está estável, mas devíamos…

Marise assentiu sem a deixar acabar, adivinhando-lhe o conselho que se seguia. A enfermeira acenou-lhe a que se aproximasse, para voltar a separar as peças destruídas das aproveitáveis. O rapaz parecia apático, os olhos mortiços a fitá-la sem realmente a ver, a pele novamente adoentada.

— Desculpe, doutora — murmurou o rapaz — não sei o que aconteceu.

— Então não te lembras? — perguntou apenas, num tom fatigado.

— Lembro-me. Mas não sei porque o fiz.

— Por não os quereres, talvez? Por achares que não precisas deles, porque eles te envenenam?

Ele negou com a cabeça a medo, e só aí Marise achou que talvez estivesse a ser demasiado agressiva. Não sabia se conseguia fingir empatia, mas adotou uma pose menos retesada. Ele continuou:

— Não. Eles não me envenenam.

Aí, os ombros dela distenderam-se por completo.

— É o que achas?

— Sim. Ainda preciso de pensar sobre muita coisa, mas acho que sim.

— Então podemos colocar-te braços novos, sem que resistas?

— Acha que isto vai acontecer outra vez? — Perguntou como se não a tivesse sequer ouvido.

— Isto o quê?

— Eu me passar.

Ela pensou por alguns momentos. Por fim, escolheu bem as palavras e enunciou cuidadosamente:

— Tu não te passaste, Dominic, tiveste um colapso. Mas nós vamos estar cá para ajudar.

Ele calou-se, os olhos a perscrutar o trabalho dos enfermeiros, a analisar as ligações partidas e o metal dobrado.

— Se acontecer, alguma coisa tem de me impedir de destruir os braços. Ao menos tempo suficiente para alguém me sedar, ou coisa assim.

Ela ficou prostrada, boca semiaberta para falar, sem saber onde ele queria chegar. Os enfermeiros pareciam no mesmo estado de confusão, e lançavam-lhe olhares duvidosos por entre a sua fachada de trabalho compenetrado.

— Se quiseres, podemos pôr-te em vigilância constante…

— É muito complicado pôr braços em liga de aço?

Agora, a discrição dos enfermeiros desvaneceu-se por completo. Pousaram as mãos no tabuleiro dos instrumentos, fitaram-no. Ninguém falou. Dominic respirou fundo e virou a cara.

— Pior que ter braços com que não sinto nada — explicou — é vê-los todos destruídos. Eu não devia considerá-los parte de mim, mas naquela altura, senti que… tinha-me destruído a mim. Foi horrível. Não quero passar por aquilo outra vez.

— Podemos fazer um requerimento — tartamudeou a enfermeira. Só alguns segundos depois é que Marise se apercebeu de que falava para si, e foi como se acordasse.

— Ah, sim. Se o dermos como propenso para causar danos no material por razões psicológicas, pode ser que comparticipem a que a substituição seja feita num metal mais resistente — depois virou-se para o paciente — mas tenho mesmo de perguntar, Dominic: é mesmo isso que queres?

Ele parecia também não ter a certeza. Ponderou, os olhos a ganharem um brilho de humidade. Só depois falou:

— Quando voltar, com ou sem próteses, a resposta vai ser a mesma. “Putrigo, indigno, teve metal no corpo tempo suficiente para ficar infetado, maculado.” Não posso continuar com ilusões, não me vão aceitar de volta. Já que isso está perdido, mais vale recomeçar — encolheu os ombros, tentando fingir um mínimo de casualidade — e se é para recomeçar, é melhor que seja o tudo ou nada.

A médica respirou fundo, cruzou os braços. Por fim, falou:

— Posso fazer o requerimento. Mas com uma condição.

— Diga.

— Tens de concordar em ter apoio psicológico.

**

Ouviram os passos inconfundíveis da médica a afastar-se em direção ao quarto do Puritano. Os sapatos de sola de borracha a guinchar no chão liso do corredor lançaram uma pedra ao estômago de Silas. Olhou para Teresa, o seu habitual porto de abrigo, esperando que ela lhe desse uma solução. Ela relanceou-o pelo canto do olho, desinteressadamente, voltando a virar a atenção para o livro pousado no colo.

— Desolha, carrapato. Não penses que te vou safar desta.

— Oh vá lá, Teresa — bufou o rapaz — vais-me dizer que fiz mal em ajudá-lo?

— Vou dizer-te que se ele estava instável e violento o suficiente para destruir os braços de metal sozinho, estava em condições de te ter magoado a sério.

Fechou a expressão, olhou para o pufe ao lado, onde Irina se entretinha a alinhar um monte de revistas na mesa de centro. A rapariga encolheu os ombros para ele com um meneio de cabeça.

— Ah, tu nem te atrevas a dizer nada — resmungou Silas — como se tivesses muita moral. Também foste falar com ele.

— Não depois de já ter tido um encontro hostil com ele. E não quando ele estava a meio de um ataque qualquer.

— Isso são tretas, Irina, e tu sabes —Teresa disparou, tomando finalmente as rédeas da conversa — já tinhas ouvido o que ele disse ao Silas, sabias muito bem que era hostil. O facto de ele não ter disparado quando tu estavas com ele foi mera sorte, mais nada. Vocês os dois foram uns irresponsáveis de primeira. Estou-me fodendo para se a Marise vos der um pontapé na cara ou vos puser em vigilância. Bem merecem.

— Sinceramente — Irina largara as revistas e cerrara os punhos no colo — eu ontem a dar um chá ao Puritano por não ter empatia com os outros, quando a pessoa mais insensível está aqui!

— Queres mesmo falar sobre isso? — Teresa ripostou — Poupa-me, Irina, não recebo conselhos de uma pessoa que confunde empatia com estupidez temerária.

— Ah, pois. Porque é só isso que eu sou para ti, não é? Uma estúpida qualquer que tu aturas. Bem podias ter dito logo.

Irina levantou-se e caminhou rapidamente para a porta, abrindo a porta de um baque.

— Irina, espera! — Silas chamou, demasiado tarde. A rapariga bateu a porta, ouviram os passos a afastar-se. Virou-se para a outra, que voltara a enfiar a cara no livro — Sinceramente. Não podias ter dito nada?

— Ela tinha-se ido embora à mesma. Está de cabeça quente, já volta a si.

— Que merda, Teresa, as coisas não funcionam assim. Ela está magoada, e não é por arrefecer a cabeça que vai deixar de estar. Ela pensa mesmo que tu não queres saber dela, e vem de trás, não é coisa que ela se tenha lembrado agora. Devias ir falar com ela — parou-se, a sua mente a sussurrar-lhe uma possibilidade difícil de aceitar — isto, se ela não tem razão.

Teresa atirou o livro para o lado, endireitando-se com as faces contorcidas numa exasperada irritação.

— É claro que não tem, Silas! É claro que eu me preocupo com ela! Não sei porque é que ela pensa que eu só a aturo!

— Porque tu não lhe mostras o contrário!

A porta voltou a abrir-se. O par olhou na sua direção, com esperança de que fosse Irina a voltar.

Era Marise. E pela sua expressão, as coisas ainda iam piorar.


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