Vatriesse escrita por Gazervici


Capítulo 7
Quebra




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Silas não sabia ao certo o que o tinha feito acordar. Deu apenas por si a olhar para o teto, sabia lá há quanto tempo, sem conseguir voltar a dormir. Já lhe acontecera, em tempos — quando chegara logo ao hospital, a cama estranha e os sons desconhecidos faziam com que tivesse um sono intermitente sem qualquer descanso. Mas já estava lá há um bom par de semanas. O rugir das motorizadas lá fora, o colchão de molas e as finas tiras de luz que entravam através das persianas partidas eram-lhe agora familiares, pelo que não entendia a razão daquela repentina insónia.

Decidiu levantar-se, saiu do quarto e desceu as escadas até ao andar inferior a arrastar os pés. Amuava sempre que Teresa e Irina afirmavam que ele tinha o pior despertar que já haviam visto em alguém, mas era em alturas como esta que tinha, relutantemente, de lhes dar razão.

O rapaz ao balcão da cafetaria tinha auriculares nos ouvidos, a outra ponta ligada a um rádio de aspeto antigo e antenas compridas e retorcidas. O seu ar de enfado não desapareceu quando teve de os tirar para atender Silas, que pediu apenas um chá de camomila para levar. Conhecia quase todos os funcionários dos turnos da manhã e da tarde, mas não era seu hábito deslocar-se lá à noite, pelo que nunca o tinha visto. Resultado da falta de confiança, passou o tempo que a água demorou a ferver num silêncio desconfortável, apoiado no balcão, a olhar para as paredes despidas e para a janela distante. Quase deu graças quando o rapaz lhe deu o copo reforçado de chá, e lhe desejou uma boa noite.

Voltou a subir também devagar — agora estava desperto, mas dava pequenos goles em andamento, e receava engasgar-se ou entorná-lo. Os pés descalços não faziam barulho no chão da Ala, conseguia quase ouvir a respiração dos outros pacientes, o bzzzzz das máquinas.

Até que ouviu um soluçar.

A princípio pensou ter ouvido mal. Um barulho que não conhecia, que erroneamente interpretou como choro. Mas depois voltou a ouvir, e deu por si a seguir o som corredor adentro.

Este parava na biblioteca.

Abriu a porta precatadamente, para ver confirmada a sua suspeita. O soluçar continuava, como se a pessoa nem o tivesse ouvido entrar. Pé ante pé avançou pela sala pouco iluminada, pousou o copo no chão e, ao passar pelo corredor estreito formado por duas estantes, finalmente encontrou o vulto aninhado a um canto.

— Tu?

O rapaz levantou a cara, e confirmou as suas suspeitas. O Puritano. Mas não parecia o Puritano que conhecera — assemelhava-se a uma criança assustada, os ombros trémulos e o olho natural vermelho, inchado, as faces lavadas em lágrimas.

— S… Silas? — A voz também lhe soava quebrada. Quis perguntar-lhe como sabia o seu nome, mas algo lhe chamou a atenção primeiro: peças metálicas. Fragmentos de metal a resvalar do seu colo, um cabo-tendão solto que pendia para o chão.

— O que é que aconteceu?

— Eu… estraguei tudo — e voltou a recolher-se e a soluçar. Notou-lhe o antebraço desmontado, as mãos envoltas no corpo mas os dedos inertes.

Paralisou, sem saber o que fazer. Se o ajudasse ele podia voltar a insultá-lo, a repudiá-lo, a fazê-lo passar outro mau bocado. Não o conhecia sequer, mas não queria ter de lidar com aquilo novamente. Por outro lado, aquele não parecia o mesmo. Algo de muito errado se passava, não queria simplesmente deixá-lo sozinho. Podia chamar os médicos. Podia chamar Teresa e Irina. Podia ajudá-lo ele.

Vocês não têm de se queimar por quem não merece.

— Calma. Posso ver? — Silas estendeu-lhe uma mão, a natural, e o rapaz fitou-o. Não falou, acenou-lhe afirmativamente com a cabeça, encolhendo-se mais à sua aproximação.

— Estraguei tudo.

— Vai tudo correr bem. Deixa-me ver os teus braços — o outro não se mexeu, mas não os recolheu. Aproximou-se, ainda receoso.

Tocou-lhe no braço esquerdo a teste, o outro parecendo distender um pouco os ombros. Só ao puxar levemente o braço do seu colo é que notou que este estava inerte, alguns parafusos a cair com o movimento. Rodou-lho para analisar as ligações através das guardas de chapa amolgada que as protegiam e encontrou grande parte dos cabos que ligavam as suas terminações nervosas e os seus músculos às extensões artificiais partidas. Ainda pendiam pela parte do seu ombro; talvez lhe tivesse doído ao puxar pela parte que ligava ao seu próprio corpo, e puxou pelo extremo oposto.

Perguntou-se porque é que ele o tinha feito, e depois quase bateu em si próprio por fazer uma pergunta tão óbvia.

— Estão partidos — informou sem necessidade. O outro assentiu.

— Parti-os. Não sei porquê. Não sei como. Não… eu…

— Pronto, está tudo bem. Não é grave, não estás magoado. Vamos chamar a doutora Marise—

— Não! — Disparou. Quando viu que Silas petrificara, a sua face distorcida num misto de preocupação e receio, acalmou — Não. Por favor. Ela detesta-me. Ainda me vai detestar mais.

— Ela não te detesta — contrapôs, mas não se convenceu nem a si próprio.

— Detesta. E tem razão. Magoei-a, e a ti, e à Irina. Fui horrível, desculpa, eu nem te conhecia — a voz estrangulou-se-lhe novamente — eu não… não devia ter sobrevivido — e voltou a enterrar a cabeça nos joelhos, abatido de um choro convulsivo.

Silas desnorteou-se, tanto com o súbito pedido de desculpas, como com o facto de Irina ter entrado na equação sem saber bem como.

— Rapaz, então! Olha para mim, olha. Vai correr bem. Diz-me só, dói-te alguma coisa?

Negou com um ténue aceno de cabeça.

— Mostra-me o outro braço.

Ele acedeu e arrastou o braço pelo colo para o campo de visão do outro. Mas neste, havia sangue, aparentemente no local em que o seu braço se unia ao antebraço de metal. Temeu o pior, que tivesse puxado aquele com tanta força que tivesse rasgado a pele, a carne, danificado os próprios nervos. Só ao puxar a pele de debaixo da tira de cobre que envolvia a zona de união é que verificou, aliviado, que tinha apenas feito um corte com a parte mais fina da tira. Observou o resto do braço, este com o metal dobrado e encarquilhado, o exosqueleto retorcido.

— Eles vão reparar-te isto — deteve-se. Perscrutou-lhe as faces por sinais de raiva, algum sinal de que tinha despoletado o Puritano que, sabia ainda lá estava. Não o encontrou, decidiu ver até onde conseguia ir — queres que te reparem?

— Não sei — respondeu, e olhou para as mãos mortas, os braços destruídos, com uma expressão derrotada, antes de prosseguir debilmente — uma das coisas que eu menos gosto nisto é que mesmo com elas a funcionar, não sinto nada. Ao menos se não tivesse braços, não tinha ilusões. Assim estou sempre a tocar nas coisas e a lembrar-me que perdi isso.

— Ao menos não perdeste tudo. Ao menos podes tocar-lhes — comentou Silas, enquanto apanhava os fragmentos de metal do chão — já é alguma coisa. Não é a ajuda toda, mas é alguma.

Só quando olhou para o outro é que viu que ele lacrimejava. Silenciosamente, agora, como se as forças se lhe tivessem esvaído.

— Pronto, não fiques assim. Eu sei que tem um lado mau, e que no teu caso é pior. Mas é uma oportunidade.

— Para quê? — A pergunta soou resignada, sincera, como se lhe pedisse realmente uma solução. Silas considerou-a por alguns momentos. Acabou de recolher os pedaços de metal, sentou-se a seu lado e pousou-lhe a mão nas costas.

— Para recomeçar?


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