Vatriesse escrita por Gazervici


Capítulo 9
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Notas iniciais do capítulo

Oioi o/ só para avisar que partir de agora, vou postar os capítulos mais esporadicamente. Vou tentar não deixar passar muito tempo entre cada postagem, mas como tenho de acertar algumas coisas no enredo mais para a frente não me quero adiantar muito. Espero que gostem!



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— Como te sentes hoje?

— O que te leva a pensar que o artificial é inerentemente mau?

— Achas que essas ideias são tuas, ou adotaste-as das pessoas com quem vives?

— E a tua família? Podes-me contar sobre o teu ambiente familiar?

— E sobre o teu círculo de amigos?

— O que achas que vai acontecer quando regressares?

— Como te sentes acerca disso?

Todas as sessões que tinha com aquela psicóloga eram um oxímoro vivo: todo o incessante questionar daquilo que era e em que acreditava deixava-o exausto, frustrado, pesado e com vontade de se esconder e nunca mais ter de pensar sobre nada. Mas, ao se despedir da baixa senhora de cabelos grisalhos e olhos de gato, sentia-se leve; como se um peso lhe tivesse saído de cima.

Ela ajudou-o a levantar-se, abriu-lhe a porta e deixou-o sair, acenando-lhe até ele dobrar o corredor. Ele, porém, sorria-lhe apenas. Não era como se conseguisse acenar-lhe de volta.

Afinal, não tinha braços.

A condição da doutora era mais complexa do que lhe soou na altura: para não o submeterem a duas operações, decidiram não lhe colocar braços temporários, e apenas o operar quando fosse para instalar os definitivos. Porém, se queria os definitivos de liga de aço, precisava da aprovação da psicóloga. Pelo que percebera, só depois de aquela grisalha senhora de aspeto astuto atestar em como ele não era propício para usar os braços mais resistentes para magoar ou destruir, dado o seu já preenchido historial, é que seria chamado para cirurgia.

Marise considerava isto ainda um período de tempo de prova, para ele perceber se queria mesmo os braços de liga, ou se gostava de estar sem eles.

Meia dúzia de sessões depois, decidiu que não gostava. Faltava-lhe algo. Aqueles braços de lata tinham sido seus, e era tão mais simples simplesmente aceitar a ideia do que repudiá-la e castigar-se mentalmente sempre que esta lhe surgia. Tinham sido dele. Destruíra-os porque não conseguira aceitar isso. Iria voltar a tê-los, porque queria. As sessões ajudavam, apercebeu-se aliviado. A sua falta de braços, nem tanto.

A voz grave de tom trocista de Irina soava-lhe sempre que dependia de outro paciente para abrir uma porta ou de palhinha para beber alguma coisa. Estas coisas ajudam pessoas a ter uma vida mais normal. Oh, ela rir-se-ia da sua cara se o encontrasse, tinha a certeza. Era já tarde avançada, quase noite, quando saíra da sua consulta, e decidiu ir buscar chocolate quente à cafetaria. O adíade que costumava fazer aquele turno já o conhecia, levava-lhe a caneca à mesa e perguntava-lhe se precisava de algo. Tinha o pescoço forrado a metal e a voz era ríspida, porém afável.

Entrou pelas portadas abertas, o adíade sorriu-lhe por detrás do balcão, e acenou-lhe como que a dizer “já sei, vai sentar-te”. Atravessou a montra de vidro a olhar os poucos bolos que restavam e a cesta de fruta intocada a um canto. Levantou a cabeça, para se deparar com uma cara conhecida numa das mesas mais recuadas.

Atravessou a cafetaria quase vazia, duas médicas de bata branca e pernas cruzadas numa qualquer discussão sobre as vantagens das motorizadas a éter, um paciente a escrever uma carta numa mesa individual com uma chávena de um qualquer líquido translúcido a fumegar a seu lado.

— Irina?

A rapariga voltou-se, lançou-lhe um dos seus sorrisos ao lado.

— Olha quem ele é. Dominic, o Puritano — só então reparou na sua falta de membros mecânicos — ah. Sempre conseguiste o que querias. Esqueceste-te foi do olho.

— Não — apressou-se ele a esclarecer — não, vou tê-los de volta. Mas antes tenho de ter sessões com a psicóloga para resolver umas coisas. Ordens da médica.

— Quem é que a pode culpar? Bem ouvi a bonita trampa que tu arranjaste. Quando falei contigo sabia que eras um fanáticozinho e tal, mas uma brutalidade daquelas? Não posso dizer que estava à espera.

Para surpresa da rapariga, ele soltou um pequeno esgar.

— Nem eu, se queres que te diga.

— Dominic? — rapaz voltou-se. Era o adíade que o chamava, a caneca quente entre mãos — onde ponho?

Olhou em volta, em busca de uma mesa vazia mais recuada; Irina, porém, adiantou-se:

— Ponha aqui — só depois se virou para Dominic — isto, se quiseres.

— Sim. Claro — assentiu, ainda algo atordoado pela sua súbita mudança de atitude. Sabia, e já o debatera com a psicóloga, que era perfeitamente natural e expectável que ela ou Silas nunca mais o quisessem ver pela frente. Era dolorosamente difícil lidar com preconceito, e ele fora uma fonte bastante abrupta e vincada dele. Com razão, reiterara a psicóloga. São erros do passado, mas deixaram uma marca.

Sentou-se à sua frente a medo. Ela olhava pela janela, as luzes desfocadas da cidade a tornarem-se mais nítidas à medida que a noite avançava. Não tocou na palhinha, remexeu-se desconfortavelmente em silêncio por alguns segundos, até ganhar coragem para falar.

— Irina.

— Hm? — Olhou finalmente para ele.

— Desculpa. Pelo outro dia.

— Tudo bem. Estávamos só a discutir pontos de vista — endireitou-se na cadeira — parte da culpa também é minha. Não podia querer que alguém que odiou gente mecanizada durante a vida toda de repente me ouvisse e concordasse comigo, assim, de estalo. Acho que na altura, foi isso que eu achava que ia acontecer. Que te desse uma epifania tipo “Puta merda, estive errado a minha vida inteira e pela tua sabedoria me ilumino, ó lorde salvadora que descestes à Terra”.

Ele riu-se, pela primeira vez desde que lá chegara. Os olhos dela também se iluminaram brevemente, e prosseguiu:

— Mas não é assim que as coisas funcionam. Mesmo que chegasses a concordar comigo, isso não ia acontecer do dia para a noite. Tinhas muitas patadas a dar até lá chegares.

— Bom, se te serve de consolo — respondeu ele, também relanceando os olhos para a janela — já dei grande parte das minhas patadas.

— A sério?

— Hah, porquê essa incredulidade? Estou a chegar lá, acho eu.

— Então já não nos achas uma exibição da arrogância humana?

Ele olhou para a mesa, onde pousaria os braços, com os dedos entrelaçados e as unhas a raspar nos nós. Suspirou:

— Não. Acho-vos pessoas.

Ela sorriu de esguelha, mal acreditando no que ouvira. Queria correr escadas acima e corredor adentro e ir contar a Silas. Queria palmilhar mais umas portas e ir contar a Te—

Não. Pensando melhor, estava bem ali.

— Sabes que mais, gosto de ouvir. Ainda não estou convencida, mas já é um passo dos grandes — gesticulou-lhe para a mesa — bebe isso, mas é. Vai ficar frio, depois perde a graça.

— Antes disso, já agora — Dominic atreveu-se. Não sabia se devia esticar tanto a confiança, mas valia a pena tentar — sabes do outro rapaz, o Silas?

— Não. Não tenho estado muito com ele — a expressão dela fechou-se, e ele perguntou-se se tinha feito bem em perguntar — porquê?

— Ainda não consegui encontrá-lo depois daquilo para lhe pedir desculpa.

— Oh. Bom, quando ele não está nas consultas de rotina, que normalmente são de manhã, anda lá pela sala comum ou pela biblioteca. És capaz de o encontrar algum destes dias.

— Tomara — encolheu os ombros, sentiu a conversa a esmorecer. Sim, não devia mesmo ter tocado no assunto de Silas. Embora não percebesse o que havia acontecido.

E, como que a prever que lhe poderia perguntar algo, Irina saltou de repente:

— Queres ir à varanda?

— Uh. Sim. Claro. Vamos.

Dominic sentiu-se um pouco menos só. E, sem que se apercebesse disso, Irina sentiu-o também.


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