Vatriesse escrita por Gazervici


Capítulo 6
Cassiopeia


Notas iniciais do capítulo

Capítulo enorme, eu sei ;A; Culpa ou da playlist de Bastille e Imagine Dragons que ando a ouvir em repeat enquanto escrevo esta gaita, ou da minha enorme falta do que fazer, ou do café que ando a consumir às doses cavalares. Ou uma mixórdia de tudo. Vá-se lá saber.

De qualquer maneira, espero que gostem!



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Era uma noite clara, o céu despido das nuvens que o haviam coberto durante a maior parte da semana. A nebulosidade reduzia-se agora a alguns fiapos longe, quase no horizonte. Na varanda do hospital corria uma brisa suave permeada com o odor a fumo, o negro da noite pontilhado por aglomerados de estrelas, mais densas nalgumas zonas, escassas noutras.

No prédio onde Dominic morava também havia uma varanda. Pequena, apertada, comum a todos os moradores. Alguns usavam para pendurar a roupa a secar, outros usavam-na como arrecadação e ocupavam demasiado espaço com pilhas de caixotes, despoletavam queixas à associação de moradores, tensões de cortar à faca e olhares cáusticos trocados nos corredores. A ele e Lucas, porém, não lhes importava os enredos dramáticos entre os vizinhos. Moravam sozinhos, apartamento direito e esquerdo do mesmo terceiro andar do edifício sem elevador. Fora assim que se conheceram, relembrava-se sempre com um sorriso. Lucas tinha a pior resistência física que alguma vez vira numa pessoa da sua idade e certo dia sentara-se nas escadas do segundo andar para recuperar o fôlego, quando Dominic ia a subir.

Boa tarde. Estás bem?

O outro voltara-se com os olhos semicerrados, o peito a subir e a descer da respiração ainda acelerada.

Oi. Sim, tudo na boa. É só…

Pausara. Perante o olhar expectante de Dominic, soltou um esgar de riso pontuado de um grave, quase palpável arrependimento quando se agarrou ao lado do torso.

Puta que pariu, odeio escadas.

Meses depois já a maioria dos dias eram passados na casa um do outro, confiantes o suficiente para se sentarem no balcão da cozinha, atirarem-se para o sofá, baterem à porta do outro às três da manhã porque não conseguiam dormir e queriam fazer alguma coisa para ocupar o tempo. Mas chegada a estação quente, a canícula abateu-se sobre a cidade e acabaram por recorrer à varanda para se encontrarem. Na maior parte das vezes conversavam até ser noite cerrada, altura em que se deitavam em silêncio no chão de tijolo empoeirado, a observar as estrelas. Certa vez, Lucas apontara para uma linha brilhante no céu e dissera:

— Aquela. Aquela é a minha constelação preferida.

Dominic não sabia nada de constelações, mas gostava de o ouvir falar. Pouco durou, no entanto, pois Lucas imediatamente se aninhou a seu lado, apesar da brisa quente que abafava o ar, e adormeceu, o braço alçado na sua cintura, a respiração suave a ressoar no seu peito. Lembrava-se de o puxar para junto de si, de lhe beijar levemente os cabelos lisos, desgrenhados por cima dos olhos, e adormecer também.

Agora, sozinho na varanda do hospital, perscrutava o céu noturno a tentar encontrar a mesma linha de estrelas — retorcida, um “W” rebuscadamente desenhado no meio de tantos outros milhares de estrelas. Recordava-se vagamente de que se encontrava algures perto da estrela mais brilhante do céu. Encontrou-a facilmente, não era assim tão inapto em matérias astronómicas, rodeou-a uma e outra vez atentamente, em busca de algo que se parecesse minimamente com a forma.

— Um “W” ao pé da mais brilhante… — murmurou sem querer.

— Cassiopeia.

A voz sobressaltou-o. Encostada à parede descascada estava uma rapariga que nunca tinha visto, de cabelos loiros pequenos, duas finas tranças de cada lado. Olhou para ele e explicou:

— Triste, a história dela. É a prova de que as ações têm consequências. E que muitas vezes, são os outros a pagar pelos erros que nós cometemos.

Dominic não conhecia a história, e muito menos a rapariga que falava consigo como se de uma amiga de longa data se tratasse. Mirou-a de alto a baixo, o tique de procurar nas pessoas partes metálicas mais forte do que ele. Quando não as encontrou, sentiu-se igualmente aliviado e desconfiado. As da doutora também não eram visíveis. Só depois uma voz lhe surgiu:

Toda a gente nesta Ala tem acrescentos.

Ela sentou-se a seu lado no chão de cimento com o queixo pousado nos joelhos, a observar também o céu estrelado.

— Chamo-me Irina — apresentou-se, estendendo-lhe uma mão. Ele hesitou, subitamente assolado pelo facto de que ela tinha mãos naturais, de dedos ossudos e unhas quadradas e curtas, e teria de a apertar com a sua. Fria, dura, metálica.

Aproximou-a da dela relutantemente. Viu-a apertá-la descontraidamente, mas não a sentiu. Notou que a rapariga não o largou depois de o cumprimentar, e observava-lhe a mão mecânica com interesse.

— Lata acobreada, boa. Podes ser meio claro e brilhante agora, mas daqui a uns anos vai ficar mais opaco e mais ou menos da cor da tua pele. E a manutenção é barata — levantou um dedo, como que a pedir-lhe que esperasse e virou-lhe as costas. Ao levantar uma nesga da blusa, ele apercebeu-se da sua coluna em exosqueleto — a minha é de liga de aço. Se parto uma peça, bem posso ir roubar um banco para a substituir.

— Como é que… o que é que aconteceu? — Lá estava outra vez. A pergunta. A que não se conseguia impedir de fazer, por muito que se dissesse a si próprio que não importava. Não importava que circunstâncias os tinham levado a ter peças de metal. Não importava porque eles não importavam.

Mas a pergunta estava sempre lá. A picar-lhe a ponta da língua, sempre à espera de sair. Frustrava-lhe a sua própria curiosidade, mas apenas se apercebia quando esta já tinha saído.

— Parti as costas — respondeu ela com casualidade, como se falasse de algo trivial — um acidente parvo. Queriam substituir-me umas quantas vértebras, mas fiquei com um medo horrível de vir a ter algum outro problema, então quis jogar pelo seguro e pedi para me substituírem a coluna toda — sorriu para o céu — depois a minha tia descobriu, jogou ainda mais pelo seguro do que eu e pediu que ma fizessem em liga de aço inoxidável. É o tudo ou nada, com aquela mulher. E tu?

A garganta secou-lhe. Devia ter antecipado, que para uma pergunta pessoal existe outra. Que seria apenas justo que assim fosse. Quis dizer-lhe que não era da sua conta, fugir dali, trancar-se no quarto e admitir que tudo aquilo fora um erro. Mas forçou a voz a sair, estrangulada, hesitante.

— Estava numa congregação, numa capela — pronunciava as palavras com cuidado, como se alguma pudesse despoletar as memórias erradas. Sentia o cheiro do sangue — um… um barco voador caiu lá. Ruiu tudo. Morreu… muita gente, pelo que me lembro.

— Oh. Desculpa. Sei que é recente, não sabia que era tão grave.

Mas na cara dela, algo clicou. De um estalo as sobrancelhas curvaram-se, os lábios estreitaram-se numa linha, fixou um ponto no horizonte visível entre as barras de ferro da varanda.

— Um barco, dizes tu?

— Um barco — assentiu — pirata, acho eu. Não tenho a certeza.

— Hm.

Parou-se a meio de lhe querer perguntar de volta porque é que isso importava, temendo que isso desse azo a mais uma enxurrada de perguntas. Coçava os nós dos dedos num tique nervoso que nunca perdeu, apesar de agora não sentir o arranhar das unhas finas na pele. Deveria cortar a conversa? Não tinha grandes esperanças que um simples “deixa-me em paz” a conseguisse afastar. E, se fosse sincero consigo próprio, não sabia se conseguia sequer passar da segunda palavra. Ainda a culpa lhe martelava a cabeça.

Não gostas de nós. Perfeito, entendido.

Começava a irritar-se a si próprio.

— Não me chegaste a dizer como te chamas.

Hesitou. Hesitou novamente. Por fim murmurou:

— Dominic.

— Dominic. Finalmente o Puritano tem um nome.

Foi assolado por uma onda de suor frio quando se virou para encontrar a face da rapariga transmutada da sua anterior expressão calorosa para um sorriso trocista, quase malicioso.

— Oh, vá lá, achavas mesmo que teres chamado putrigo a um rapaz consertado numa Ala cheia de gente com partes mecânicas passava despercebido? Agora a sério, Dominic.

Baixou a cabeça. A mente gritava-lhe que se levantasse e fugisse o mais rápido que as pernas trémulas lho permitissem, que se afastasse daquela rapariga o quanto antes. O ar ganhara uma tensão densa, era-lhe difícil respirar.

A varanda era gradeada. Estranhamente, porém, isso não lhe servia de consolo. Continuou assolado por um pânico limítrofe.

— Porque é que fizeste aquilo? — Demandou saber a rapariga. O tom não lhe soara autoritário, mas havia algo na sua expressão que o obrigava a uma resposta.

— Não sei — foi a sua resposta imediata, abafada. Irina pareceu aperceber-se e mudou de postura, endireitando as costas e apoiando-se nas mãos.

— Olha. Eu não te vou fazer nada. Tipo, estamos num hospital, nem posso. Se pudesse também não fazia, mas isso não é onde quero chegar. Eu só quero perceber.

Os ombros continuavam tensos, a garganta como se tivesse engolido areia. Forçou-se a encará-la, ainda a arranhar os nós dos dedos, alheado ao facto de que se fossem as suas mãos naturais, a esta altura já estariam em carne viva.

— Perceber o quê?

— Como é que vocês pensam. Os Puritanos, digo. Qual é a vossa filosofia, quais são os argumentos que vos levam a não gostarem de nós. Mais difícil do que ser odiada por um grupo de pessoas, é ser odiada sem sequer perceber porquê.

Não sabia dizer se Irina estava a ser sincera ou usava a empatia como forma de manipulação. Embebido de uma súbita onda de apatia, decidiu que não importava.

— As pessoas não devem ter metal no corpo. É antinatural — explicou, e notou que o seu discurso soava estranhamente idêntico ao orador que costumava temer — e se acabarmos por ter tanto metal no corpo que já nem sabemos se somos humanos? A inovação trouxe caos. E um dos produtos do caos é a desumanização.

Não se atreveu a olhá-la enquanto ela ponderava nas suas palavras, os olhos a intercalar entre as suas próprias mãos e as grades da varanda.

— Dominic, acreditas que todos os seres têm uma particularidade?

— Claro.

— Qual é a do ser humano, então?

— A inteligência — respondeu com convicção após uns segundos a ponderar. Os lábios dela curvaram-se novamente, como que já antecipando a resposta.

— Não está mal. Mas tens de ser mais específico — desistiu de estar sentada de costas curvadas, e optou por se deitar a seu lado, de costas para cima, a cabeça apoiada nos braços cruzados — os pombos são inteligentes. Memorizam rotas e lugares específicos. Os polvos conseguem resolver problemas de raciocínio, e há camarões que conseguem resolver o cubo mágico.

Dominic não conseguia perceber se a rapariga troçava dele, ou falava a sério. Acabou por não responder, o seu silêncio a incentivá-la a que se explicasse.

— Os humanos sempre foram fracotes, naturalmente falando. Não temos garras ou dentes suficientemente afiados para nos defendermos ou caçarmos, não temos pelo para nos protegermos do frio intenso ou das queimaduras solares. A nossa visão noturna é uma porcaria, e até a diurna é uma merda se compararmos com milhentos outros animais.

»A nossa inteligência sempre se prendeu com a nossa capacidade de adaptação. E a nossa adaptação faz-se através da criação. Há uma razão pela qual há muito quem diga que só se fala em Humanidade quando se fala em criação. Quando notámos que morríamos de frio porque a nossa pele era fina, tirámos a pele dos outros animais. Quando vimos que os nossos dentes e unhas não conseguiam fazer frente a predadores, construímos armas. Quando nos apercebemos que não podíamos fazer das árvores ou grutas um lar estável, construímos as nossas casas, à nossa medida. A nossa natureza é criar.

Apontou em redor com o braço esticado, para o céu estrelado, a cidade recortada, as grades de metal e, por fim, para os membros metálicos de Dominic e para si própria.

— Isto tudo? É só uma extensão da nossa natureza.

— Parece-me mais um exagero da nossa natureza.

— Somos seres paradoxais, Dominic. Se considerarmos tudo aquilo que o humano cria inatural, então quer dizer que a nossa natureza é sermos inaturais. Mas se o ser humano é um ser natural, então tudo o que é resultado da atividade humana também será, por extensão, natural. Nós opomo-nos à Natureza sem nunca sairmos dela. É o nosso trajeto.

O rapaz queria responder, mas não encontrou nada para ripostar. A sua lógica retorcida conseguira pô-lo em modo alerta, sem no entanto conseguir contrapô-la. Pensou nas palavras certas, e finalmente disse:

— Ainda acho isto dos membros mecânicos um exagero. Não vem de necessidade, vem da arrogância humana. Dá perfeitamente para viver sem estas coisas.

Ela riu-se.

— Por amor ao cosmos, que falta de empatia, rapaz. Estas coisas ajudam pessoas a ter uma mais vida normal, mais fácil.

— As pessoas deviam tentar viver sem elas.

A rapariga sentou-se novamente de um pulo. A voz, apesar de tentar manter a compostura, tinha um fogo que ainda não lhe ouvira.

— Porque é que não desligas o aquecimento no teu quarto, então? Aposto que também não é natural andares a tentar manipular a temperatura só porque não gostas da que está. O que é a seguir, dizer às pessoas com óculos que deviam era deixar de ser medriquinhas e aceitar a sua vida a afocinhar nas paredes?

— Não é a mesma coisa.

— É exatamente o mesmo. Coisas artificiais que ajudam as pessoas. A nossa existência inteira é, e sempre foi, baseada nelas.

— Como queiras — Dominic disparou, como golpe de misericórdia. Haveria de ser ele a acabar com aquele disparate.

A rapariga parou por alguns segundos com os lábios separados, como que a ponto de dizer algo, depois bufou e levantou-se, para espanto do rapaz. Ainda afogueado e com um pequeno pico de adrenalina da contida discussão, atirou-lhe:

— Onde vais?

Irina sorriu.

— Já me tinham dito que ia ser assim e eu não quis ouvir. Bom, fui eu que perdi, de qualquer forma. Desculpa ter-te incomodado, mas obrigada na mesma. Ao menos ajudaste-me a perceber que não há esperança. Acho que fui arrogante em pensar que podia mudar alguma coisa.

Foi como um murro no estômago. As faces dela ganharam uma melancolia resignada, a mesma que vira no rapaz da biblioteca. Como que a ler-lhe os pensamentos, Irina disse-lhe, como última despedida:

— O nome dele é Silas. Se o encontrares por aí, ao menos pede desculpa pelo que lhe chamaste.

E voltou para o andar inferior, deixando-o sozinho com os distantes sons da cidade, entrecortada entre as barras de ferro.

Ele fitou o espaço, os olhos lacrimejantes sem perceber o motivo.

Sentiu-se orlado de um estranho desconforto. Uma despersonalização. A sensação de que não era ele no seu próprio corpo agarrou-o, afogou-o antes que o pânico o pudesse libertar. E quando já o turvamento ameaçava apagar-lhe os sentidos, algo feroz estalou dentro de si.

O que é que eu estou a fazer?

Isto não sou eu.

Olhou-se, numa hipersensibilidade que lhe toldava o pensamento. Sentia a falta de sensações, sentia o oco e o vazio. Sentia a revolta, o medo, e a apatia. Sentia tanto, sem sentir nada. Olhou para as barras de metal. Algo voltou a estalar, em definitivo.

Um clangor ecoou pelo ar circundante ao hospital. Os pacientes remexeram-se na cama, pensaram tratar-se de uma avaria de qualquer veículo na estrada, um estrago na casa das máquinas, o problema distante e vazio de significado de um qualquer barco voador. Outro, outro, outro e outro clangores soaram, e aí já a alguns lhes desconfortou, a persistência do problema, o alertar para a sua existência. Aos seguintes dois iriam finalmente levantar-se da cama, expressar preocupação à secretária, que averiguaria a fonte do barulho. Mas estes nunca aconteceram. Cinco pancadas, e nada mais ouviram. Talvez outros sons distantes, não tão violentos nem tão preocupantes, enchessem o ar noturno. Mas não se inquietariam por ninharias.

Não valia a pena.


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