Vatriesse escrita por Gazervici


Capítulo 5
Coração




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Dominic cedeu à tentação, depois do fiasco de interação que tinha tido com o rapaz dos cabelos brancos, de se trancar no quarto e não mais de lá sair até ter alta. O que o impediu foi que, de certa forma, a sua pequena escapada fora libertadora. Agora sabia com o que podia contar, não havia a incerteza do desconhecido. E lá fora, sabia-o agora, havia apenas putrigos.

A palavra queimou-lhe a língua, apesar de não a ter pronunciado. Lembrava-se de quando, em Diavena, lançava a palavra em insultuoso escárnio a qualquer amigo ou conhecido, apenas para ser presenteado com um falso arquejar de ofensa, coroado de um sorriso trocista: ser um putrigo era a pior ofensa. Maculado pela ferrugem. Mas era algo que nenhum deles era, e era isso que os unia, no final de tudo.

Agora forçava-se a lançar a palavra com o mesmo descaso e não conseguia. Durante muitas noites passara horas, antes de conseguir adormecer, a pensar em todas as justificações que daria se, quando voltasse a casa, fosse acusado de ser um maculado pela ferrugem. Orquestrou os mais floreados discursos em que apelava à sua inabalável crença na pureza orgânica, à sua dedicação pela comunidade, à sua bondade como pessoa. Repetiu tantas versões e tantas vezes, que conseguia adormecer a convencer-se a si próprio, ainda que por uns meros segundos numa mente turva pela sonolência, de que era verdade. Posso ter partes mecânicas, depois corrigia-se, ter tido partes mecânicas, pois na altura já as teria removido, mas não sou um putrigo. Não sou um deles.

Não sou um deles.

Depois acordava, e quando esfregava os olhos com as mãos de metal, a realidade caía-lhe novamente em cima como uma pedra no estômago.

Como se não bastasse, ainda tinha agora aquela expressão de resignação desconsolada do rapaz da biblioteca a pairar sobre si como uma etérea presença. Sempre que enunciava mentalmente a palavra, claramente como um motejo prolongado, parava-se na segunda sílaba com a memória do olhar desconfortante do outro.

Ei, já chega.

Olhava de novo para as suas mãos. Desistia. Levantava-se da cama e ia dar uma volta, sempre nas alturas de maior movimento para passar despercebido, constantemente atento às faces de quem passava. Não sabia o que faria se o voltasse a encarar, mas a cada rosto que ele descobria não ser o dele, havia um pico de adrenalina que terminava em alívio. E culpa. E uma ponta de tristeza. Repete ad infinitum.

Só um par de dias depois descobriu que havia uma varanda.

Ouviu sem querer uma conversa casual, em que uma rapariga do quarto ao lado comentava com uma visitante sua que ao menos tinha a varanda no andar de cima para espairecer um pouco. Senão dava em maluca, riu-se. Dominic deu graças a tudo pela descoberta e nesse mesmo dia, quando a médica o visitou, pousando a pequena caixa de aparelhos, instrumentos esterilizados e engrenagens suplentes na cama e pedindo com um aceno que lhe estendesse o braço para analisar o geral estado da situação, perguntou-lhe se podia ir lá acima.

Ela fitou-o por alguns segundos, tentando disfarçar a surpresa. Parecia perscrutar-lhe a face por indícios de segundas intenções, até que revelou aquilo que a preocupava:

— As varandas estão gradeadas. Para a segurança dos pacientes.

Ele assentiu, não muito surpreendido com a ideia que a senhora fizera de si. Lembrava-se das suas olheiras fundas, do pescoço arranhado, da pele seca e empalidecida pela sua quase recusa em comer, apesar destas lhe parecerem distantes, experiências de outra pessoa que não ele. Quase como um sonho que se desvanecia na manhã seguinte. Mas sabia que a sua pele acastanhada ainda estava a recuperar da leve palidez, que as olheiras lá continuavam, que nem todos os arranhões haviam sarado, e percebia o receio da médica sem a condenar por o achar instável. Sinceramente, estava instável.

— Está bem. Só quero ir apanhar ar. Não saio há algum tempo.

Ela concordou, indicou-lhe onde se encontravam as escadas para o andar superior, e voltou a ocupar-se de mudar algumas peças temporárias no seu pulso, para depois lhe abrir um compartimento na palma da mão e olear as ligações com um pequeno conta-gotas.

— Posso fazer-lhe uma pergunta? — Dominic ouviu-se a dizer, sem ter parado para pensar duas vezes se deveria.

— Podes — respondeu hesitantemente, sem no entanto tirar os olhos do seu compenetrado trabalho.

— Você tem partes mecânicas?

Ela emitiu um esgar, voltou-se para pousar o conta-gotas e alcançar uma chave de fendas de bico fino.

— Tenho duas — respondeu-lhe enquanto apertava um pequeno parafuso no centro de uma engrenagem — uma simples e uma intrusiva.

Levantou a cabeça por momentos, fixou-lhe os olhos nos seus enquanto dava uma palmadinha na perna esquerda.

— Esta é toda artificial. Um acidente na fábrica da minha mãe, tinha eu mais ou menos a tua idade. Era um edifício velho, caiu uma viga de ferro. Felizmente só me apanhou a perna.

O rapaz pareceu ponderar naquilo alguns segundos, mas nada disse. Marise deu o trabalho por terminado, recolheu as ferramentas espalhadas pela cama e voltou a guardá-las no estojo. Apontou com a mão agora livre para o seu peito.

— E um coração artificial.

Dominic sentiu um arrepio subir-lhe pelas costas, virou-se para encarar a médica cautelosamente. Não queria demonstrar nenhuma reação, mas tinha quase a certeza de que deixara escapar uma nesga de horror. Ela sorriu-lhe.

— Nasci com uma anomalia grave nos ventrículos e tinha de ser operada. Os meus pais não estavam convencidos com os corações de metal, queriam que eles tentassem reparar-mo naturalmente. Mas eu estava cada vez mais frágil, os médicos não se podiam dar ao luxo de que não funcionasse e de que o meu coração acabasse por dar de si, então acabaram por mo substituir — observou a ponderação do seu paciente por uns instantes e levantou-se, acrescentando — se não o tivessem feito, talvez já não estivesse cá.

— Nunca pensa que esse coração não é realmente seu?

— E o que quer dizer isso, o ser realmente meu?

— Você não… não nasceu com ele.

Ela estacou quase à entrada, a luz dourada da tarde outonal a banhar-lhe as faces calmas, a pele clara. Parecia satisfeita com algo, os olhos a rebrilhar.

— Sabes — aproximou-se apenas alguns passos — há células no nosso corpo que se renovam a cada quatro meses. As que temos agora não são as mesmas do que as que tínhamos quando nascemos. E milhares de bactérias nos nossos intestinos, meros parasitas que lá habitam e acabam por ser benéficos. Nem parte de nós são, mas ajudam.

»Quando se trata de ajudar pessoas, facilitar-lhes a vida, acho que a preocupação deixa de ser o que é inato, ou nosso, ou natural. Passa a ser o que é benéfico. O que ajuda. E se ajudar, nós fazemos.

Dominic voltou a fechar-se num cerrado silêncio. Talvez só não queira discutir, pensa Marise amargamente. Não deixa transparecer, sai do quarto com um aceno e um adeus murmurado. Pergunta-se se fez bem, se foi demasiado agressiva, se haverá esperança. Ao virar no corredor nota de relance Silas, a proteger a cara com as mãos de um boneco de peluche a si arremessado por alguém que não distinguiu, a rir-se enquanto ripostava com uma almofada quase vazia. Se ajudar, fazemos. Ao seguir em direção às escadas, as preocupações desvanecem.

Dominic está, entretanto, sentado na berma da cama a observar um fragmento recortado da cidade através da janela, silhuetas negras sob um véu dourado pontilhado aqui e ali por zepelins gordos, lentos, a atravessarem o céu urbano molemente. Mais longe distingue um traço de fumo encabeçado por um qualquer veículo a cortar o firmamento. Um barco pirata, adivinha, e uma leva de imagens, sons, cheios a sangue e pó e ferro o voltam a assolar. Recorda-se de mais detalhes daquele dia desde que acordou, e não sabe se isto será bom sinal, de que a sua memória está saudável e não danificada, ou uma maldição, ter as imagens vívidas sempre a rebobinar e tocar na sua mente distraída.

Recorda-se de uma menina perfurada por um fragmento de vidro com o dobro do seu tamanho. Um rapaz a quem um pedaço de ferro entalou as pernas, e clama por ajuda entre gritos de dor enquanto a viga lhe esmaga os ossos. Vê Lucas, a puxá-lo desesperadamente numa corrida desenfreada, mas não se consegue lembrar do exato momento em que lhe largou a mão. Olha para cima. Distingue a proa do navio a perfurar a capela. Apercebe-se agora de que nota parte do nome.

Ma

Tenta arrancar da memória o resto do nome, mas não consegue. Talvez porque fora nessa altura que desmaiara. Outra imagem inoportuna volta a atormentá-lo. E enquanto um turbilhão de pensamentos que lhe passa pela cabeça, decide focar-se no único em que tem certezas: naquela noite, irá à varanda.


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