Vatriesse escrita por Gazervici


Capítulo 17
Sombras


Notas iniciais do capítulo

Useless trivia: Antes escrevia o Vatriesse enquanto ouvia Bastille, porque o mood da música dos manos é do mais indicado possível para o que eu quero para a história; mas sem querer, agora alguma coisa saiu do lugar aqui na casa mental de Dinis o Primeiro porque dou por mim a escrever ao som de Salsa Tequilla.



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— Espera, mas onde é que nós vamos afinal?

Era difícil a Dominic andar em passo rápido sem o suporte que os braços lhe davam; mas nunca se tinha apercebido desse pequeno detalhe até agora, pois era a primeira vez desde a sua entrada que tinha de acelerar o passo para o que quer que fosse.

Ainda que não percebesse o motivo.

— A Irina está a demorar demasiado com a doutora — Teresa disse apenas, uma asserção seca e final. O rapaz ainda deixou escorrer um par de minutos como que a dar-lhe oportunidade de elaborar, mas ela não parecia ter intenções de o fazer. Ou pelo menos, não sem ser empurrada a tal.

— Não me parece que ela queira que nós a vamos pressionar — acabou por arriscar — ouviste o que ela disse sobre sermos demasiados e a Marise acabar por não ceder—

— Não vamos ter com a Marise — bufou-lhe em resposta, abrandando o passo para o fitar, a figura exasperada atrás de si — vamos ter diretamente com o Silas. Ele tem medo dos seguranças, não me parece que ele tenha tentado fugir; é demasiado arriscado. Esconder-se também é capaz de dar problemas. Mas penso que há um lugar em que ele é capaz de estar.

Foi necessária toda a sua concentração para descer as escadas ao passo de Teresa sem se desequilibrar, e uma maior contenção ainda para fingir descaso e descontração ao avistarem as formas azul-esverdeado das batas dos auxiliares. Marise não devia ter tido tempo de os alertar para a delicada situação do paciente dos cabelos brancos e, surpreendentemente, Silas parecia ter-se conseguido esquivar sem chamar a sua atenção.

Cumprimentaram os funcionários com um olá quase efusivo. O grupo do turno atual rodeava o balcão folheado a marmitas abertas e um aparelho a um canto que transmitia uma radionovela, e respondeu-lhes com um monossílabo e um sorriso distante. Felizmente não queriam ser incomodados.

Pararam diante da porta de um quarto individual, distante o suficiente para os compenetrados auxiliares não darem pela conversa. Teresa espetou um dedo em frente aos lábios com uma expressão grave – uma ordem que Dominic aceitou com um aceno de cabeça e afastou-se para se sentar mais recuado da porta, encostado à parede.

— Silas — sussurrou à porta fechada.

— Deixa-me — uma voz abafada soou imediatamente do interior. A rapariga olhou para a fechadura, depois para a brecha na parte de baixo da porta. A luz do quarto estava apagada, mas a janela poderia estar aberta, pois a luz distante e fraca fazia serpentear uma sombra mirrada do outro lado.

— Silas, eu sei o que é que se passa. Posso falar contigo? — Dominic preocupou-se que o tom firme dela estivesse a ser demasiado agressivo; não duvidava da amizade de Teresa para com eles, mas sabia o que os precedia. Ainda que soubesse não ter qualquer direito de julgar ou opinar, não conseguia calar um zunir de preocupação.

Houve uma pausa, um fungar, e Teresa olhou Dominic com uma incerteza a pontuar-lhe a expressão. Estava amedrontada, isso era certo.

— Podes.

— A Marise não fez por mal, deve-se ter esquecido do que lhe pedimos. Mas há solução—

— Claro que se esqueceu, não é?! Porque não tem importância, não valia a pena que se lembrasse!

Os olhos de Dominic e Teresa dardejaram imediatamente na direção dos auxiliares. Felizmente, continuaram compenetrados na trama da novela.

— Homem, também não foi por mal, obviamente! — A rapariga silvou-lhe — A mulher tem mil coisas para fazer! Achas mesmo que ela ia pensar “o que é que o Bellavance me tinha pedido? Ah, como foi ele a pedir, não importa”? Ela também deu alta à Irina, se houve coisa de que se lembrou era de que precisavas de estar connosco.

Ele não respondeu. No pescoço de Teresa, ainda que ocluso pelo seu denso cabelo escuro, escorria um suor frio de nervoso tenso. Continuava a verificar se a sombra por baixo da porta se mexera, mas ele continuava no mesmo sítio.

— Assim que eu puser pé fora deste hospital, ele vai encontrar-me — constatou, e parecia prestes a desabar em choro — e nem vai ter a decência de me matar. Vai só conseguir dar a volta ao Estado para eu voltar a ir viver com ele.

— Isso não vai acontecer, e tu sabes disso. Ele não pode chegar sequer perto de ti.

— Tu não o conheces! O Addel arranja maneira, ele arranja sempre maneira de conseguir o que quer, ele—

— Silas, ouve-me. Isso é só o medo a falar, Silas, e tu sabes. Tenta controlar isso, tenta pensar. Ele não é um todo-poderoso. E tu não estás sozinho.

Uma nova falta de resposta, mas desta vez Teresa não esperou:

— Tu não estás sozinho. Nós vamos estar contigo, não vamos deixar que ele sonhe em te procurar sequer.

— Ainda pior. Ele vai tentar magoar-vos por minha culpa.

— Não, não me parece. Eis o que vai acontecer — e falou calmamente mas sem condescendência, parecendo implorar pela sua atenção — tu e a Irina vão sair daqui. Se uma impossibilidade muito, muito grande o levar a conseguir encontrar-te, o merdas vai ter de quebrar uma ordem de restrição para chegar sequer perto de ti, e a esse ponto o Hospital Magno e o Governo dão-lhe um chuto nas ventas tão forte que não pensa sequer dirigir-se a ti o resto da vida. Se ele decidir que a melhor maneira de te chatear é através da Irina, ela fá-lo desaparecer do mapa. Soa verosímil?

As pontas dos dedos de Teresa tremiam.

— Soa.

A rapariga tentou disfarçar que respirava fundo e engoliu em seco para recuperar a firmeza na voz. Já não relanceava para Dominic, fixada na sombra por baixo da porta com uma mão a pairar sobre a maçaneta.

— Fala comigo, Silas.

— Ele não me vai conseguir encontrar. Se me encontrar, não me vai conseguir fazer mal — a voz do rapaz era trémula, e ela não conseguia perceber se era do choro ou de incerteza. Adivinhou-lhe uma mistura dos dois.

— Isso. Já não estás sozinho, Silas, ouviste? Tocam-te a ti, tocam-nos a nós. Cacete, rapaz, como se nós deixássemos que te fizessem mal. Nunca na vida.

Um fungo e um resmalhar de roupa do outro lado. Dominic fitava Teresa com uma profunda compenetração, adivinhando-lhe na forma como cerrava as sobrancelhas que a estava a matar o facto de não saber o que se passava do outro lado. Não distinguia se o rapaz se acalmara, ou tomara uma decisão preocupante, familiar. Não sabia se o seu silêncio era concordância ou desistência.

Até que um fio de voz incerto a sobressaltou do outro lado da porta:

Matri Savariesse?

Teresa congelou. Os olhos de metal arregalaram-se, o núcleo de éter pareceu pulsar de uma maior vivacidade.

— O quê? — Foi a frase mais coerente que conseguiu juntar.

— Desapareceste na mesma altura que o barco se despenhou — explicou Silas a medo — só por aí não chegava lá, mas… o nome “Ascolana” pareceu-me familiar quando o li no jornal. Desculpa não ter dito nada quando voltaste, mas…

Pausou abruptamente. Um silêncio denso instalou-se, antes da rapariga se conseguir arrancar dos seus conturbados pensamentos para o incitar:

— Mas? Fala comigo, Silas.

— Ias odiar-me. Queria perguntar-te se estavas bem, mas não queria que pensasses que me estava a meter na tua vida. Nunca nos contaste nada sobre isso, era óbvio que não querias que soubéssemos, tinha medo que pensasses que te estava a confrontar e me odiasses, eu não queria que me odiasses, Teresa, eu…

— Silas, eu nunca te ia odiar!

Um vulto moveu-se abruptamente dentro do quarto, e Teresa preparou-se imediatamente para arrancar os funcionários à sua pausa em funções – mas mais rápido do que podia gritar por eles, a porta abriu-se e Silas saltou de lá de dentro e envolveu-a num abraço.

— Desculpa — o rapaz enterrou a cara na curva do pescoço da rapariga. Um tremor tenaz apoderara-se do corpo dele, e a sua única reação foi apertá-lo também, uma mão a fixar-lhe as costas trémulas e a outra a afagar-lhe os cabelos alvos.

— Está tudo bem. Estás a ouvir? Estás bem, estamos bem. Não te vai acontecer nada.

Até que uma auxiliar, aparentemente desagradada com o desenrolar da história na rádio, olhou para o fundo do corredor mesmo a tempo de ver de entre as sombras um outro enredo que provavelmente adivinhou mais interessante. Desencostou-se do balcão e dirigiu-se a eles a passos largos, prestes a inquiri-los sobre o que se passava num tom troante o suficiente para alertar o resto dos colegas.

Foi aí que Dominic se levantou de um pulo, sem sequer pensar. Teresa pareceu acordar para a sua presença, que quase esquecera, e Silas apercebeu-se dele com uma expressão que não conseguiu decifrar – caberia a uma outra altura descobrir o que achava o dos cabelos brancos sobre o seu envolvimento. Porém, naquele momento, havia algo que tinha de fazer. O ex-Puritano, com um brilho que nunca reconheceu em si próprio no olho orgânico e no artificial, sibilou abruptamente antes de se afastar:

Matri Savariesse. O que quer que isso signifique.

E apressou-se a parar a auxiliar a meio do caminho. Distinguiram-lhe um apologético “oh desculpe, é que o rapaz tem pesadelos e nós…” de entre um rol conturbado de desculpas e justificações e não conseguiram esconder um sorriso.

— Achas que podemos confiar nele? — Foi a pergunta sumida de Silas, que pousara a cabeça no ombro da rapariga e lhe acariciava as costas com os nós dos dedos.

— Já vamos um bocado tarde para nos preocuparmos com isso, sinceramente — riu-se ela de volta.

A auxiliar assentiu com gravidade a algo que Dominic lhe disse, olhou por cima do ombro do rapaz e perguntou-lhes, com um gesto breve de uma mão, se estavam bem. Silas acenou-lhe que sim, e a auxiliar retomou o lugar ao balcão, ainda com uma leve desconfiança a pairar.

Dominic virou-se, mas apercebeu-se de que talvez não devesse voltar para junto deles. Não era o seu grupo, não os conhecia assim tão bem – ainda que admitir isso a si próprio afundava uma pedra no seu estômago, uma solidão imensa e surda que parecia não o abandonar.

Limitou-se a despedir-se com algo que tentou fazer parecer um aceno e a encaminhar-se para as escadas. Silas soltou um esgar de riso débil.

Matri Savariesse, Dominic Zisaro. Tomara que isto não dê para o torto.


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