Vatriesse escrita por Gazervici


Capítulo 18
Interstícios




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— Explica-me afinal o que era que vocês queriam.

— Algo que tornasse o Silas indetetável às possíveis pesquisas do merdas do irmão.

Marise tentava a custo lembrar-se da conversa que haviam tido, baseada naquela sucinta explicação. Censurou-se mentalmente por simplesmente não conseguir, talvez derivada do cansaço ou de não ter estado realmente a ouvir na altura em que se tinha falado do assunto. De todos os assuntos, todas as trívias que podiam ter escapado à sua memória das milhentas conversas que tivera com Irina, aquela tinha de ser a que não se lembrava.

Raios, até do nome do gato da rapariga se conseguia lembrar. Se bem que Zé das Urtigas em Chamas é um nome que fica no ouvido.

— Desculpa, não consigo mesmo—

— Não tem mal! Basicamente, o irmão dele trabalha na função pública, então tínhamos medo que ele usasse a posição para tentar encontrar o Silas, vasculhasse nalguns documentos a que tivesse acesso ou assim. Mas esses documentos normalmente estão organizados pelo sobrenome, então… a Teresa vai casar-se com ele.

A médica estacou diante de um balcão a meio do corredor.

— Como. É que não me lembro de uma conversa dessas. É… uau. Daquelas coisas que devia ficar na memória — tartamudeou a médica — mas ela estaria disposta a…

— Iep. Falámos nisso há já algum tempo, mas não me parece que ela tenha recuado na ideia. E não lhe faz grande diferença, na realidade. Só que queríamos agilizar o processo sem isto chegar aos ouvidos do Addel, então íamos pedir à minha tia para tentar mexer uns cordelinhos e eles passarem à frente de uns quantos casamentos, fecharem o processo sem ninguém sequer se aperceber e enterrarem os documentos no meio de outros tantos.

Irina apoiou-se no balcão a espreitar para a parte de dentro enquanto Marise dava a volta, abria uma gaveta metálica de quinas enferrujadas e vasculhava os papéis desorganizados no interior, remordendo mentalmente contra os enfermeiros do turno anterior.

Lembrava-se da tia de Irina, uma mulher pequena e encorpada, de braços fortes, cabelos de um castanho seco soltos sobre os ombros largos e um sorriso igualzinho ao da rapariga – encovado e levemente malicioso.

Haviam falado longamente aquando da operação de Irina; a senhora desfiara um rol de histórias e casos e Marise ouvia com um plácido sorriso. A mulher tinha-lhe inclusivamente dito, em tom de confidência, que estava disposta a pagar o que fosse preciso para a sua “pequena, querida Irina” ficar bem – um discurso surpreendentemente despojado de ostentação, ainda que tocasse muito perto das suas avantajadas posses monetárias. Era uma senhora simples que falava das coisas em tom simples, mesmo que estivesse a dizer algo de tom fatal para outrem.

— Os pais dela não a mereciam, doutora, não a mereciam. A forma como tratavam a minha pequena Irina, o descaso, a aversão! Mas enfim, eles já não são um problema. Os Federici são pessoas respeitadoras, doutora! E eles já não são Federici. Nós só confiamos em boas pessoas.

Dava-lhe arrepios ao relembrar-se.

— Assim que eles casassem, ele passava a ser Silas Ascolana. Se não impedia a coscuvilhice do irmão, ao menos atrasava-lhe as buscas. Até estive para me oferecer para ser eu a casar com ele, mas… não, ele não ia gostar de ser um Federici.

Tinha curiosidade, se queria ser sincera. Mas ao mesmo tempo algo lhe dizia que era melhor não saber, e gostava de confiar nessa sumida voz ao canto de si própria que às vezes lhe sussurrava coisas com algum sentido.

— Por isso é que queriam todos alta ao mesmo tempo — concluiu, ao levantar-se com uma pasta de aspeto desgastado na mão, com algo ilegível ao canto na sua letra.

— Dá para ele se casar com uma pessoa internada, mas é mais difícil e levanta mais alarido. Só queríamos ser o mais discretos possível.

De repente, um som estridente de estática soou no aparelho que Marise pousara no chão a seu lado. Agarrou-o de um ápice e diminuiu o volume com o polegar numa pequena roda, carregando depois num botão na extremidade.

— Fala, Zacharie.

— Doutora, a Ascolana está com o Bellavance.

A médica levantou-se e atirou a pasta para as mãos da Irina, urgindo-lhe com um breve trejeito de mão que a seguisse, enquanto caminhava a passos largos.

— Falaste com eles?

Nada. Ninguém da equipa interagiu com o Bellavance, como pediste. Ele voltou para o quarto e os funcionários do piso avisaram-me que a rapariga estava com ele.

Irina notou na expressão da médica a sombra de um sorriso triunfante, enquanto cortavam a curva do corredor e desciam as escadas.

— Eu não disse que o miúdo não arranjava chatice? Só precisava de estar sozinho.

— Está bem Mara, mas dá-nos um desconto. O puto foge do pé de ti e tu pedes para ninguém o ir buscar, temos o direito de ficar de pé at—

— “Temos”? Mais alguém da equipa se queixou?

— Bom, não, mas…

— Faz-me um favor e confia mais em mim, novato duma figa. Se ela está com ele, estou descansada. Vou agora ter com os dois, diz ao resto da equipa que estão dispensados.

— …está bem. Até amanhã, doutora.

Um clique metálico cortou a ligação do outro lado e Marise enfiou o comunicador no bolso da bata, apanhando de novo os papéis das mãos de Irina.

— Vamos agora ter com eles? — Arriscou Irina a perguntar ainda que, pelo rumo que tomavam, estivesse quase convencida de saber a resposta.

— Sim — a médica passou os olhos pelas folhas soltas no interior da pasta, dividindo a atenção entre o caminho, a rapariga, e a mistura de caracteres datilografados e três ou quatro caligrafias distintas nos documentos amarelados — diz-me só uma coisa, para eu não fazer figura de idiota agora: a Teresa e o Silas, eles?...

Irina soltou o início de uma gargalhada audível, mas estrangulou-a assim que se apercebeu de onde estava. Ainda soltou um ou dois risinhos pueris antes de responder:

— Ainda bem que me perguntou antes! Não, nada disso. O Silas vê nela uma irmã mais velha, e ele não é propriamente o tipo da Teresa.

Marise interrompeu-a com um escarnecer pueril. Abriu a porta da Ala dos Mecanizados e deu passagem à loira.

— E tu sabes o tipo da Teresa? — Perguntou a médica. Parte queria saber a resposta, parte apenas entrava na brincadeira.

— A grosso modo? Raparigas.

Marise censurou-se por pensar que já sabia tudo sobre eles. Ao fundo, notou os funcionários do turno a olhar desinteressadamente para um rádio de volume sussurrante, e repentinamente a desligá-lo assim que notaram a sua presença.

Passaram por eles dirigindo-lhes apenas um cumprimento trivial. Pensou em dizer-lhes sarcasticamente que voltassem à programação habitual – atitude que Irina provavelmente aprovaria com entusiasmo – mas ultimamente dava por si a não se importar grandemente com mesquinhices.

Talvez estivesse finalmente a aprender.


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