Vatriesse escrita por Gazervici


Capítulo 16
Crianças


Notas iniciais do capítulo

UM ANO DEPOIS, CÁ ESTAMOS.

Pois, não esperava demorar tanto tempo para atualizar esta porreça. Mas com a universidade, uns trabalhos ocasionais e ocupações aqui e ali, o pobre do Vatriesse ficou esquecido a um cantinho, sem mais me lembrar dele e das minhas crianças /sobs

Mas alas, voltei a escrever, editar e atualizar isto o/ e posso nem prometer um horário de atualizações regulares (porque pronto, sou eu), mas prometo avançar o máximo que conseguir da história até a escola se atravessar no caminho outra vez.

Agora, voltemos à nossa programação habitual desta gente do capeta num hospital steampunk. Espero que gostem! :D



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— Doutora? Posso falar consigo?

Marise parou a meio do corredor e pressionou as pálpebras cerradas com as pontas dos dedos enquanto se virava. Já era um tique nervoso, que fazia quer estivesse cansada ou não, resultado do stress decorrente de anos de trabalho. No entanto, era um que nunca se preocupara em suprimir, pois cedo descobrira que as pessoas se tornavam mais tolerantes se achassem que ela já apanhara o equivalente a uma vida inteira de tensões nas suas últimas horas de serviço. Poucos insistiam em tratar com ela qualquer assunto delicado se tivessem a impressão de que ela não estava com a menor das paciências para isso.

Infelizmente para ela, Irina pertencia a esses poucos.

— Olá. Suponho que estás aqui para saber sobre o Silas.

Irina deu graças por se ter antecipado a voluntariar-se a ir falar com a médica; quase conseguia imaginar, ao detalhe e pormenor, todas as maneiras de que aquela conversa podia dar para o torto se a interlocutora fosse Teresa. Adorava a outra rapariga, mas sabia que a sua próxima frase, face ao cumprimento de Marise, seria quase de certeza “a senhora enganou-se e agora o Silas está mal por sua culpa.

Tinha de ser mais cautelosa se queria respostas e soluções antes de uma ordem direta para voltar para o quarto. Respirou fundo e coletou a expressão o melhor que conseguiu.

— Sim, o… encontrei o Dominic lá na Ala, estava bastante abalado e contou-nos o que se passou. Como está o Silas? Reagiu assim tão mal?

A médica ponderou por alguns segundos, as sobrancelhas sulcadas enquanto fixava um qualquer ponto no rodapé da parede. Depois olhou-a com gravidade.

— Primeiro, deixa-me ficar descansada sobre uma coisa: o que raio foi aquilo com a Teresa na varanda?

Oh, aquilo não era bom. Aquele pequeno pico de frustração real, quase palpável era o máximo que conseguia chamar de descontrolo em Marise, mas continuava a ser preocupante. Ela estava exausta, ela estava sem paciência. Ia ser mais difícil do que pensou.

— Peço desculpa por isso, a sério. Eu e a Teresa não andávamos a comunicar muito bem, houve uns mal-entendidos e… pronto, acabou por estalar ali. Mas já está tudo resolvido e não se volta a repetir, prometo! Não precisa de se preocupar com isso.

Os ombros de Marise relaxaram-se, um pequeno suspiro escapando-lhe dos lábios. Levava algo apertado no punho esquerdo, um pequeno intercomunicador, e a outra mão, distendida, tremia levemente na ponta dos dedos. Um sorriso ténue apareceu-lhe maquinalmente enquanto se inclinava para a frente para fitar a médica. Assim que se apercebeu da sua aproximação, a médica sorriu-lhe de volta.

— Desculpa Irina, isto hoje não tem estado fácil.

— Pelo que nós nos apercebemos, nunca está — disse suavemente enquanto dava de ombros, com um pequeno esgar de riso que rapidamente se desfez — não somos propriamente o grupo mais pacífico que teve na sua alçada, imagino.

Marise estacou. Pousou-lhe uma mão nas costas e encaminhou-a corredor adentro num passo arrastado, fúnebre até.

— Querida, a culpa não é vossa. Nenhum mecanizado, ou nenhum paciente sequer é fácil. É só… frustrante, por vezes, saber que se passa algo convosco que está fora do nosso controlo. Estamos cá para ajudar, mas às vezes não conseguimos. Ou melhor, não consigo.

Naquele momento, a culpa caiu-lhe tal pedra no estômago – julgou até que estava a ponto de se sentir fisicamente enjoada.

— A culpa não é sua! — Foi o que lhe saiu por entre as brechas da invulnerabilidade que até então tentara construir. Às favas com ela, deve ter pensado enquanto se censurava — Enquanto médica só tinha de nos curar e ver se não estávamos a fazer merda com os outros pacientes, mas você preocupa-se. Não tinha de nos ouvir ou de estar lá para nós, podia simplesmente encaminhar-nos para um psicólogo ou drogar-nos até estarmos calmos, mas nunca o faz sem tentar falar connosco primeiro.

A médica abriu a boca para a contestar, mas o que quer que ia dizer perdeu-se no abraço em que a mais nova a envolveu. 

— Desculpe estarmos sempre a estragar tudo.

O que Irina desconhecia é que Marise também, naquela altura, se sentia culpada do que há muito fizera. De como, nos seus primeiros anos, numa ânsia doentia em subir rápido e com estrondo na sua carreira tomara na sua alçada todos aqueles pacientes a quem ninguém dava grandes esperanças.

Durante muito tempo pegava em gente considerada difícil, usava as suas vulnerabilidades e conseguia dar-lhes a volta para os impedir de se matarem ou de armarem confusão – ao menos durante a sua estadia no hospital. Aqueles que ela tratava passavam a enaltecê-la como uma curandeira milagrosa; não por ser realmente uma profissional estrondosamente melhor que os outros, mas porque se tornara uma perita em fingir empatia e uma ainda melhor manipuladora.

Isto, até que alguém lhe provara que fingir era longe de suficiente.

“— Menina Federici, posso falar consigo durante uns minutos? O seu comportamento na Ala Pediátrica não tem sido do melhor, e queria mesmo que conversássemos

— Doutora, não finja que não está a achar piada à situação.

— Desculpe?

— Vá lá, quer mesmo que eu acredite que você acha assim tão grave eu ter levado um bando de miúdos entediados a pintarem um muro velho? Não me tente mentir, vai ver que é difícil. Mas não se preocupe, da próxima vez convido-a a vir connosco.”

Desmontara-a tijolo a tijolo, peça a peça, até que Marise deu por si a pensar nos seus pacientes nas horas vagas, a cogitar ir falar com eles ou oferecer-lhes doces ou algo para se entreterem. Isto era preocupante para todos os seus planos e ambições, até que deixou de ser. Deixou de ficar com os pacientes “difíceis” pelo seu potencial de a enaltecer, mas porque se preocupava realmente.

Sabia que não podia – sabia que a censurariam, a si e à credibilidade enquanto médica que construíra. Sabia que qualquer pequeno sopro poderia desmoroná-la. Só que naquele momento, e por muito que batalhasse por o fazer, não se conseguia preocupar.

— Minha pequena — murmurou-lhe. A voz soava-lhe grogue, ainda que confiasse na sua capacidade de não chorar — não peças desculpa. Não estragaram nada. Recaídas, problemas entre vocês, conflitos, são coisas que acontecem e que podemos resolver. Vamos resolver. Está bem?

Irina não respondeu, mas sentiu a cabeça a assentir enquanto se afastava com os olhos marejados. A médica estendeu uma mão para lhe limpar as lágrimas.

— Para o bem ou para o mal, vocês são as minhas crianças — Irina riu-se por entre o choro abafado, e fitou a médica.

— Mesmo que sejamos uns marmanjões de praí vinte anos?

Minhas crianças — troçou também, apertando-lhe o nariz brevemente entre o polegar e o nó do indicador. E endireitou-se, tomada de uma confiança que já pensara se ter começado irreversivelmente a desvanecer — e longe de mim permitir que algo de mau vos aconteça. Prometo-te, Irina, o que quer que eu possa fazer por vocês…

— Eu sei — interrompeu-a. Não precisava de mais senão daquela pequena, decidida confirmação do que já sabia. Marise era uma boa pessoa, apesar de tudo.

E Irina só confiava em boas pessoas.


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